Depois de gastar horas pensando em qual seria a atitude mais rebelde que eu poderia adotar ano que vem, cheguei à deprimente conclusão que “não desejar ser magra” era a resposta mais honesta de todas. Quase todos os desejos mudaram ao longo dos anos, mas desde a adolescência há essa única fantasia que nunca vai embora. O que ela tem de pequena, e quase insignificante, ela tem de permanente. Mesmo adormecido ali atrás de coisas muito mais importantes para mim, enquanto os outros desejos são conquistados e substituídos por vontades novas, sonhos novos, o desejo de ser magra fica ali como uma sombra. Sempre. Ele é a constante que nunca muda.
Mas como você manda no próprio desejo? 🤔
A ideia hoje era escrever a retrospectiva do ano, mas depois de ler todas as retrospectivas possíveis de outras pessoas pela internet, eu enchi o saco. Desculpa a sinceridade.
As retrospectivas estão lindas e tudo, mas a ideia de botar mais um texto no mundo indicando links e dando sugestões de coisas bacanas me pareceu completamente sem sentido. Talvez eu esteja só muito ranzinza hoje. (Em todo caso, a lista que eu mais gostei foi a do Matheus. Vale a pena mergulhar nesse texto.)
Em 2022 eu fiz o famoso Caminho de Santiago, escrevi um pouco sobre isso em quatro textos aqui na newsletter (lá embaixo tem os links) e guardei o resto da história para mim e para os botecos com os amigos. Talvez esse tenha sido meu grande feito do ano: botei uma mochila nas costas e andei 250 quilômetros entre Portugal e Espanha, por 13 dias. Por motivo nenhum. Mas e aí? O que aconteceu quando eu cheguei no fim?
Nada. E talvez esse seja o momento de falar das coisas meio toscas da jornada. Esses dias contei para uns amigos sobre a quantidade de pessoas que esperam terminar o Caminho de Santiago mais magras do que quando começaram. Posso dizer que me surpreendi com o espanto dos meus amigos sobre esse fato que, para mim, não foi nada inesperado. Hoje em dia as pessoas entraram na pira de otimizar tudo. Assim como é importante ter uma carreira de sucesso, também é importante estar com o emocional em dia, a barriga chapada, a bunda dura e a iluminação espiritual atualizada com sucesso. É claro que muita gente busca uma revelação espiritual no Caminho ao mesmo tempo que idealiza um retorno triunfante para casa: mais magra e mais iluminada. É um dos comentários mais comuns que você escuta de outros peregrinos, tanto homens quanto mulheres.
Nunca vou me esquecer de um dos primeiros dias, quando parei para dormir em um mosteiro do século 11. Só havia eu e mais um outro peregrino hospedados naquela noite por lá. Enquanto as cidades vizinhas celebravam festas juninas com fogos de artifício por toda a parte, fomos jantar no único restaurante aberto naquele vilarejo perdido no norte de Portugal. No segundo prato de comida e na terceira garrafa de vinho, o homem vira para mim e diz “achei que eu ia voltar para casa fininho, mas comendo e bebendo assim, não vai adiantar nada andar 20 quilômetros por dia”. Esse tipo de conversa se repetiu por todo o caminho, com pessoas das mais variadas idades, nacionalidades e tipos físicos. Mas era especialmente frequente com pessoas magras e com perfil mais esportista. A famosa galera fitness.
Antes de cair na estrada, eu treinei especificamente para o Caminho por 2 meses. É um período muito curto para treinar para o desafio, mas eu não sou uma pessoa sedentária. Eu apenas não sou magra, como todo mundo espera que uma pessoa ativa seja. Em 2019, eu estava com o pessoal do escritório em uma corrida de revezamento em que minha missão era correr 5 km. Uma pessoa de outra equipe ficou doente e não pôde vir. Perguntaram se alguém poderia substituí-la e eu me voluntariei. Nunca vou me esquecer da cara feia que o pessoal mais fitness fez para mim, mesmo que não tenham falado nada (e acho que só não falaram porque são suecos e aqui é muito feio comentar sobre o corpo e a capacidade de outras pessoas; se fosse no Brasil, já seria outra história). Naquele dia eu corri 10 km, fazendo um tempo completamente normal e aceitável para os dois times de revezamento em que participei. E estava me sentindo ótima depois (naquela época eu estava acostumada a treinos de 7 a 9 km, então foi tranquilo). Na semana seguinte, muita gente do escritório veio me cumprimentar e o comentário geral era que ninguém esperava que eu corresse mesmo. A questão é que eu estava correndo três vezes por semana há um ano na hora do almoço, e eu costumava comentar isso com as pessoas logo antes de ir para a academia. Foi quando entendi que, no fundo, ninguém acreditava que eu estava mesmo indo. Eu entendi claramente que era pela minha aparência física. Doeu.
