Caminho de Santiago: destino frágil
Eu cheguei a Catedral de Santiago de Compostela no dia 30 de junho, uma e meia da tarde, depois de 250 km percorridos a pé em 13 dias.
*Na newsletter passada eu errei a conta. Estava no 12° dia de caminhada, não no 13°. hehe.
Imaginei esse momento várias vezes. Eu estaria tão exausta que cairia de joelhos na frente da Catedral e me jogaria no chão em um misto de lágrimas e alívio, entregue ao final da jornada, agradecida e catártica. Felicidade e cansaço se misturariam e eu sentiria aquela sensação de dever cumprido.
Suor e dor compensados pela chegada ao destino final.
Mas na verdade eu caminhei até a frente da Catedral como quem passeia pela praça de uma cidade nova. Plena, calma e sentindo-me profundamente descansada. Quase passei reto pela fachada impetuosa.
Tiraram fotos minhas e eu levantei os bastões de caminhada em um gesto de vitória. Com esse gesto, entendi que a jornada havia acabado. E agora?
Atenção: esse texto foi digitado em um arrombo de sentimentos malucos que eu, em um momento “normal” de vida, esperaria um pouco para postar. Mas acho que vocês merecem saber como foi essa chegada.
Fiquem aí com a honestidade da letra.
Meu maior medo
Quando abri a caixinha de perguntas sobre a viagem no Instagram, uma amiga mandou essa “qual era seu maior medo e qual foi a maior surpresa?”. Meu maior medo era encontrar alguém, algum outro peregrino, que quisesse companhia e não respeitasse a minha solidão. Durante o trajeto, é comum sair para jantar com outros peregrinos à noite. Logo depois que todo mundo repete o ritual diário que é encontrar um lugar onde dormir (pensões, albergues etc), tomar banho e lavar a roupa. Encontrar desconhecidos para jantar é um misto de curiosidade, já que tem gente de todos os continentes do mundo fazendo peregrinação, e vontade de socializar. Muitas pessoas fazem o caminho sozinhas, e uma das coisas mais legais é que geralmente essa solidão é respeitada. Sem que combine-se, na manhã seguinte cada um parte do albergue em um horário diferente. Às vezes com 5 ou 10 minutos de diferença um do outro, mas nunca juntos. A não ser que haja consentimento. Mas é bem raro alguém querer sair acompanhado.
Às vezes parece que a solidão é uma forma de gentileza.
É mais comum que se encontre novamente pela estrada, floresta ou vilarejo ao longo do dia e caminhe-se por alguns minutos juntos até que alguém diminua o passo ou aumente a velocidade da marcha. Tem gente que cruzou meu caminho dia sim, dia não. Houveram outros com quem dividi uma garrafa de vinho em uma noite para encontrá-los de novo só 3 ou 4 dias depois, na frente de uma igreja, na mesa de um bar ou dormindo na cama ao lado.
O velho
No final do terceiro dia da jornada, eu estava jantando e bebendo vinho com dois outros peregrinos em Barcelos, cidade portuguesa conhecida pela história de um galo milagroso. Havia um idoso barbudo sentado no bar, agarrado a uma caneca enorme de cerveja, quieto, observando o movimento. O jovem peregrino que sentava à minha frente se dirigiu a esse velho. Eles travaram uma conversa animadíssima em alemão e logo depois o jovem voltou à nossa mesa. Bebemos mais, pedimos a conta e fomos embora. Dormimos no mesmo quarto, eu, o jovem e a peregrina canadense, cada um em uma cama num canto de um galpão escuro de teto baixo, que fazia as vezes de quarto em um albergue público.
Na manhã seguinte, o alemão saiu assim que o sol raiou. Nunca mais o vi. Mas segui encontrando com o velho do bar, sem nunca trocar nenhuma palavra além de oi e tchau. Eu avançava de vilarejo em vilarejo pelo Caminho e costumava vê-lo sentado tomando cerveja nos bares da estrada. Nós cumprimentávamos com cordialidade, mas eu nem tentava conversar. Eu sou dessas que não puxa conversa, mas se puxarem conversa comigo eu respondo.
