Sempre que começo a desejar alguém novo, mergulho em uma repetição de prazeres solitários. A sensação de estar embriagada sem ter bebido sequer uma gota de álcool, o sentimento de ser hipnotizada e carregada para uma terra nova e a imaginação povoada de devaneios com o corpo novo se encaixando nas curvas da fantasia. Esse desejo primordial e toda a ficção que se cria sobre a pessoa desejada é uma preliminar. Qualquer atitude que concretize-se no futuro tem início nessa fase de fantasia e desejo. Quando começo a ler um texto novo, um texto literário (um ensaio, uma história, um poema, uma newsletter), sou extremamente suscetível ao desejo da pessoa que escreve de me seduzir. Espero ser carregada para dentro das palavras como um amante conduziria o meu corpo até a cama. Com desejo. E naquelas primeiras linhas eu espero ser fisgada como eu mesma fisgaria novos amores; dando a certeza de que quero estar ali com toda a vontade concebível.
Quando falamos sobre literatura, sinto falta de ouvir sobre esse desejo intrínseco e necessário entre quem escreve e quem lê. Fala-se muito da vontade de escrever, das maneiras mais apropriadas para se começar e sustentar um texto, das listas sobre como escrever bem, os desafios e as contagens de palavras. O texto é construído pela lógica do desejo de terminar algo. Ela mira no fim, no alívio, como se os dedos no teclado tivessem uma função quase masturbatória. O dever de entregar o texto torna-o uma obrigação mecânica.
Muita gente diz que o importante é escrever para si mesmo. Eu diria que a prática de criar para si é crucial para qualquer artista, mas colocar o texto para jogo, para fora do ambiente privado, é uma manifestação de um desejo pelo outro. Quem publica não publica para si. Publica para alguém, uma espécie de entidade muitas vezes abstrata, mas que precisa ser desejada pelo autor para que seja conquistada. Com isso eu concluo que o texto, assim como o sexo, tende a ficar melhor com a experiência e prática. Para quem escreve e para quem lê.
O desfrute do texto
Do ponto de vista de quem lê, o crítico literário Roland Barthes escreve no seu O Prazer do Texto sobre a fruição do leitor. Essa fruição seria um desconforto ou uma inquietação emocional, que tira a pessoa do seu pensamento cotidiano e provoca uma ruptura. O texto leva o leitor a esse estado fora da ordem do comum. Diz ele que o texto de fruição é “aquele que desconforta, faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. Daí a fruição, muitas vezes definida como gozo ou desfrute. Eu penso na fruição como as pessoas que falam que a boa arte não é aquela exclusivamente bela, tampouco é apenas o que causa desconforto, mas o que provoca. Também fala Barthes no mesmo livro:
“O texto é um objeto de fetiche e esse fetiche me deseja. O texto me escolheu, por uma disposição de telas invisíveis, confusões seletivas: o vocabulário, as referências, a legibilidade, etc; e, perdido no meio do texto (não atrás dele, como um deus ex machina) há sempre o outro, o autor.”
Penso que o desejo do texto pelo leitor é consumado num ato de luxúria mental. Se para mim, como leitora, o texto é um objeto de fetiche (uma ferramenta para buscar um prazer intelectual), como autora, o texto é um exercício de sedução pura.
Um outro ensaio famoso de Barthes, A Morte do Autor, fala que interpretar uma narrativa pensando na vida e nas influências culturais da pessoa que o escreveu é limitar o texto. É limá-lo de sua potencialidade e de todas as interpretações que cada leitor pode dar a ele. Embora eu concorde com Barthes nessa, não deixo de olhar com muito interesse para o fato de que: a origem do texto vem sempre do prazer solitário do autor. Dessa idealização tão parecida com aquela que sentimos ao nos apaixonar. Um desejo primordial que, no fim, proporciona a fruição do leitor. E repete-se de diferentes maneiras para diferentes pessoas. De um modo completamente incontrolável por quem escreveu.
Como um orgasmo, que pode ser alcançado junto, mas vai ser sempre sentido apenas no corpo de quem o tem, sozinho.
Tal qual a morte.
Irma Vep, o filme
Saiu minha resenha sobre a série e o filme Irma Vep, no Querido Clássico. Confira um trecho:
O cinema é ciência ou magia? […] As três vezes em que a personagem Irma Vep aparece nas telas ao longo de 110 anos de filmografia são retratações dessa dança de conceitos, sensações, verdades e mentiras entre quem faz cinema e quem o consome. Correndo o risco de cometer o crime da metalinguagem ao produzir um “filme sobre fazer filmes” com Irma Vep, em 1996, Olivier Assayas repete o feito em 2022, com a série da HBO de mesmo nome. Em ambos ele retrata o processo de uma equipe de filmagem gravando um remake de um filme mudo, do início do século passado, sobre uma gangue de criminosos.
Satélite de recomendações
Andei lendo nas newsletters por aí...
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de leitura.
Vanessa Guedes.
uau. Se a intenção era seduzir... ficou mesmo uma delícia ! Com todo o respeito que você e o Barthes merecem! kkkk Adorei! Ganhou meu subscribe só com esse post!
Amei! Acho Barthes genial, e esse livro o Prazer do Texto, na edição que li havia um posfácio (talvez?, não lembro ao certo) da tradutora q explicava a diferença de palavras e significados entre fruição e gozo no francês e sua tradução ideal. Lembro de ler as explicações dela e achar tão delicioso o acréscimo, nessa busca pela tradução/orgasmo perfeito de um autor tão rico. Seu texto deu até um calor aqui, menina! Hhahaha