Uma das atitudes mais cretinas que todos nós cometemos é julgar o amor dos outros. Medimos o amor alheio porque também medimos o nosso próprio, ou o amor que nos é oferecido. É abundância? É escassez?
Em fevereiro de 2022 eu publiquei “Mas o que é o amor?”, um texto que escrevi para mim mesma. Eram as palavras que eu gostaria que alguém tivesse mandado para mim no passado. Talvez a escrita seja isso: lamber as feridas. Foi pensando em lamber as feridas coletivamente - afinal, quem aqui nunca se rasgou por dentro por causa do amor, seja ele por outra pessoa ou mesmo por si próprio? - que nos primeiros 3 meses de 2023, o Amor é o segundo tema sobre o qual quero escrever.
Para aquecer a conversa e reintroduzir o assunto a partir do meu entendimento sobre o que é o amor, republico aqui um longo trecho de fevereiro passado, do famoso Dia de São Valentim. Talvez seja necessário revisitá-lo antes de tragar novos leitores para dentro de reflexões mais profundas sobre o amor. E para quem já se aventurou nas águas quentes desse texto, deixo o convite para mergulhar de novo e repensar o amor uma outra vez.
O que significa “eu te amo”?
Eu estava trocando o pneu do carro do J., meu melhor amigo da época da faculdade, quando ele me disse: eu iria até o inferno te buscar, se um dia fosse preciso. Mais tarde, dentro do carro, ele botou Beatles para tocar - na época eu detestava Beatles - e num dos solavancos que o carro deu, o CD saiu do lugar por um momento. No intervalo daquele segundo eu disse: eu te amo. A resposta veio na hora, sem rodeios: eu também te amo.
Foi a primeira vez que precisei trocar um pneu de carro e a primeira vez que eu lembro de ter falado “eu te amo” para alguém com quem eu não tinha um relacionamento romântico. Veja bem, eu e J. já tínhamos passado por isso (sim, a gente testou e… eerrr, não rolou), já tínhamos conversado sobre isso várias vezes e até as piadinhas das pessoas sobre quando a gente iria assumir não tinham graça para mais ninguém. Eu já não era adepta da monogamia e o J. tinha recém terminado um noivado longo. Nada nos impedia de viver um amor romântico, mas não era isso que a gente sentia. Eu gostava muito de dormir com J., mas não gostava de dormir com as pessoas com quem eu transava. Na cama dele, sonolenta, algumas vezes me perguntei se alimentava-o de esperanças que eu não tinha intenção de cumprir; mas também me indagava sobre a admiração e o cuidado que eu tinha com meu amigo, a imensidão do meu desejo de estar junto dele e a felicidade que isso gerava. Era algo que me pegava com muita gente, não só com J., mas ele se abria para mim inteiramente de volta - ao contrário das outras pessoas, em que sempre havia um limite, um impedimento, uma zona de conforto que nunca poderia ser cruzada. E ele me amava de volta sim, eu sabia, não era um amor feito de palavras, era um amor de deixar que eu invadisse seus limites e me aninhasse na sua intimidade. Não apenas a intimidade do corpo, mas a intimidade das ideias, dos sonhos, dos medos e dos surtos criativos. Era um amor de irmãos, mas ao mesmo tempo não era. O nosso amor era uma incógnita, um não-amor deslocado no meio de tantos modelos que não nos serviam. Não encontrávamos exemplos para o nosso relacionamento. Amar o J. era como desaprender a amar. Como pode um homem e uma mulher da mesma faixa etária estabelecer esse nível de intimidade, onde o afeto vinha sempre a galope, com essa crueza toda?
Amar o J. me abriu muitas possibilidades emocionais. Foi por causa dele que eu me abri para o mundo e deixei que o mundo me tragasse. Se era possível amar (amar de verdade!) alguém que não tinha o mesmo sangue e por quem eu não estava apaixonada, o que mais essa capacidade de amar me possibilitaria?
Quando peguei o avião que me fez mudar de endereço pela primeira vez na vida, eu deixei um J. chorando junto com meus pais para trás no aeroporto em Porto Alegre. E quando aterrissei em São Paulo, encontrei pessoas que me conheciam apenas pela internet, me esperando ao pé da escada rolante do aeroporto, cheias de sorrisos. Os abraços de boas-vindas que encaixaram-se no meu corpo naquele dia permanecem me envolvendo até hoje. São abraços que duram anos, mas naquele momento eram apenas sementes, promessas. Eram mundos que se abriam para mim e eu escolhi me jogar neles sem nada projetar, sem nada esperar além da chance de atravessar os limites e buscar uma proximidade crua. Novas formas de amor.
