São 6h30 da manhã. Muitos galos cantam.
Estou deitada no escuro de um quarto em um albergue de baixo custo em Barcelinho, Portugal. Na rua debaixo há uma ponte medieval que cruza o rio Cávado, chegando à miraculosa Barcelos. Aqui no quarto, na cama à direita, dorme um alemão que me fez rir até doer a bochecha ontem e, à cama da esquerda, uma canadense lindíssima, de 52 anos, se levanta com todo o cuidado do mundo para não fazer barulho.
Tenho a impressão que o final de todo dia do caminho de Santiago é uma piada. Porque toda noite começa nesse estilo “uma brasileira, um alemão e uma canadense entram em um bar”. O final da piada é que na manhã seguinte todos partem antes das 8 e talvez nunca mais se vejam.
Por que Santiago?
Sempre ouvi falar do tal Caminho de Santiago, mas pouco sabia do que se tratava. Nunca tinha lido o famigerado livro do Paulo Coelho, O Diário de um Mago, mas tive uma tia-madrinha que era fascinada pela história1. Ela faleceu de um modo trágico quando eu era adolescente e eu sempre pensei em fazer o caminho em sua homenagem. Mas era uma daquelas coisas “um dia eu faço“ e nunca ia atrás de fazer de verdade.
Até que em abril deste ano, assim que voltei de uma visita ao Brasil, resolvi que era agora ou nunca.
Por que o caminho português?
A cidade de Santiago de Compostela fica na Espanha e seu nome significa São Tiago do Campo de Estrelas.
Lá, dizem, está depositado o que sobrou do apóstolo Tiago, numa cidade que antes era um campo iluminado pela Via Láctea. Ou, melhor dizendo, de onde o céu é especialmente limpo e podemos ver as estrelas com muito mais nitidez.
Com o tempo, as pessoas das localidades vizinhas começaram a peregrinar para Santiago de Compostela, formando o que hoje são dezenas de caminhos. Hoje chamamos todos eles de O Caminho. O mais popular de todos é o de Paulo Coelho, que começa no sul da França e cobre mais de 600km.
Eu escolhi tentar percorrer o Caminho Português Central a partir da cidade do Porto, coisa de cerca de 250km.
Tendo recentemente descoberto que tenho alguma coisa de Portugal (geneticamente falando), ainda que guarde muito rancor e ressentimento a respeito do fato, conclui que seria interessante passar um tempo atravessando um pedaço desse país a pé. Sem contar que parece uma versão pocket do caminho. Como uma via segura para quem duvida que vai conseguir terminar a aventura.
60km em 3 dias
Talvez eu fizesse mais quilômetros se não parasse o tempo todo para tirar fotos de borboletas, montanhas e gatos. Ou para entrar nas igrejas e capelas, roubar água benta para me refrescar no calor do verão europeu, desviar da rota um pouquinho para ver uma cruz decrépita no lugar onde alguém operou um milagre que parece uma piada do Monty Python, esse tipo de idiotice.
Ainda não estou pronta
A primeira etapa da viagem aconteceu e eu achei que estaria pronta para contar para vocês aqui. Mas não estou. Desculpa. Eu vou contar logo logo, estou anotando tudo no meu diário de viagem. Só estou processando as coisas. Afinal, ainda estou fazendo o caminho. E todo dia tem um demônio diferente. Parece uma quest de jogo, não deve nada a nenhum game.
Loucura
Ontem eu conversava com essa canadense com quem dividi o quarto no albergue e ela me perguntou "você também assovia?“ e eu respondi sorrindo “sim. também canto em voz alta e fico olhando para trás para ver se alguém tá me vendo“.
Depois de umas 3 ou 4 horas de silêncio, estrada e esforço físico é necessário se expressar para continuar. Nem que seja cantando músicas de valor sentimental a plenos pulmões para as plantações de milho ao redor.
Caminhar das 8 da manhã às 5 da tarde, sem parar, sozinha pelas estradas de um país desconhecido e carregando uma mochila com todas as suas coisas essenciais tem me levado à loucura. Anteontem o cabo de carregar meu celular quebrou e eu consegui um novo só depois de 27km de estrada, e muita conversa com gente da região.
Mas vou compartilhar uma breve história do primeiro dia de viagem com vocês. Uma bem curtinha.
O milagre do bastão
Para assegurar o funcionamento dos joelhos, é recomendável usar um par de bastões de caminhada, daqueles que europeus idosos adoram usar. Eu tinha um desses apenas, me faltava outro para fazer o par.
Para economizar, comprei passagens aéreas de baixo custo, sem direito a despachar bagagem. Sem contar que nem sabia se me deixariam embarcar na aeronave com o maldito bastão. Não era muito claro se era permitido ou não. Por isso resolvi tentar entrar com o meu bastão filho único e depois, em terras portuguesas, eu compraria o segundo “pau de caminhar“ - como passei a chamar a tralha.
Eis que, para minha surpresa, não houve nenhum estresse no aeroporto. Me deixaram entrar com o bastão. Só faltava eu lembrar de comprar mais um em Portugal.
Dois dias depois, na cidade do Porto, fui a Catedral iniciar a peregrinação. Dei uma volta longa pela igreja, ajoelhei no altar da nave e fiz uma meditação longa, machucando meus joelhos antes de partir. Foi quando eu pensei “caralho. nem comecei o caminho e entrei na onda do martírio. isso é coisa que católico ama. sabe o que mais eles amam? o mártir que depois do martíriio se fode mais ainda”. Levantei abruptamente e saí correndo dali.
Na porta, pensei em ir pela esquerda, por onde entrei, mas resolvi sair pela direita no último segundo. Só pensava que peloamor alguém me desse um sinal de que as coisas ficariam bem e essa decisão de viajar sozinha não era um delírio descompensado, crise dos trinta, sei lá. Quando pisei para fora da igreja, virando para a direita, eis que eu dei de cara com: um pau de caminhar idêntico ao meu, encostado na parede de pedra.
Pendurado no pau estava uma folha de caderno.
Era um presente de uma pessoa aleatória. Pelo instagam, descobri que era Mirko, um italiano simpático que tinha acabado de voltar pra Porto depois de completar o caminho português. Ele ficou bem feliz de saber da minha história e a gente trocou uma ideia pelo Instagram.
Hoje
Terminei esse post às 9 da noite, depois de 24 km de caminhada, a única hóspede do único albergue num raio de 5km.
Comi um pão e tomei uma garrafa de vinho. Agora vou lá deitar.
Final de semana que vem tem mais.
Se eu não enlouquecer no caminho.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
eu li o livro do Coelho logo antes de partir e agora entendi várias coisas malucas a respeito da popularidade dele; muitas delas só depois que comecei o caminho. Devo comentar em breve.
Que incrível encontrar um bastão igual ao seu de presente!
Começando agora a ler sua aventura.
Saudade de fazer minhas caminhadas sem rumo.
Tô adorando ler esses relatos depois de ter escrito sobre a mesma coisa... Adoro como você vai contando sobre os detalhes, tipo o albergue, seus horários de caminhada... Sério que você saía às 8? Pra mim seria super tarde! Vou ler agora as outras edições