Mas a vida segue. Eu não sou a única pessoa fora do padrão no mundo. E talvez o normal da maioria das pessoas seja mesmo "estar fora do padrão”. Bom, foi isso que eu pensei para me consolar depois da humilhação disfarçada de elogio que eu passei com o pessoal do escritório. Mas nos últimos tempos, entendi que não. O normal não é “ser fora do padrão”. O natural, para a sociedade, é buscar sempre estar no padrão. Não importa se você tenha (ou não) chegado lá, mas sim se você está ativamente tentando. Para sempre. Até você morrer.
Alguma coisa dentro de mim clicou esse ano. Pode ser um senso profundo de amor próprio que tirei do fundo da terra das trilhas do Caminho de Santiago. Pode ser só o fato de ter observado vários tipos de comportamento tóxico em outros peregrinos. Gostaria de dizer que fazer o caminho foi fácil. À medida que o tempo aumenta a distância entre memória e experiência parece que foi tudo realmente fácil, pois sobram só as pérolas da conquista. Mas não foi. Em algum momento ali pela metade, eu cheguei num estado de torpor permanente por cansaço físico e senti emoções que o vocabulário de nenhuma das línguas que conheço foi suficiente para dar conta. A única coisa que eu sabia fazer era fechar os olhos e jogar a mente no abismo de sensações desconhecidas que meu corpo criava. Era dor, era colapso, mas era bom. E era ruim. E era tudo ao mesmo tempo em todos os lugares. Daquele momento em diante parecia que eu tinha engolido o mundo e que o mundo tinha me engolido também.
Quando entrei na catedral de Santiago de Compostela para assistir a famosa Missa do Peregrino, não havia lugar nos bancos repletos de turistas. Sentei no chão duro, encostada em uma das enormes colunas de pedra, e nunca me senti tão ereta na vida. Era como se eu fosse um gigante. Como se o pilar de pedra fosse parte da minha espinha dorsal. Eu era simultaneamente um cavalo correndo livre pelo campo, um besouro gigante no chão de um jardim abandonado, uma mulher na alcova à beira do orgasmo, um rio descendo a montanha e o mar sereno em noite de maré baixa. Eu estava, obviamente, em transe.
O incrível transe alcançado pelo esforço físico desse corpo que o mundo ensinou-me a odiar. No fundo, o desafio de Santiago tem sim tudo a ver com a mente e o corpo. Talvez o pessoal fitness não esteja de todo errado ao pensar em unir o espiritual com o físico. Mas seria fácil demais me colocar nessa posição de superioridade intelectual para julgar essas pessoas. Olha como são fúteis, só pensam em ficar cada vez mais magros. Olha como são bobos, só pensam em bater metas, competir consigo mesmos, usar seus relógios que medem passos para postar a quilometragem nas redes sociais. Olha como são ridículos, buscando beleza em si mesmos quando a beleza está toda à nossa volta, nessas paisagens belíssimas. Quando a beleza real está aqui dentro.
É fácil demais julgar. Ao me sentir brutalmente parte do mundo, me senti também pronta para encarar essa parte insuportável dele, porque talvez aí esteja uma das grandes verdades da contemporaneidade. Não importa o fato de eu desprezar o culto ao corpo perfeito quando eu mesma estou inserida em um universo onde isso é um dos pilares que sustentam toda a estrutura. Eu jamais vou deixar de, lá no fundinho, desejar ser magra porque ser magra é um benefício no funcionamento prático do mundo. Ser magra é um valor, uma medida. E por isso mesmo, o desejo de ser magra não é meu. Ele é do mundo que me cerca.
O grande truque aqui não é lutar contra o desejo ou mesmo aceitá-lo, como quem desiste da vida e se entrega ao lugar-comum. Mas entender que essa construção do ideal de magreza vai continuar existindo, não importa que eu queira rejeitá-lo. Acho que agora entendi meu dilema emocional dos últimos anos. No fundo, eu esperava que aceitar meu corpo como ele é fosse um processo apenas meu. Mas quando me deparei com um mundo que continua reagindo mal ao meu corpo fora do padrão, me senti sozinha e triste. Por muitas vezes, nada do meu processo interno pareceu válido se as pessoas continuavam olhando-me dentro dessa limitação. Não importa que o exercício físico para mim seja uma fonte de endorfina e prazer, o resto do mundo continua vendo-o como um meio para chegar ao corpo perfeito. E isso é triste.