Amores novos não inviabilizam os outros que já temos. Eles juntos formam imensidão.
Como vai longe a pessoa que se sente amada, né Vanessa? A terapeuta me lançou essa. E chorei muito ouvindo isso, porque é sim uma grande verdade.
Mas para ser amada também nos custa o amor. Não o amor que sentimos, pois esse é impossível de ser qualificado, medido ou descrito - porque se sente, e se sente diferente com cada pessoa. O amor que precisamos perder para poder amar é esse ideal que construímos com os filmes. Essa dualidade que nos apresenta um número fixo de tipos de amor que podemos viver, e com eles os protocolos que devemos seguir: o amante, o filho e os pais. O pouquinho que sobra precisa ser doado em medida certa a alguns amigos mais próximos, medindo intimidade e paixão, como um privilégio. Esse amor protocolar às vezes me parece tão pouco. Não é que a gente não possa nutrir um amor desmedido por essas categorias de pessoas, mas por que distribuir o amor apenas de acordo com essas regras impostas, como se o amor fosse uma commodity?
Concretizar
Eu tenho para mim que nem todas as paixões e amores precisam ser consumados. Tem coisas que são muito melhores na imaginação. Eu não só acredito nisso, como faço disso meu ofício e nem consigo imaginar como seria viver com a frustração de tantos crushes que já tive e nem me esforcei em chegar às vias de fato. O mundo está cheio de gente interessante. Às vezes o que nos faz apaixonar por alguém é a melhor coisa que a pessoa tem para nos oferecer. Nem sempre precisamos seguir a paixão protocolar até o fim, sabe?
Em contrapartida, na primeira vez em que me apaixonei por uma mulher, só soube que era correspondida porque ela me roubou um beijão daqueles de filme enquanto eu dissertava sobre alguma coisa super cabeçuda, tentando impressioná-la. Na minha cabeça, essa mulher era uma dessas paixonites que viveria e morreria na minha imaginação; logo, foi bom que ela tenha concretizado o meu desejo. Esse talvez seja o lado mais cruel da idealização do amor romântico; ele depende da correspondência. Precisa obrigatoriamente ser uma troca para ser vivido, e precisa ser vivido para ser válido, do contrário, não era amor, era tragédia. As pessoas esperam que a troca seja sempre igualitária, mas ela nunca é. Mora aí, talvez, a impossibilidade das pessoas em se sentirem amadas. O amor precisa ser exatamente do jeito que elas esperam, como elas sonham. Mas ele nunca é.
Afinal, o que é o amor?
Uma breve mensagem sobre probleminhas pessoais
Na primeira semana de 2023 eu tive minha primeira crise de ansiedade. Não sei explicar porque demorei mais de 30 anos para me permitir sentir essa angústia toda, mas suspeito que pela primeira vez na vida eu esteja me autorizando a ser louca. Parece ridículo, eu sei. Acho que perdi a vergonha de mim mesma e relaxei o suficiente para deixar os sentimentos tomarem um espaço maior do que o racional. Apesar da dor, me faz bem; é uma espécie nova de liberdade.
Talvez a escrita também esteja mudando.
Novidades
“Nutria a esperança de que, ao fim da espera mais violenta de todas, a de um orgasmo, eu pudesse ter certeza de que não havia orgasmo mais intenso que a escrita de um livro.”
— Annie Ernaux em O Jovem.
Os textos continuarão a chegar às quintas por aqui (a despeito deste estar chegando na sexta-feira). Mas vou suspender os ensaios longos de domingo, pelo menos no primeiro semestre, por motivos de: quero terminar de escrever os livros que comecei ano passado. Simples assim.
Espero que vocês um dia apreciem o que brotar desse momento criativamente turbulento por aqui.
Editorial em 2023
No mês de janeiro estou reformulando as coisas por aqui. Os temas que devo falar no primeiro trimestre do ano são: Corpo, Amor, Trabalho e Tecnologia. Os pilares das paranóias da minha geração.
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Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa Guedes.
Amei, inclusive fiz algumas anotações para refletir mais um pouco, dada a riqueza do seu raciocínio! ;-)
Vanessa, tô adorando os textos de apresentação dos teus grandes temas editoriais. o texto sobre corpo ficou reverberando tanto na minha cabeça que não consegui juntar palavras num comentário! enfim! estou curiosa pra saber como esses temas vão se intercalar (e quem sabe se conectar) nos próximos meses. temos um bom ano de leituras pela frente 💜