Capitalismo, democracia e outras drogas 💊
Respondendo leitores #3 e a ideia de sistema político ideal
Hoje eu respondo a mais uma pergunta anônima. Essa foi uma das primeiras enviadas na caixinha, mas demorei para encará-la porque talvez ela esteja entre as mais complicadas e perigosas. Mas me senti bem em respondê-la no meu tempo e quando senti o ímpeto que só a motivação política gerada pela raiva provoca.
Para participar dessa coluna, basta me mandar uma pergunta.
Respondendo leitores #3
Vejo você falar muito sobre seu desprezo ao capitalismo, mas ainda não vi sua opinião sobre qual seria o sistema ideal para o mundo. Como estamos vivendo um tempo de discutir e repensar sobre isso, queria entender sua posição de pq o capitalismo não ser um meio de redução de pobreza e qual seria o formato possível, considerando a análise sob o ponto de vista da natureza humana ser propensa a falhas e corrupção. Thomás Hobbes dizia que o homem é o lobo do homem e lord Acton que o poder absoluto corrompe absolutamente. Particularmente eu tenho dificuldade em confiar que outro ser humano quando dotado de poder vai realmente buscar fazer o bem e não apenas buscar o seu bem. Historicamente temos muito mais exemplos de governantes visando seu próprio bem do que o bem popular. Em micro e macro cenários conseguimos observar isso. Por isso tenho dificuldade em enxergar um grande governo “bondoso” e que não será corrompido por poder e dinheiro. Qual sua visão? Acha que uma solução seria a inteligência artificial? Tenho dificuldade em me posicionar e queria a percepção de quem possui um conhecimento mais vasto. Obrigada.
Cara pessoa leitora anônima,
Obrigada pela confiança em perguntar algo tão complexo. Não sei se tenho as respostas que você espera, provavelmente não. Mas vamos lá.
Vou dividir essa longa pergunta em seções comentadas.
“Vejo você falar muito sobre seu desprezo ao capitalismo, mas ainda não vi sua opinião sobre qual seria o sistema ideal para o mundo.”
Um sistema ideal absoluto para o mundo não existe. A ideia de um mundo ideal muda radicalmente de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de classe social para classe social. Assim, eu posso ter a minha própria ideia de mundo ideal de acordo com o que eu acredito, mas ela jamais será exatamente a mesma ideia para qualquer outra pessoa, pois temos todos uma história e sentimentos próprios, que jamais serão idênticos. Mas podemos dizer que há experiências de vida que se encontram, como por exemplo, discutir o direito de moradia, pois é uma questão que atravessa classe social, raça e nacionalidade, mas exatamente a variação desses três elementos muda a maneira como cada pessoa enxerga a situação. Esse é o problema da democracia, pois nunca existirá um projeto de sociedade que satisfaça as expectativas de todos os cidadãos inteiramente, mas há pontos de contato que são negociados o tempo todo e por isso que, mesmo sob a democracia, sentimos que os problemas nunca terminam de ser solucionados — eles estão em constante negociação entre todas as partes. Nesse exemplo fácil da moradia, podemos entender que o mundo ideal para alguém de classe mais baixa é radicalmente diferente do mundo ideal para alguém na classe média alta, pois a moradia ideal para cada um tem características próprias, construídas exatamente pela realidade e privilégios (ou a falta deles) em que cada um cresceu.
“queria entender sua posição de pq o capitalismo não ser um meio de redução de pobreza…”
O que é pobreza? Pela definição da ONU1, a pobreza é caracterizada pela malnutrição, pela discriminação social e pela exclusão na participação da tomada de decisões políticas. Esse último elemento, logo depois da fome, talvez seja o mais fácil de entender para todas as pessoas. Se simplificarmos a definição de pobreza para apenas “exclusão na participação da tomada de decisões”, podemos nos perguntar então como o capitalismo reduziria esse problema. Mas vamos parafrasear antes, para ficar melhor de entender: como o capitalismo colocaria pessoas pobres no governo?