Ano que vem, não vou emagrecer. Não como uma resolução de ano novo, mas como o entendimento final de que o desejo de emagrecer tem se esvaído de dentro de mim conforme desmancho o mundo à minha volta. O fato é que, nesse jogo, eu sempre vou perder e eu sei disso. Porque o mundo vai continuar esperando e exigindo que eu perca uns quilos, e tudo o que me resta é continuar andando nessa situação-limítrofe, essa eterna fronteira: não querer o que tudo aponta que eu deveria querer. Ninguém disse que seria fácil.
Assumir o próprio desejo é desafiador, mas mais sinistro ainda é rejeitar uma vontade coletiva que não encaixa na nossa identidade. Viver é meio isso: onde começa o outro e onde termina o eu? O que pertence a mim e o que pertence ao mundo? O que eu perco quando rejeito a norma da sociedade?
2023: Corpo
Estou reformulando a estrutura da newsletter para o semestre que vem. Estruturei uma linha editorial menos caótica e um dos temas que vou explorar em ensaios é Corpo. Qual nossa relação com exercício físico, saúde, sexo, corpo perfeito..? Parto de uma perspectiva curiosa e, principalmente, contestadora. Política. Anticapitalista. Vamos ver aonde isso vai dar.
Me ajuda, please
Para quem quiser me ajudar a fazer uma newsletter mais interessante, vou deixar meu Curiouscat aqui, assim vocês podem me deixar perguntas, mensagens e sugestões anônimas.
Se eu achar umas coisas interessantes para responder pelo twitter, devo postar lá. Mas você sempre pode me mandar email por aqui também. Sou toda ouvidos!
Feliz ano velho. Obrigada, você que me lê, por estar aqui comigo.
Esse ano escrevi mais de 150 mil palavras nesta publicação. Isso daria um livro de mais ou menos 300 e tantas páginas (se somar com os meses de 2021, seria um calhamaço de 500). Se você está comigo há pelo menos um ano, parabéns! Eu escrevi e você leu um livro inteiro em 2022.
Que venha um ano novo mais verdadeiro, mais raivoso e mais glorioso para todos nós! LULA LÁ!
Os 4 textos sobre o Caminho de Santiago
Por esse ano é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
No Natal desse ano uma pessoa próxima e de quem gosto apareceu muito muito magra, e com uma aparência fitness. Mas era muito visível pra mim que além do corpo magro ela tbm estava muito doente - com muitas restrições, falas sobre comida muito desconfortáveis e julgadoras, e também comportamentos compensatórios - apesar de estar fora de casa ela precisou malhar por 2:30h na casa da minha sogra antes de participar da ceia de Natal. Apesar de estar enxergando a possibilidade dela estar em sofrimento e nem estar muito consciente disso, a verdade é que estar com ela disparou um monte de gatilhos em mim. Eu estava conciente de tudo que estava acontecendo mas foi inevitável pra mim me sentir maior, ter medo do que a pessoas estariam pensando do meu tamanho, e até dispensar de comer uma sobremesa. No dia seguinte fiquei muito tempo pensando sobre como a relação dela com a comida e com o corpo tinham sido capazes de me bagunçar mesmo não sendo comigo. Eu não acho que meu corpo seja, na perspectiva dela, desejável. Mas eu estou no mesmo tamanho desde sempre; eu como as coisas com vontade. Rejeito comida porque não quero, e não porque não devo. Procuro comer com prazer em toda refeição, não dispenso isso. E eu fiquei me perguntando se de alguma forma todo esse conjunto que eu represento também não poderia ser gatilho pra ela naquele momento, o que talvez tenha aumentado os comportamentos dela (especialmente os que ela dirigiu a mim). Foi a mesma coisa que me ocorreu tbm lendo seu texto. Até que ponto todos esses comentários que você ouviu tbm não são parte do conjunto de coisas que são evocadas nas outras pessoas quando estão diante de alguém que sustenta um corpo diferente e tão ou mais capaz de fazer um trajeto desafiador? A gordofobia é um medo de ocupar o lugar do gordo mas também uma punição pra alguém que desafia a lógica punitivista dessa relação com o corpo? Enfim. Tem muita coisa pra pensar aí. A propósito: essa situação do Natal acabou me fazendo lembrar de um texto meu chamado Prazeres permitidos, que acho uma conversa legal com o seu. Eu escrevo tbm pra lembrar a mim mesma dessas coisas. Tá nos arquivos da newsletter, se tiver curiosidade 😘
Amei a reflexão. Acho que sempre vai doer sentir que não atendemos as expectativas alheias, porque fomos treinados para o pertencimento. Aí a gente chega ao ponto de ser considerada "corajosa" por ousar ser, existir. Então seguiremos ousando.
Mas vem cá: como você sabe o número de caracteres, palavras de todos os posts? Tem um contador no Substack? #curiouser