Amar simultaneamente ✨️
Memórias de minha não-monogamia e outros jeitos de lidar com afeto
Efervescência. Completei quinze anos e resolvi perder a virgindade, desde que não houvesse amor envolvido. O amor romântico me parecia algo muito abstrato, até os personagens dos livros pareciam mais reais do que o sentimento amor rondando as pessoas de carne e osso. Tinha a impressão de que o mundo era um lugar muito velho e repetitivo; as amigas já tinham transado há tempos e imediatamente se decepcionado, uma após a outra. Era evidente que esperar o amor verdadeiro para provar sexo não valia a pena. E parecia lógico que amar alguém era uma tremenda perda de tempo. Observar aquilo era como se eu tivesse desvendado um segredo, como se pudesse ver algo que ninguém mais era capaz. Não era que eu nunca me apaixonasse; acontecia a toda hora. E o que me fazia sentir diferente dos outros era isso, eu me apaixonava umas três vezes por semana. Seria inconcebível acreditar no amor romântico assim. Então foi nessa idade que, quando todo mundo sonhava com um amor arrebatador para vida inteira, percebi que eu me apaixonava por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E gostava disso. No lugar de ter medo por ser diferente, eu abracei a ideia. Fantasiar a vivência do amor com pessoas diferentes era excitante. Mas também compreendia o sentimento de “monoamor” dos amigos, era o modelo de afeto que nos ensinaram pelos filmes e novelas. Pelo discurso de nossos pais. Mas se você olhasse à volta, para o mundo real, as pessoas casavam e descasavam o tempo inteiro. Tinham ex-namorados e ex-namoradas. Se apaixonavam várias vezes ao longo da vida. Era difícil para mim acreditar nessa ideia de que as coisas eram perfeitas e permanentes. Além disso, eu era só uma adolescente e tinha certeza absoluta que não me casaria com ninguém pelos próximos anos, então a ideia de me deixar encantar pelo que o mundo oferecia por enquanto, sem esperar o amor definitivo, tornou tudo mais fácil. Eu sabia que se esse tal de “amor maior que tudo” tivesse que vir, ele viria, eu não precisava procura-lo. Enquanto todo mundo desejava a firmeza de um amor de conto de fadas, eu vi o mundo como uma taça de champagne cheia de bolhas estourando.
Numa sociedade patriarcal que me apresentava as mulheres como seres dependentes do amor dos homens, sentir-me capaz de concentrar meu afeto em várias possibilidades parecia quase uma estratégia de sobrevivência. Me senti sortuda por ter um coração elástico.
Nunca me perguntei se havia nome para o que eu pretendia fazer. Mas uma vez que minhas paixões fossem correspondidas, eu sabia que os namoros terminariam rápido. Eu era fugaz no desejo, mas não quer dizer que não quisesse namorar. Eu tinha medo de dizer para meus afetos que eu gostava de outras pessoas. Temia perdê-los se dissesse a verdade, então omitia. Ser incompetente na arte de amar não me impedia de querer viver as paixões. Tinha me contentado com a ideia de entrar em relacionamentos sabendo que em breve precisaria terminar, para poder viver outros. Mas eu percebia minhas próprias repetições. E se eu era capaz de vê-las, outras pessoas também seriam. Passei a ter uma certa ansiedade pelo dia em que descobrissem esse meu segredo; ninguém mais ia querer namorar comigo. Ninguém mais ia confiar em mim. Então, eu passei a abrir espaço no coração para a possibilidade das pessoas verem meu afeto como algo temporário. Tinha certeza que um dia elas começariam a se desfazer de mim e da minha incapacidade de amá-las como era esperado. Me sentia triste, me batia uma culpa meio amarga, mas que eu aceitava sem resistência, como o preço a pagar por não me adequar à regra. Seria essa a traição mais escandalosa de uma mulher? Negar ao mundo o que ele exige dela? Eu me perguntava muito: será que nasci para ser puta? Eu não pensava na palavra puta como sinônimo de prostituta, mas de uma mulher traiçoeira. E sexy. Ao mesmo tempo, não me via como uma garota hipersexualizada. Eu era bem normalzinha. Para ser puta eu teria que agir como tal, eu pensava. É, eu não parecia servir muito bem para ser puta. Mas então, o que eu era?
Ainda bem que adolescência passa.
A dor dos outros
A estratégia dos namoros rápidos não se sustentava na vida real. Porque na vida real a gente se apaixona e a paixão vai virando outra coisa, uma sensação de estar indo para algum lugar maior, mais denso. Primeiro a gente acha que está nadando em uma piscina, se divertindo, mas de repente a água se avoluma, adensa, se expande por quilômetros. E a gente percebe que está nadando em um mar enorme e salgado. O mar, amor. Qualquer coisa brega parece linda, coerente. Terminar com as pessoas que eu amava era como ter que nadar por quilômetros de volta ao continente, quebrando ondas e atravessando tempestades. Sozinha. Essa se tornou a parte dura do processo. Eu me sentia capaz de manter o afeto, mas as pessoas não estavam dispostas a dividir minha atenção com outras. Eu detesto a palavra dividir, porque dá a sensação de escassez, de limite. Quando o amor cultivado com afinco é uma imensidão. A concepção de relacionamentos curtos cortava meu coração, porque eu desejava relacionamentos longos. Desejava envelhecer no amor. Mas precisava interromper esses projetos de vida toda vez que encontrava uma paixonite nova. Por que eu não poderia viver tudo que eu queria?