Já no território da Galicia, em meu oitavo dia topei com ele no restaurante do hotel de Pontevedra. O velho estava acompanhado de uma peregrina holandesa com quem eu casualmente havia dividido o quarto em dois lugares diferentes antes. Já nos conhecíamos bem (tomamos um porre de vinho tinto na noite de San Juan, na animada cidade de O Porriño). Os dois precisavam de uma mão — ou uma intérprete — para falar com os atendentes galegos. Eles conversavam numa mistura de holandês, inglês e alemão, e eu entrei na dança misturando inglês e sueco. Ela fazia o Caminho pela segunda vez. Ele, pela terceira. Ela amava os livros do Paulo Coelho. Ele odiava.
Pediram minha opinião e eu disse que achava que ambos estavam igualmente corretos em seus argumentos. Expliquei porque pouco importava se as coisas que o autor dizia haviam acontecido ou não, o que importa era que estávamos nós três sentados ali, juntos, por causa dos livros dele. No meu caso, a ideia de fazer o caminho surgiu porque uma tia, de quem sinto muita falta, leu os livros do Paulo Coelho e resolveu fazer o caminho. Ela faleceu antes de realizar seu sonho, então eu parti para fazer o caminho em sua memória. No caso do velho, ele leu um dos livros do Coelho e detestou, mas foi assim que ficou sabendo da existência do caminho.
Bebida entra, verdade sai. O velho contou que naquele dia tinha pensado em desistir. Tinha muitas dores e, por um trecho especialmente longo, caminhou gemendo, de cabeça baixa, não encontrando nenhum prazer ou objetivo naquilo. O calor lhe sufocava, a dor lhe enervava e a idade lhe assombrava. Estava se sentindo “down”, como ele mesmo disse. Foi quando levantou a testa para limpar o suor e deu de cara com uma parede de pedra coberta de musgo. Na parede, riscando o tecido verde de plantas, alguém havia escrito um nome. Elisa. “É o nome de uma das minhas filhas” disse o velho. Eu sorri, achei bonito. Ele permaneceu sério. “Ela morreu há 20 anos atrás”.
A holandesa começou a chorar e ele pediu que ela não chorasse, pois aquela dor era apenas dele e da esposa. Ela não conseguiu conter as lágrimas. Pediu licença e foi sentar lá em outro canto do restaurante, sem companhia. Sobrou o velho e eu. Pensei em subir para o quarto, já estava ficando tarde e eu queria começar a caminhar mais cedo no outro dia. Mas também não quis deixar o velho sozinho depois daquilo.
Bebemos mais, rimos muito. O velho contou que começou a fazer o caminho há 20 anos atrás, por isso estava no seu terceiro. Ateu, nunca soube o que fazer com o luto, mas caminhar ajudava. Disse que havia finalmente sentido algo forte naquele dia, algo que nunca tinha sentido antes, e por ele nem precisava mais terminar o Caminho de novo. O clima ficou leve, mesmo que a gente tenha conversado sobre temas pesadíssimos como morte e guerra, também mostramos fotos dos nossos animais de estimação e nossas famílias um pro outro. Quando tive certeza de que ele estava bem, subi para o meu quarto.
Segui minha vida. Dois dias depois, eu vinha pela estrada um pouco arrependida de não ter parado para procurar um lugar para dormir no vilarejo anterior, me sentindo especialmente cansada e abatida pelo sol intenso e o chão de terra seca e dura. Eu estava começando a perder a unha do mindinho do pé direito. Não estava doendo, mas eu estava com medo de pegar uma infecção com o machucado aberto. Além disso, uma bolha enorme se formava na lateral do calcanhar e ardia a pele. É, eu ia precisar parar logo logo, mas não via nenhum sinal de civilização, só plantações e ocasionais caminhos de pedra milenares, construídos pelos romanos.
Foi quando vi o velho sentado em uma pedra, ao lado de uma fonte de água, a uns vinte metros na frente. Acenou para mim, fui até ele. Começou a se ajeitar para voltar a caminhar e resmungou sobre o joelho. Quando viu meu pé, me deu dois curativos extras e não aceitou minha negativa. Agradeci e guardei os curativos no bolso. Achei que ele ia tomar a frente e partir sozinho, mas ele mancava. Senti um ímpeto em andar rápido, seguindo aquela etiqueta de peregrinos solitários, deixando que a velocidade nos afastasse naturalmente. Mas eu também mancava e ficamos os dois andando na mesma velocidade, um do lado do outro. Me senti ridícula, mas não disse nada. Ele também. O silêncio se estabeleceu e andamos assim por não sei quanto tempo. Em algum momento, um de nós começou a rir. Não sei quem foi, mas começamos a rir juntos. O velho se dobrou de tanto rir e precisou parar, apoiado no cajado de madeira enorme (ele mesmo é enorme, meu ombro fica mais perto da sua cintura do que da sua cabeça). Coçou a barba branca e fez sinal para que eu o esperasse. Digitou alguma coisa no celular e me mostrou.
