Vocês pediram e eu fiz: esta edição tem uma versão narrada em áudio. Quem não curte áudio, é só ignorar esse botão de play e ir direto para o texto abaixo.
Você já nadou em alto-mar? Eu já. É muito diferente de nadar na piscina, ainda que a mecânica corporal da coisa toda, os movimentos e respiração, seja a mesma. A ideia de transitar pela superfície da água no meio do oceano, principalmente para alguém que não sabe nadar, pode ser uma das imagens mentais mais assustadoras do mundo. As pessoas temem tudo. As ondas, o vento, os monstros invisíveis da imaginação, mas sobretudo, me parece que o grande medo é simplesmente a ideia de ficar à deriva. Um corpo humano vivo no meio de uma imensidão. A primeira vez que nadei em alto-mar eu estava em um lugar a 3 mil quilômetros de casa. Tive medo de um tubarão branco imaginário, então mergulhei de olhos abertos e tentei enxergar alguma coisa entre a pupila, a água e o sal. Na água não tinha celular, relógio, documentos, nada comigo. Nada, nada. Nada que me identificasse ou trouxesse comunicação com o resto do mundo. A única roupa era a roupa do corpo: um biquíni. Quando cheguei na base para onde estava nadando, deitei esticada de barriga para cima e esperei que o sol me secasse. Foi a primeira vez que não tive vergonha do meu corpo, pois não havia ninguém ali além de eu mesma, o mar e a imaginação. Ainda hoje, quando estou nervosa, eu resgato essa sensação e me sinto livre. Semana passada, em uma piscina, morri de medo de entrar no toboágua. Já tinha inspecionado a entrada, a saída, me informei da duração do trajeto (ridículos 10 segundos) e concluí que a chance de me machucar era mínima. Um ambiente controlado para experimentar uma dose saudável de adrenalina. E eu demorei quase uma hora para tomar coragem e descer pelo tubo escuro.
Eu sou claustrofóbica.
O foco é uma ilha
Quando as pessoas falam de foco, penso numa imensidão. O mundo é imensidão. O céu é imensidão. Os pensamentos também são imensidão. O foco é o olhar que enxerga a ilha lá na frente, no horizonte, quando estamos em mar aberto. O esforço das braçadas contra a corrente, as ondas e o medo do desconhecido. No início, a ilha é pequena, quase não enxergamos seu contorno com todo aquele sol brilhando contra a água. Mas à medida que nadamos, ela vai crescendo. Até que o mar todo fica para trás e nós não enxergamos mais uma ilhazinha à frente, mas sim um extenso banco de areia e então uma praia que se estende belíssima à nossa frente.
Como vamos nadar em direção a ilha se estamos tratando o foco como se fosse um toboágua?
Quando leio artigos sobre melhorar a capacidade de foco, há um tom de controle, de começo, meio e fim. De rapidez. O foco parece um objetivo em si — não uma ferramenta para chegar a um lugar.
Atenção, por favor.
Se você está há anos tentando ser uma pessoa mais focada e falhando miseravelmente, ou conseguindo focar apenas por curtos períodos de tempo, por que o lado errado desta história é você? Se toda essa gente na internet reclama da mesma coisa, por que estamos achando que há algo de errado conosco individualmente?
Todo mundo quer ter mais foco, mais atenção e menos distração; mas todo mundo está distraído, disperso e cheio de coisas para fazer. Rolamos a tela do celular sem nunca chegar ao final. Isso é o limbo? Estamos no inferno? Sinto uma incorporação da lógica da timeline infinita na própria vida, onde a cadeia de tarefas nunca acaba. Como uma corrente marinha arrastando nossa atenção de um lado para o outro. Uma imensidão de distrações nos afogando.
Um dos meus aspectos favoritos sobre nadar no mar é que dá para ter momentos de paz profunda e tranquilidade, se a gente aprender a relaxar. E para relaxar, temos que nos sentir seguros. No mar de informações do mundo moderno, não temos muita segurança de nada e somos facilmente fisgados por redes de pesca que são mais perigosas do que qualquer corrente marinha.
Não sei de onde veio essa analogia toda, mas hoje eu senti saudades do mar e me inspirei.
Também tenho uma teoria pessoal de que o foco é um aspecto superestimado da condição humana. Esses tempos, conversava com um pessoal que comentava — foi no evento O texto & o tempo — que a maioria das pessoas tem ideias quando toma banho. Eu já tinha conversado isso com uma terapeuta e ela disse algo como: as pessoas estão nuas, sozinhas e num momento de relaxamento profundo, offline. E então essa magia fez sentido para mim, que não costumo ter esses momentos geniais no banho e estava me sentindo meio de fora do clubinho. Penso que as boas ideias precisam de uma imensidão serena para surgirem. Precisam também de menos foco. De menos atenção centrada em um objetivo.