Porque meu desejo machucava as pessoas. Eu me sentia horrível.
Também não foram poucas vezes que eu sofri rejeição repentina porque algum afeto encontrou alguém que topasse a exclusividade sexual de um relacionamento convencional. Muitas vezes minha afeição foi desmerecida como algo menor, mais tênue, como se meu amor fosse fraco. Quantas noites eu chorei sozinha no escuro, de coração partido?
A exclusividade sexual é a prova soberana do amor na sociedade. E não adianta eu, sozinha, ir contra essa corrente.
Foi nesse momento que percebi que a vida não-monogâmica precisa ser um projeto político, e não uma identidade.
Houve um momento, ali pelos vinte e poucos anos, em que sofri um trauma grande com um término. Foi o clássico caso de ir tocando um relacionamento fechado até convencer o cara a topar abrir – para no fim ele não bancar uma mulher se envolvendo com outras pessoas. Eu sabia que isso poderia acontecer de novo, de novo e de novo. Mas não sabia como me proteger desse risco. Foi um divisor de águas. Decidi que da próxima vez em que me sentisse intoxicada de amor ao ponto de me comprometer em um namoro, seria apenas sob meus termos de viver na estrutura não-monogâmica desde o momento zero.
Alguns meses depois, lá estava eu em situação de paixão avassaladora de novo. Quando a outra pessoa correspondeu e propôs firmar um compromisso, eu larguei a bomba. E fiquei ali, de coração na boca, aguardando a rejeição.
Parecia o fim do mundo, mas quando eu abri os olhos, o mundo continuava ali. Nunca me relacionei assim, mas tenho curiosidade… Se a gente for devagar, eu topo descobrir com você.
E lá se vão 10 anos juntos.
Para reinventar as estruturas de afeto, a gente precisa contar com a boa vontade do outro.
O amor é construção, já diria bell hooks.
O outro é um oceano
É impossível saber o que cada um sente ao se apaixonar. Ainda sim, eu aposto que existe um momento de idealizar a pessoa que rola para quase todo mundo. Criar fantasia faz parte do desejo. Mas humanos são seres complexos, com suas próprias subjetividades. Essa idealização costuma virar expectativa, e se o outro não é aquilo que esperamos, rola uma frustração. O que eu mais gosto sobre essa parte é o momento de destruir a idealização para encontrar um ser humano ali embaixo que nem eu: quebrado, com história, um coração pulsante que tem outros interesses além de mim. Não sou a mesma com cada afeto e me descubro mais complexa no encontro com esse outro que é um mistério, um oceano novo para nadar.
Talvez seja essa a sacada da não-monogamia. A falta de regras permite que a gente abrace a subjetividade do desconhecido. E talvez seja esse o medo da maioria das pessoas. Deixar para trás uma estrutura pré-formatada, onde as regras são claras, para abraçar um grande terreno inexplorado.
Mas olha só quanto espaço para criar coisas novas cabe aqui…!
Sair do armário
Em 2019 eu contei para minha mãe, e depois para o meu pai, que sou bissexual. Foi um alívio. Meus pais são muito mais mente aberta do que eles tentam fazer as filhas acreditarem; ou eles simplesmente me amam o suficiente para aceitar quem eu sou, e não uma idealização de filha. Tenho sorte, eu sei. Mas a não-monogamia parecia uma montanha enorme para escalar com eles. Ao longo dos anos fui dando de presente um livro sobre assunto aqui, introduzindo a conversa como se não fosse algo meu ali, trabalhando pelas beiradas e cantinhos acolá. Ninguém pescou. Percebi que eu ia precisar falar mesmo, com todas as letras. Decidi então que seria quando eu tivesse um motivo grande.