Há pouco mais de uma década, no Brasil, eu trabalhei por alguns anos em projetos de ação de políticas públicas e tive a oportunidade de participar de atividades no congresso nacional. Então, pego a imagem literal da entidade “governo” aqui e a coloco em uma das suas representações máximas no mundo físico: o prédio do congresso, onde trabalham os parlamentares e suas equipes. Para entrar no prédio, você precisa passar por uma pequena sabatina de revistas e raio-x. E além disso há um certo dress code, uma expectativa velada de que você esteja vestida de acordo. Os homens entram de terno, por exemplo. O terno é a vestimenta de qual classe social2? Qualquer uma, menos a classe trabalhadora e qualquer categoria próxima dela (por isso a imagem dos indígenas no congresso é tão forte, pois ela marca uma diferença muito básica, a visual). Começamos por aí. Um dia eu fui convidada para ser juíza em um campeonato de programação promovido pelo congresso. Na reunião de avaliação dos projetos apresentados, uma deputada estava sentada ao meu lado e disse o seguinte “eu admiro muito a geração de vocês, jovens. Quando meu sogro era novo, tudo o que importava para ele era adquirir terras, fazendas, pois era assim que você era feliz, como proprietário de terras. Quando meu marido era novo, ele se preocupava em comprar imóveis na cidade, vários apartamentos, e passar em concurso público, para garantir que teríamos conforto. Hoje o meu filho, recém formado em medicina, não quer saber de nada disso. Ele se tornou médico da família e foi para o meio do nada, lá no norte, cuidar das pessoas pobres voluntariamente, porque é isso que o faz feliz. Eu acho que essa geração de vocês é aquela que encontra a verdadeira felicidade e vai mudar o mundo. Vocês não se preocupam com dinheiro, vocês se preocupam com os outros”.
As pessoas aplaudiram a fala da deputada e eu não consegui. É claro que o filho dela poderia ir atrás do sonho da medicina e da caridade porque estava equipado com a riqueza acumulada pelo avô e o pai. E a incapacidade dessa deputada de enxergar essa curva me doeu no fundo da alma. Eu pensei em mim mesma, já que ela dizia que eu e o filho dela tínhamos a mesma idade. Pensei se eu, com minha mãe manicure e meu pai taxista, teria condições de seguir um sonho de ir para “o norte” (ela não especificou aonde no norte, o que é muito comum para quem enxerga as regiões do Brasil como blocos únicos e simples) ser médica voluntária em sei lá que projeto. Quando ela falou de geração, ela queria dizer as pessoas da nossa idade, mas as pessoas da nossa idade só tem isso em comum: a idade. Todo o resto é uma miríade de diferenças de classe. Veja que eu e essa mulher ainda tínhamos algumas ideias de mundo ideal em comum, pois somos ambas feministas, ambas de esquerda e por aí vai. Mas o discurso dela expos nossa diferença de classe. Uma coisa tão óbvia para mim era simplesmente invisível para ela. E era essa mulher que estava ali no congresso tomando decisões por mim e minha classe social.
O capitalismo, antes de tudo, é simplesmente o acúmulo de riquezas. Ele funciona muito bem na democracia, pois ele permite que as pessoas avaliem o mundo segundo sua própria experiência de vida — e a democracia é uma disputa de visões de mundo. O Brasil é a única república do mundo cuja independência foi proclamada por alguém da monarquia. Mas quase todas as sociedades contemporâneas herdaram governantes pela lógica da posse de terras e continuam operando assim porque quem tem condições de perseverar em uma campanha política é uma pessoa com acesso a recursos. A pobreza é caracterizada pela falta de recursos — dos mais básicos, como comida e casa! — e por isso a pobreza é anônima. A democracia privilegia quem é ouvido e o pobre não tem voz. Ninguém se projeta na história de vida de uma pessoa que nasceu e morreu na pobreza, pelo contrário: as pessoas se inspiram nas histórias de quem supera a pobreza, como se o distanciamento dela fosse a prova final de um valor.
A distância da pobreza se manifesta pelo seu oposto: a riqueza. Se o capitalismo é o acúmulo de riquezas, no capitalismo não há glória nenhuma para a falta de riqueza. Portanto, minha resposta é: o capitalismo é incapaz de reduzir a pobreza. Inclusive porque a existência de pobreza é condição inerente para o capitalismo continuar. É uma questão simples de responder, mas as pessoas insistem em perguntá-la de novo e de novo porque elas se sentem incomodadas. Elas querem erradicar a pobreza sem erradicar o capitalismo, porque elas tomam para si o problema, como se no âmbito individual a gente pudesse fazer alguma coisa significativa. Não podemos. É um sistema, deve ser erradicado pela sociedade como um grupo, não individualmente.
“...e qual seria o formato possível, considerando a análise sob o ponto de vista da natureza humana ser propensa a falhas e corrupção.”