O mundo moderno nos impede de ficar à deriva.
Escrever essa pequena nota me lembrou de uma passagem do livro A louca da casa, da escritora espanhola Rosa Montero. Em uma viagem de barco para ver baleias, na costa do Canadá, ela conta sobre o tédio em ficar flutuando em alto-mar sem nada acontecer. Fala sobre a falta de sentido de navegar até um ponto entre duas ilhas para literalmente não fazer nada. Até que…
“Permanecemos assim, sem nos mexer nem dizer uma palavra, durante mais de quinze intermináveis minutos. E de repente, sem nenhum aviso, aconteceu. Um estampido aterrador agitou o mar ao nosso lado: era um jato d'água, o jato de uma baleia, poderoso, enorme, espumante, uma voragem que nos encharcou e fez o Pacífico ferver em torno de nós. E o ruído, aquele som incrível, aquele bramido primordial, uma respiração oceânica, o alento do mundo. Essa sensação foi a primeira: ensurdecedora, ofuscante; e imediatamente depois emergiu a baleia. [...] e ao final, quando já estávamos sem fôlego diante da enormidade do animal, ergueu a toda altura aquela cauda gigantesca e afundou-a com elegante lentidão na vertical; e em todo esse deslocamento do seu corpo tremendo não fez qualquer marola, não provocou a menor salpicadura nem emitiu nenhum ruído além do suave cicio da sua carne monumental acariciando a água. Quando desapareceu, imediatamente depois de ter mergulhado, foi como se nunca houvesse estado ali.”
Depois disso, Rosa diz que a escrita é assim. Que no meio do marasmo ou do tumulto da vida, uma visão tão fantástica e aniquiladora que chega a ser bela surge do nada ao nosso lado.
“Você está no próprio limiar da criação, e em sua cabeça eclodem tramas admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só revelam o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, fragmentos desse dorso, pedaços dessa baleia, migalhas de beleza que permitem intuir a beleza insuportável do animal inteiro; mas em seguida, antes de você ter tempo de fazer alguma coisa, antes de poder calcular seu volume e sua forma, antes de entender o sentido do seu olhar perfurante, a prodigiosa besta submerge e o mundo fica quieto e surdo e tão vazio.”
É preciso estar à deriva para a baleia surgir.
Esse texto foi uma baleia que surgiu ontem, em um exercício de perda de foco. Deixei tudo que me tira atenção tomar conta de mim. Entrei em todas as redes sociais possíveis, fiz questão de interagir no maior número de chats em grupo, me deixei tragar pelo twitter, abri e fechei inúmeros livros… e acabei deitada de barriga para cima no chão da sala, escutando Brian Eno, o “pai” da música ambiente. E foi ali deitada no chão, pensando em nada e pensando em tudo, que entendi que a perda do foco é um jeito atual de estar à deriva. Não fisgados em uma rede de pesca que nos afoga, como uma timeline dispersa, que nos aliena. Mas num fluxo de imensidão. A ilha lá no horizonte não vai a lugar algum, mas a gente esquece que pode simplesmente relaxar e boiar por algumas horas enquanto o mar está calmo.
Perder o foco é estar em alto-mar. Você pode morrer de medo de coisas que não existem ou admirar a paisagem.
Satélite de recomendações
Livro
Se você gostou do clima do papo sobre o mar, vai gostar do livro As águas-vivas não sabem de si, da Aline Valek.
Newsletter
Na mesma linha de recomendação marinha, a escritora e oceanógrafa Lis Vilas Boas tem uma newsletter, 20 mil léguas submarinas, que intercala ensaios sobre o oceano e uma novela de ficção sobre piratas.
Playlist
Minha playlist favorita para desenvolver ideas aqui para newsletter e também para ficar à deriva, é esta:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Que maravilhoso! Eu tava pensando outro dia como eu gosto de voar e flutuar, que acho que são lugares parecidos de estar à deriva que tu mencionou no texto. Eu amei <3
Adorei te ouvir. E num frio lascado com a chuva batendo na cara (enquanto ouvia vc falar sobre o mar). Eu estou como você, sem foco há dias, scrollando loucamente é um pouco ansiosa. Hehehehe. Vou ver se acho minha baleia assim como vc achou a sua. E preciso fazer uma errata: Erik Satie é o pai da música ambiente, que era chamada de “furniture music”, mas o Eno a popularizou e deu o nome. Amo: música de elevador, de ambiente, de móveis, de aeroporto. 🙂🙃