Era o Google Translator. “Vamos dividir um táxi até Padrón?”.
Padrón era minha cidade de destino naquele dia, mas eu já tinha desistido de chegar lá por causa do pé machucado e ficaria no próximo vilarejo que encontrasse. Eu respondi, em inglês, que não queria trapacear no caminho e preferia andar, mesmo machucada. Mas se ele quisesse, eu poderia fazer companhia até chegar um táxi para ele. O velho virou-se para frente e recomeçou a andar. Murmurou, apontando para meu pé direito “enquanto você caminhar, eu caminho”. Pronto, agora eu estava me sentindo culpada pela saúde de um velho que eu mal conhecia. O cabeça-dura ia forçar o joelho — que depois eu descobri que já tinha vários pinos de metal acoplados no osso — porque não queria me deixar sozinha na estrada. Mas eu queria ficar sozinha na estrada, não era esse o objetivo do caminho? Eu já estava fazendo isso há uns dez dias. Há mais de uma semana lutando para caminhar sozinha e vencendo gloriosamente.
Caminhamos em silêncio de novo. Em menos de quinze minutos, vimos prédios à frente. Apertamos o passo e encontramos um bar. “Caña?” perguntou o velho. Eu assenti. Quando o garçom do boteco veio, eu perguntei onde estávamos.
Padrón.
Conferi no GPS do celular, nem sei porque, mas era verdade. Três cervejas para cada um e uma carteira de cigarros depois, eu e o velho partimos para dentro da cidade, para procurar um lugar para ficar. Os albergues ali ou eram esquisitos ou estavam lotados, e fomos ignorando-os. Encontramos um hotelzinho minúsculo chamado El Cuco, no centro da cidade, que tinha 2 quartos disponíveis, cada um por 26 euros. Duas horas depois, de banho tomado e roupas lavadas à mão na pia do banheiro, secando em um cadarço de botas amarrado na janela, eu desci para rua e encontrei o velho me esperando na frente do hotel. Encontramos um lugar para jantar que tinha paella vegana. Enquanto bebíamos em uma mesa externa e esperávamos a comida, o velho me ensinou a dar comida na mão para os passarinhos na praça. E assim como os pássaros agitados na luz do longo pôr-do-sol, outros peregrinos se juntaram à nossa mesa. O dia foi caindo, caindo, e as pessoas vieram, comeram, beberam, foram embora e outras vieram, comeram, beberam e foram embora; o ciclo repetiu não sei quantas vezes. Irlanda, Alemanha, Estados Unidos, Colômbia, Canadá, Portugal. Todos esses países dividiram algum petisco conosco, alguma história ou gracejo. A noite subiu. A moça do bar disse que eu e o velho tínhamos consumido 17 cervejas. Fiquei preocupada com a conta, mas cada cerveja custava apenas 1 euro. Pagamos, voltamos pro hotel e nos despedimos nas escadas.
Minha maior surpresa
Às 8h30 da manhã eu desci pronta para a caminhada solitária. Mas o velho me esperava na frente do hotel. Fui pega de surpresa por mim mesma; fiquei feliz de vê-lo. Tomamos café da manhã na esquina e partimos juntos. Padrón fica a 24 km de Santiago de Compostela. Era a reta final.
Depois de apenas 9 km de caminhada, paramos para almoçar num vilarejo galego minúsculo chamado Picaraña. Quando sentei na cadeira, senti que precisava muito descansar. Nunca tinha me sentido tão cansada na vida. O velho olhou para mim e perguntou “vamos ver se eles têm dois quartos aqui?”. Eu assenti. Em cima do restaurante havia uma estalagem e, felizmente, eles tinham dois quartos vagos.
Dormi por quinze horas. Para quem estava dormindo apenas 5 horas por noite, foi um bálsamo. Encontrei o velho na mesa de café da manhã, no dia seguinte. A essas alturas, eu já sabia da morfina, do diabetes, dos pinos no joelho e da insônia. Às 3 e às 5h da manhã ele levantava para procurar um bar aberto. Esse hábito rendeu histórias, como a briga que ele viu na frente do El Cuco. Inesquecível, ele repetia às vezes, do nada. E dava risada.