Perceba que relacionamentos quase nunca são privados. Eles acabam envolvendo outras pessoas que amamos, de um jeito ou de outro. Meus pais são muito apegados ao meu companheiro, eu tinha muito medo que eles passassem a invalidar o nosso relacionamento se soubessem desse detalhe nada público de nossas vidas. Mas então meu grande motivo para sair desse outro armário chegou este ano, quando comecei a me relacionar com uma pessoa que mora geograficamente muito próxima dos meus pais. Seria difícil, dali para frente, esconder essa parte quando eu estivesse visitando a família – lembre que eu moro em outro país, as visitas ao Brasil acontecem numa frequência menor do que eu gostaria e envolvem me dedicar a passar tempo de qualidade com eles. Quando contei para minha mãe, ela disse “eu sabia que você tinha viajado para praia com outra pessoa!”, e me mostrou toda uma linha de suposições que ela juntou pelas fotos que eu havia mandado enquanto passei uns dias viajando pelo litoral (ela sabia que meu namorado não estava nessa viagem). Minha mãe Sherlock Holmes. “Eu estava esperando a hora que tu ia me contar o que está acontecendo!” Mas foi num tom divertido, nada acusatório. Então puxei o celular e mostrei uma foto da pessoa com quem eu estava e a mãe tomou um susto. “Ué?! Eu achei que fosse uma mulher. Tu não é bi?” Eu então expliquei algumas coisas e nós rimos muito. Ela entendeu. Contei que meu namorado mais antigo também tinha um outro relacionamento e ela pediu para ver fotos da pessoa. Mostrei. “Se eles tiverem filhos, as crianças vão ser meus netos também? Eu quero.”
Às vezes o amor se manifesta das formas mais surpreendentes.
Por que falar disso só agora?
Eu ando aborrecida com a discussão sobre não-monogamia nas redes. Sinto falta de espaços seguros para compartilhar todas as coisas boas que ela me trouxe. E como é bom, finalmente, ter coragem para contar para as pessoas sobre esse detalhe tão minúsculo da minha vida, mas que me é tão precioso.
Essa newsletter se propõe discutir segredos e talvez esse tenha sido o segredo sobre mim mesma que carreguei por mais tempo.
Sempre senti vontade de responder as pessoas sobre isso, falar da minha experiência, mas seria revelar essa parte de mim como se tivesse que dar satisfações. Não tenho. Não devo nada a ninguém. Mas por que eu costumava omitir tanto?
Bem, as pessoas levam para o pessoal. É um pouco na linha de quando a gente fala sobre a legalização do aborto e precisamos lembrar que ninguém será obrigado a abortar quando esse direito for garantido a todas as pessoas com útero.
Tem também o risco de alguém me ver como um bastião da não-monogamia. Eu não tenho resposta para tudo, não sou psicóloga e nem estudiosa do assunto, por mais que tente me manter informada. Mesmo dentro das rodas de conversa com pessoas não-mono, existe uma gama de termos, denominações e até fiscalização da não-monogamia alheia. Me sinto cansada. Eu tenho vivido distante desses grupos, levando a vida na miúda, e tem dado certo. Mas por que falar disso agora?
“Eu jamais conseguiria”
Aqui eu tenho a chance de expor o assunto nos meus termos. Porque é um aspecto da vida que me interessa e eu tenho tido uma troca ótima com as pessoas que leem os textos daqui. Acho que é meu jeito de mostrar que dá para viver de um modo diferente do imposto pela sociedade. Isso não quer dizer que a sociedade deixou de interferir nas coisas. Tampouco quer dizer que eu quero impor meu estilo de vida aos outros. Ou que eu acho que se relacionar de forma monogâmica é errado. Longe disso – cada um com sua história, seus corres e sua intimidade.
Mas eu gostaria de começar a conversar com outras pessoas que vivem a não-monogamia ou que sentem curiosidade pelo assunto. Em um espaço que eu sinto seguro para isso.
A caixinha de comentários está aberta no botão abaixo. E se você quiser trocar uma ideia de um jeito mais reservado, pode mandar por e-mail ao responder esse texto direto pelo seu inbox.
Quero juntar perguntas e experiências para escrever um ensaio mais estruturado sobre o tema aqui :) Manda a braba aí!
Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer
Queria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração
- da música Epitáfio, dos Titãs.
Satélite de recomendações
Li esses três textos muito bons essa semana e quero compartilhar com vocês:
Um pequeno agradecimento
Tive uma sorte muito grande de ter topado com um texto do Alex Castro sobre não-monogamia, no seu antigo blog Liberal Libertário Libertino, quando eu era adolescente. Na época, encontrar um adulto que explicava o que eu estava sentindo fez toda a diferença.
Acho que ele andou para que eu pudese correr etc 😂 De qualquer forma: obrigada, Alex.
Recomendo a leitura do texto dele Prisão Monogamia.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
"“Se eles tiverem filhos, as crianças vão ser meus netos também? Eu quero.” Às vezes o amor se manifesta das formas mais surpreendentes."
Terminei teu texto com um sorriso feliz por conta desse trechinho. Obrigado por compartilhar essa boniteza ❤
Esse é o texto sobre não monogamia mais honesto que já li <3.
Gostei de muitos trechos, mas particularmente foi interessante ler sobre seu processo de se abrir com seus pais sobre a natureza das suas relacões. Você sente que algo significativo mudou em você e na forma que você enxerga seu relacionamento com o seu namorado depois dessa abertura?
Feliz que você tenha conseguido se abrir com eles e a reacão foi positiva :)