Não sei quando isso começou, mas quando fico melancólica eu vou no site Unsplash procurar fotos de Porto Alegre. Não tem cidade que me faça mais triste e mais feliz do que a cidade onde eu nasci, e não tem site que me faça mais triste e mais feliz do que o Unsplash, um dos bancos de imagem gratuitas mais legais da internet, onde cada uma das imagens mais incríveis já foram usadas 55 mil vezes por todo mundo para ilustrar textos de newsletter e posts de redes sociais. E é exatamente esse uso excessivo das fotos desse site que me faz sentir apática frente a sua potencialidade. Essa também é a minha definição perfeita de melancolia: ficar apática por ser incapaz de aceitar ser feliz com algo simples e acessível, algo que está ali na minha frente. Foi em uma dessas tardes tristes navegando no Unsplash que eu topei com essa imagem:
Uma foto de uma porta de sala de aula na escola estadual onde estudei de 1999 a 2006. A legenda do site diz “some school in Brazil”. Alguma escola no Brasil. Eu já quis usar essa imagem específica em textos aqui inúmeras vezes, como se fosse uma imagem qualquer de um banco de imagens. Mas não é. Sinto um aperto na garganta ao olhar para esse pedaço do mundo fazendo as vezes de cenário esfacelado para ilustrar ideias de podridão e decadência. Seria o quadro perfeito para fotos de blogueira de moda. Foi olhando para essa moldura de amarelo com o corredor pintado de azul no fundo que eu escrevi minhas primeiras crônicas, a lápis, num caderno pautado de espiral 500 folhas, em um tempo que essas paredes não tinham buracos e o chão não estava no fundo de uma camada de pó cinza. Foi entre essas paredes que eu aprendi coisas inúteis, como a função das mitocôndrias, mas também aprendi outras bem úteis, tipo como me defender no soco e quem diabos era Platão. O que me lembra que uma vez estive na cidade dele.
Atenas. Lá eu entrei na Acrópole com esses mesmos pés que andaram pelos corredores daquela escola, agora decadente, onde falava-se da democracia e onde primeiro me despertou o desejo de um dia ir a Grécia andar por onde andou Platão. Na lógica emotiva da memória, a jornada até Atenas começou ali. Na escola. Lembro nitidamente do rosto da professora de história falando a palavra Peloponeso e como ela retumba até hoje nos corredores da minha mente. Um pontapé que começa na ponta dos lábios e desce para um som lânguido da língua, pe – lo, para voltar para entrada da boca e descer ao queixo, po – ne, e acabar de volta em um bico, -so. Peloponeso. Os cabelos negros curtos da professora e sua mania de pousar a mão na barriga enquanto expurgava do seu cérebro para o nosso aquela lista de nomes de gente e lugares sem fim. A definição de democracia. A importância da educação política. Sócrates, Platão, Atena, Atenas, Afrodite, Mar Egeu… Quando parei de frente para o Partenon, o próprio, a única coisa que me vinha à cabeça era a fachada do meu colégio:
Se a gente acha que na Europa existem cidades antigas, Atenas coloca qualquer noção de antiguidade no chinelo. Em cada esquina há um sítio arqueológico que precede em centenas, às vezes milhares, de anos a existência de Cristo. Os gregos de hoje reclamam da falta de terrenos úteis para construir novos prédios, porque cada vez que abrem um buraco no chão para puxar o encanamento, encontram um novo sítio e a obra precisa ser interrompida para virar patrimônio instantâneo da humanidade. A sensação é de estar simultaneamente dentro de um documentário antigo da BBC e uma reportagem gravada em alta definição para o Globo Repórter. Mas de todas as inúmeras ruínas de Atenas, as que mais me emocionaram foram aquelas mais esfareladas na Ágora, um complexo de prédios que formou um dos primeiros espaços urbanos de prédios com funções sociais em Atenas, lá nos idos de 600 a.C.. Passei um dia inteiro nesse lugar. E em dado momento ali, enquanto olhei de um jeito ridiculamente solene para um monte de pedras e tijolos velhos empilhados em um amontoado no chão, as palavras “Altar of Zeus?” me encararam como um desafio. Altar de Zeus?
Aquele sinal de interrogação acabou comigo.
Andei pela Ágora de Atenas tentando imaginar o povo transitando por ali no tempo em que aqueles prédios estavam de pé e eram funcionais. Tinham propósito. Cheguei a conclusão de que são as pessoas que trazem sentido ao lugar. Sem elas, tudo é um vazio de pedra. Uma memória incompleta. Um ponto de interrogação.
Na frente do lugar onde estudei, há um ipê amarelo gigante. Toda vez que vejo um ipê, penso nele e depois penso numa garota que estudava na mesma série que eu, mas era de outra turma, a Clareana. Ela escreveu um texto tão lindo sobre aquele ipê uma vez. Sobre o tapete amarelo que se formava ali no outono e todos nós passávamos caminhando sem notar, preocupados com outras coisas da vida. Foi lendo sobre o ipê do meu dia a dia, nas palavras dela, que entendi a função do artista. Enxergar um pouco além do banal. Da rotina. Como foi bom perceber isso justamente em outra garota, da minha idade, e não em uma pessoa mais velha, mais distante e inalcançável. Como é bom entrar no google e descobrir que a Clareana virou jornalista e nunca parou de escrever também.
Os tijolos ficam, mas as pessoas se movem. Escrevem, viajam. Os lugares só tem sentido pelos encontros que promovem.
Uma tragédia?
Ontem entrei no site do Unsplash para procurar fotos de Porto Alegre. Sim, eu estava triste. Eu estou triste. Quatro pessoas morreram e 13 ficaram feridas em um ataque a duas escolas de Aracruz, no Espírito Santo.
O ataque a duas escolas deixou três professoras e uma aluna mortas e 13 feridos em Aracruz, no Espírito Santo, nesta sexta-feira (25). O assassino de 16 anos foi apreendido e vai responder por ato infracional análogo a três homicídios e 10 tentativas de homicídio.
Morreram professoras. Aluna. E tudo em que eu conseguia pensar era nos meus próprios colegas e professores. Seus rostos girando como personagens de um drama grego encenado há três mil anos no universo da memória humana. Como se misturasse as mortes de ontem, com essas pessoas do meu passado e o teatro grego em ruínas. A tristeza nunca é racional.
Nos últimos dias, vi duas séries de adolescente na sequência. Clube da Meia-noite e Wandinha, ambas da Netflix. A primeira é sobre pacientes terminais adolescentes, esperando para morrer. A segunda, é sobre uma adolescente que ama a morte e as coisas mórbidas. Costumo fazer anotações soltas quando estou vendo filmes e séries e uma das coisas que anotei enquanto via a primeira série foi: não existe nada mais triste do que um adolescente morrendo.
Acrescentaria que não há nada mais triste do que um estudante e um professor morrendo.
E é por isso que me faltou ânimo para editar o artigo que havia preparado para enviar esse domingo. No fim, saíram essas palavras.
E é pela falta de articulação que encerro esse texto sem encerrar. Como a vida que interrompe-se assim, no prelúdio.
Abraço.
Vanessa.
Totalmente solidária a sua dor, Vanessa. Doí em mim também, junto a uma sensação de impotência, principalmente depois de ouvir a mãe que perdeu a filha. Não podemos desistir do amor, mas às vezes ele parece ter sumido do mundo. Que bom ler você.
Ótimo texto