Hoje inauguro um novo editorial, Diário de conexões. Com a proposta de trazer temas que conectam crises existenciais entre passado, presente, futuro, lugares, viagens e intimidade. Espero publicar o editorial pelo menos uma vez a cada um ou dois meses.
No terceiro livro da trilogia Autobiografia Viva, Deborah Levy conta que, até quase os trinta anos, nunca tinha lido nenhuma obra literária que não tenha sido originalmente escrita em inglês. Isso foi suficiente para eu largar o livro ali, no ato. A admiração pela autora, cultivada por anos, escorreu por um buraco rapidamente. Como que uma mulher que vive e trabalha com literatura desde o fim da adolescência demorou tanto tempo para ler pessoas que escrevem em outras línguas? Meio que perdi o respeito. De lá para cá se foram dois anos, até que peguei o primeiro livro da trilogia, Coisas que não quero saber, para reler uma passagem sobre escadas rolantes, da qual gosto muito. E lá estava Deborah falando com muito entusiasmo de Gabriel Garcia Marquez e Marguerite Duras, um colombiano e uma francesa. Eu não lembrava disso quando estava no terceiro livro, quando a julguei tão rápido, tão resoluta. No mesmo livro, ela trata exatamente das questões sobre a literatura inglesa e imperialismo que me importam tanto. De alguma forma, meu coração se amaciou e eu me permiti voltar a gostar dela como antes. Fizemos as pazes no silêncio dessa manhã de quinta-feira.
Eu passei uma década detestando Porto Alegre, minha origem. Diferente da irritação com Deborah Levy, meu desgosto com a cidade aconteceu em ondas. Viajar para outros lugares e morar longe dali foi o que me causou esse imenso ranço. Não sei bem apontar apenas uma coisa entre tantas que passaram a me irritar profundamente quando voltava para lá. O trânsito, a naturalização da grosseria, a violência dos afetos, essas pequenas grandes coisinhas. Convenientemente eu esqueci bem rápido como é comum, dentro de um ônibus lotado em Porto Alegre, que as pessoas sentadas se ofereçam para segurar as mochilas e bolsas daquelas em pé. Uma grande gentileza que nunca vi acontecer em nenhum outro lugar do mundo. Mas é fácil esquecer das coisas boas quando começamos a enxergar as ruins. Como disse a Amanda Palmer no livro A Arte de Pedir, é muito fácil amar o que nós conhecemos pouco, difícil é amar o que conhecemos bem demais.
Algo que fugiu da minha percepção ao longo da década que odiei Porto Alegre é o fato de que eu estava crescendo e envelhecendo longe de lá. Todas as relações na vida adulta se multiplicavam e desenvolviam bem longe e isso permitiu que eu me tornasse outra. Ao voltar para aquela cidade onde passei os primeiros vinte anos da vida, eu também voltava imediatamente a encontrar pessoas e lugares que faziam parte da pessoa que um dia eu fui, uma pessoa cujas falhas e escorregões eu não queria repetir. Mas estar em contato com o passado me fazia voltar a comportamentos antigos, eu voltava a sentir coisas que eu achava que já tinha superado. Em Porto Alegre eu era filha, sobrinha, neta, colega, amiga, madrinha de formas que eu não sabia encaixar essa outra pessoa que vinha lá de longe. Em outras palavras, eu não conseguia deixar de me sentir uma adolescente frágil no lugar onde eu fui uma adolescente frágil.
Muito se fala sobre como a maternidade muda a pessoa que gestou. Eu não sou mãe de ninguém, mas quando a minha irmã se tornou mãe, eu me tornei tia. E isso mudou tudo. No ano em que pisei em Porto Alegre como tia, eu tive o vislumbre de um novo papel, alguma coisa nova por onde construir. Até então eu não entendia muito bem como um bebê, uma pequena pessoa sem quase nenhuma história ou personalidade, exercia tamanho poder nas pessoas ao redor. Mas foi pela ideia e pela coleção de potenciais que meu sobrinho me apresentava que eu entendi. Ao voltar para Europa, eu fiz o caminho de Santiago, atravessei a fronteira entre Portugal e Espanha a pé, sozinha, fiz um retiro espiritual em um castelo na Inglaterra, dormi em um ônibus no sul da França que passou por Toulouse, Cannes e Marselha. Desses lugares, fui parando para escrever cartões postais para o meu sobrinho. Contei para ele coisas que não comentei com mais ninguém. Assim, compreendi que a história de alguém começa muito antes de qualquer coisa, começa por aqueles que a recebem, pela cultura, pela experiência que as pessoas mais próximas constroem a seu redor. Como uma cidade de afetos, construída por aqueles que acreditam na pequena vida que se desdobra.
Descobri que no fundo eu nunca deixei de amar minha cidade, eu simplesmente precisava me distanciar da pessoa que eu fui nela para que outra surgisse. Era preciso uma brecha para ser adulta na minha cidade e ela finalmente veio. Eu precisava viver minha cidade como uma pessoa nova. Agora eu consigo nutrir uma grande ternura por aquela que fui no passado, pois sem ela eu não seria essa que sou hoje — uma pessoa de quem aquela adolescente revoltada seria fã.
A vida é uma caixinha de surpresas.
🌿 Seiva: BROTA
Agora eu faço parte do time da BROTA, programa de parceria da Seiva (que tem uma newsletter ótima, a Aurora). Isso quer dizer que vou poder acessar o conteúdo dos cursos em primeira mão e vou poder contar para vocês do que aprendi.
Nas próximas semanas eu vou assistir o curso online Trabalhando o Texto. Se você quiser participar também, inscreva-se aqui:
Quem se inscrever, me avise. Quero trocar ideias com vocês e talvez até escrever uma edição da newsletter coletivamente com quem viu o curso. Vamos?
📡 Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
🔭
Que interessante essa reflexão, Vanessa! Realmente, muitas vezes passamos a odiar um espaço/lugar nos convencendo que é pelas características dele quando na verdade é pela forma como nos enxergamos dentro dele.
PS. Aqui no DF é comum as pessoas segurarem as coisas para as outras nos ônibus tbm e na minha cabeça isso acontecia em qualquer lugar do Brasil. Descobrindo agora que não é bem assim hahaha
Se uma pessoa não atravessa o mesmo rio duas vezes, como ir à mesma cidade? Que bom que você e Porto Alegre, duas lindas que adoro, fizeram as pazes 🥰