Era o décimo terceiro dia da minha jornada. O velho decidiu que dormiria de novo na estalagem de Picaraña. Iria caminhando até Santiago de Compostela comigo e depois voltaria de ônibus para a estalagem. Eu ficaria em Santiago.
Então, partimos juntos para a última de todas as caminhadas do Caminho. Fui com a mochila nas costas, como todos os dias. O velho, não. Deixou a mochila no quarto, já que voltaria mais tarde. “É a primeira vez que termino o caminho sem esse peso nas costas”.
Eu estava a dois passos atrás dele e mantive essa distância. Por baixo dos óculos escuros, pensei na sua filha, Elisa. Senti um nó estranho na garganta. Mas não comentei nada.
Às 13h30 chegamos na Catedral de Santiago de Compostela. Fotos aconteceram. Ganhamos um certificado da igreja, a famosa Compostela, por termos terminado o caminho. Mas sinceramente? Na frente da catedral, eu não senti quase nada. Foi como ir ao mercado ou chegar na frente de um ponto de ônibus. Nem cansada eu estava. Me sentia calma, como se aquilo fosse algo corriqueiro.
Foi cerca de quatro horas depois, quando eu entrei em uma loja de souvenirs em Santiago, que senti o baque. O velho disse que me esperaria lá fora. Eu entrei na loja com a visão embaçada. Porque eu sabia. Seria a última vez.
Vi pulseiras, escapulários, imãs de geladeira e cartões postais como um grande borrão. Mas fingi que prestava atenção às bugigangas. Precisava dar uns minutos para o velho. Para que ele tivesse espaço para desaparecer da minha vida em paz.
Quando saí da loja, olhei para os dois lados. Uma multidão ia e vinha por todos os cantos. Santiago é dessas cidades européias absurdamente turísticas, de ruas estreitas e barulho, muito barulho. Lá longe, no final da rua, vi um pontinho verde se afastando. Eu ri da tentativa do velho de ser discreto com aquela camiseta neon. Quis ir atrás. Cheguei a começar a andar apressada para alcançá-lo, mas decidi conter o impulso. Entrei na primeira porta que vi à minha direita. De algum modo me enfiei no meio de um grupo de turistas, em uma visita guiada em espanhol, no museu da Catedral.
E ali, por baixo da PFF2 e dos óculos escuros, dentro de uma câmara de pedra cheia de antiguidades e turistas espremidos uns contra os outros, onde um guia falava efusivamente sobre como a lenda diz que os restos mortais do apóstolo Tiago foram encontrados ali naquele lugar no ano de 813, eu chorei em silêncio.
Eu tinha, enfim, chegado a São Tiago do Campo de Estrelas.
Obrigada por me acompanhar até aqui.
Essa é a última edição da newsletter sobre o Caminho de Santiago por enquanto. Não quero me tornar monotemática. Isso não quer dizer que vou parar de pensar no caminho, mas talvez seja a última vez que eu dedique uma edição inteira para falar só dele.
Vamos ver.
Se vocês quiserem mais ou tiverem perguntas, mandem ver nos comentários.
Recomendações
“Lidar com a solidão não tem a ver com encontrar companhia, mas com estar a vontade na própria pele — inclusive admitindo que o sentimento de estar sozinho é muito difícil. Ser honesto é melhor que disfarçar nossa angústia. Ser honesto nos dá ao menos a chance de nos reconhecermos profundamente uns nos outros pelo sentimento comum que a gente partilha. E é daí que pode surgir a intimidade [..]
Somos mesmo um bocado sozinhos, mas é sempre muito bom encontrar companhia pra comer.”
Ler a última edição da newsletter Outra Cozinha foi como receber um abraço depois de terminar essa jornada.
Outras edições sobre o Caminho:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Que relato gostoso de ler, Nessa. Enquanto você contava eu fiquei visualizando tudo, adoro teu jeito de escrever, sinto que estou dentro da história como observadora, e isso é demais!
Obrigada por compartilhar com a gente um pouco dessa aventura e, por favor, vamos marcar mais um vinho porque quero saber mais dessas histórias hahaha beijo!
Chorando aqui com esse final. Fiz o caminho junto com você e nunca tinha sentido antes essa vontade de fazer uma viagem sozinha. Obrigada por isso!