A natureza humana mais básica se resume a comer, ir ao banheiro e dormir. Esses são os únicos elementos que podemos provar com toda certeza que unem todas as pessoas que estão e já estiveram no planeta Terra. Muitos pensadores entraram na cilada de definir a natureza humana por valores mais elaborados e abstratos, colocando-nos em caixinhas filosóficas de bem e mal. Na verdade, eles estão apenas delirando respostas para uma pergunta que não tem solução definitiva no âmbito das ideias e emoções. Mas tem uma resposta muito prática que está aí para todo mundo ver. Comer, cagar e dormir. Todo o resto faz parte da cultura, da classe social e da história pessoal de cada um. A ideia de que a natureza humana é “propensa a falhas e corrupção” é só isso mesmo, uma ideia no meio de inúmeras. Se você acreditar nisso o suficiente, você vai deixar de ver as pessoas de outros modos.
Ideias podem ser paredes muito mais altas do que os muros que dividem os bairros de uma cidade. Cuidado.
“Particularmente eu tenho dificuldade em confiar que outro ser humano quando dotado de poder vai realmente buscar fazer o bem e não apenas buscar o seu bem. Historicamente temos muito mais exemplos de governantes visando seu próprio bem do que o bem popular. Em micro e macro cenários conseguimos observar isso. Por isso tenho dificuldade em enxergar um grande governo “bondoso” e que não será corrompido por poder e dinheiro. Qual sua visão?”
Quando você fala de governo bondoso, eu penso naqueles folhetos religiosos, com seus cenários idílicos de paraíso, onde as pessoas vivem em paz montando nas costas de tigres e leões. Isso porque a ideia de governo bondoso é muito cristã, baseia-se no desejo de que uma entidade maior do que todos vai sempre decidir o que é melhor para o coletivo e assim alcançaremos uma harmonia infinita. Eu reconheço que há um grande conforto em pensar que outra pessoa é capaz de me dizer o que é certo e o que é errado. Esse é um dos prazeres de alguns submissos na cena BDSM, por exemplo, ser mandado por alguém. É relaxante porque tira o peso da decisão e tira a responsabilidade de pensar. Esse é o grande tesão do cristianismo. É o privilégio de não ter agência própria, de não precisar fazer escolhas segundo os próprios critérios, de ter um script sobre o que é certo e o que é errado, pois há um deus maior lá que vai cuidar de tudo no final. Existem muitos memes na internet sobre a frustração das pessoas com a vida adulta, por exemplo, uma vida que exige responsabilidade e pagamento de boletos. Não é à toa que o sonho de ser sugar baby virou uma piada com um grande fundo de verdade. O mundo exige demais da gente sob o capitalismo, ninguém descansa, todos querem ter um sugar daddy para garantir que se come, caga e dorme com conforto e segurança. Quando os pais de família sentem uma grande excitação em eleger um governante parecido com eles, o que eles querem é isso também. Um pai. Na prática, historicamente os pais da política tem sido ausentes ou contraditórios e não deuses bondosos com suas barbas brancas de sabedoria. Talvez aqui a gente caia na mesma cilada do bem e do mal dos pensadores, esse dualismo absoluto que mais limita do que liberta. Mas é inegável que assim como os submissos da cena fetichista, para a população, quem se adequa à norma é recompensado. Quem não se adequa é punido. Só que adequar-se à norma não significa segui-la, mas corresponder a sua expectativa. Pode-se nascer na classe trabalhadora e seguir as normas, trabalhar e estudar e trabalhar mais, e ainda sim nunca se adequar à expectativa que a sociedade tem para um adulto funcional. Quantas pessoas trabalham, trabalham e trabalham, mas não conseguem ter dinheiro suficiente para manterem-se sozinhas? Esse é um bom exemplo sobre seguir as normas, mas ainda sim ser punido. Por isso a norma não é questão de seguir as regras, mas atingir o acúmulo de riquezas adequado para corresponder a um modelo de cidadão ideal, imposto pelo liberalismo.
Eu acho que a pergunta aqui não é se um dia teremos um governo que não seja “corrompido por poder e dinheiro”. A pergunta que me faço é: como organizar a sociedade sem governo, sem poder e sem dinheiro? Para isso é preciso sair da lógica do mundo que nos é oferecido hoje. Precisamos imaginar e pensar.
Percebe a diferença? Pensar é difícil quando não temos prática. Mas enquanto deixamos que os outros pensem por nós, nos inserindo o sonho falido de um “governo bondoso” que nunca veio e nunca virá, estaremos sujeitos a essa visão cristã que apresenta um único jeito de viver.
“Acha que uma solução seria a inteligência artificial?”
Não. Absolutamente não. A inteligência artificial é uma ferramenta, tal qual um martelo. Quem decide se vai martelar um prego ou a cabeça de uma pessoa é a mão que segura a ferramenta.
Por isso é tão importante falar de política. Ela define quem é cabeça, quem é prego e quem segura o martelo no final do dia.
A democracia sob o capitalismo
Há de se diferenciar sistema político de sistema econômico, mas isso não quer dizer que eles não estejam profundamente entrelaçados. Democracia e capitalismo são inseparáveis porque sua história no mundo moderno é paralela. Eu sei que a maioria das pessoas quer respostas concretas, soluções prontas, porque a necessidade de mudança é urgente. Mas para operar mudanças é necessário dar dois passos para trás e entender porque chegamos até aqui.
Talvez isso seja o que separa o meu eu-jovem do meu eu-agora. O primeiro tinha sangue nos olhos porque enxergava as diferenças à superfície e queria usar de formas violentas para mostrar a que veio, botar os prédios das instituições abaixo de uma única vez, quando o segundo tem a noção de que as estruturas antigas precisam ser destruídas com astúcia, uma a uma, para que uma explosão sem planejamento não leve consigo quem plantou a bomba. 🟤
Essa foi mais uma edição de Respondendo Leitores. Envie sua pergunta também! Pode ser anônima.
📡 Satélite de recomendações
Livro. Ideias para adiar o fim do mundo, do Ailton Krenak, pela Cia das Letras, oferece respostas para quase tudo o que eu problematizei aqui hoje.
Newsletter. O
contou sobre como pretende fazer uma cobertura literária das olimpíadas de Paris e eu acho que vocês vão gostar do projeto. Fica a dica: Medo e delírio nas Olimpíadas de Paris.Filme. Eu tenho pouca paciência para grandes franquias de super-heróis no cinema e muito menos paciência para ter discussões rasas comparando livro vs filme em adaptações. Mas se tem uma obra que faz colocar tudo isso abaixo é Duna. Meus amigos mais próximos sabem que é com Duna que eu deixo o homem nerd chato de meia idade que mora dentro de mim HABLAR. Embora eu tenha gostado muito da adaptação do Villeneuve na Parte 1 — falei sobre isso largamente neste ensaio para o portal de cultura Querido Clássico, sobre o discurso pós-colonial da obra —, eu não gostei tanto assim da Parte 2. Não sei se vale a pena escrever sobre isso (me digam se vocês gostariam de ler sobre minhas loucuras), mas eu queria convidar vocês a desfrutarem da adaptação de 1984, feita pelo David Lynch. Eu tenho uma relação bizarra com as obras do Lynch, acho que eu sou fã e hater simultaneamente, o que talvez descreva uma relação de amor profunda. A gente só pode amar e odiar profundamente as coisas que nos fascinam acima da média. Então fica aí a dica: Duna do Lynch.
Newsletter. A inteligentíssima
escreveu um ensaio sobre um assunto espinhoso e delicado: É possível ser feminista e feminina? Vale cada palavra.Livro. Eu li o Avesso da Pele, pela Cia das Letras, ano passado e foi uma grata surpresa descobrir a prosa do Jeferson Tenório. Por um acaso do destino eu o conheci pessoalmente em outubro e, embora tenhamos conversado muito pouco e em um ambiente bem caótico, foi o suficiente para perceber que naquele rosto mora alguém que sabe a que veio. Precisamos de mais intelectuais como ele escrevendo sobre o Brasil.
Newsletter. Faz tempo que eu quero falar da
, da minha querida amiga de muitos anos . Acho que vocês, que gostam muto de ler e tem sede de leituras diferentes, vão se deliciar com o ensaio e as indicações dela no texto Velhice, memória e loucura de mulheres latinas.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Nos estudos marxistas, a definição de classe trabalhadora é diferente da que eu uso aqui. Ela vai se dividir muito precisamente entre proletariado e burguesia. Afim de demonstrar as diferenças de classe entre o próprio proletariado, eu escolhi diferenciar a classe trabalhadora como o que o IBGE classificaria como classes C, D, E. Para entender melhor as diferenças, consulte: classe social para a sociologia.
Putz Vanessa que texto - resposta !! Excelente ! Me emocionei na clareza , simplicidade e luz desta suas colocações, são reais e objetivas , nos lembrando se queremos mudanças e evolução é uma tarefa que começa conosco , ao nosso redor e por ai vai .. passo a passo , nesta dinâmica que é a vida e o viver... hoje o agora, abraços muito amor e luz em seu trabalho !!1
Caralho! Tu é foda mesmo, heim... Que texto!