Controle e atenção nas redes socias
O quanto essa dependência das redes está influenciando o resto da nossa vida?
A internet é originalmente desenhada para ser um meio de comunicação de massa, acessível e democrático. As redes sociais são desenhadas para captar a nossa atenção.
Enquanto meus amigos de 30 anos confessam passar 2, 3, 4 horas por dia rolando a tela do TikTok, os amigos de 20 questionam sobre o BeReal; vai mudar alguma coisa ou não? Em paralelo, todo mundo fala que o Instagram está morto, mas cada vez que abro o aplicativo lá estão trocentos posts novos nas últimas horas, cada vez com mais likes e mais interações. Todas essas redes sociais me parecem muito vivas. Mesmo o Facebook, por onde não ando mais, ainda é muito popular aqui na Europa (todos os eventos são marcados por lá e a maioria dos meus amigos europeus não consegue falar comigo facilmente porque seu aplicativo básico de chat é o Messenger, que eu não uso desde 2013) e no Brasil ele ainda é a rede social de uma parte significativa da população.
Tá, mas e aí? Tá ruim?
Não. Não é que o conteúdo das redes seja de todo ruim, até bem pelo contrário. A maioria das pessoas treinou bem o algoritmo e recebe muita coisa boa e interessante para si, principalmente no TikTok, mas a sensação geral de derrota é relacionada a um sentimento de estrago mental. Como se estivessemos perdendo algo muito importante, mas não sabemos muito bem o quê.
Há uma sensação de fracasso e alienação compartilhada por muita gente, principalmente quem trabalha com internet. Como se fosse um estranho mal-estar da nossa geração, um probleminha que não sabemos como lidar, mas também não sabemos exatamente porque queremos nos livrar.
Alienação
Em geral, alienação significa desconexão. Desligar-se da realidade que nos aflige e entrar em um mundo paralelo onde o nosso “eu” se dissolve em outras coisas. Ficar horas vidrado em uma tela de celular é a manifestação mais comum de alienação hoje. E se não houvesse prazer nessa prática, nós não a repetiríamos. Talvez a vida real tenha se tornado tão insuportável que nos resta apenas escapar pela janela mais próxima. Aquela na palma da mão.
Para os marxistas, a alienação é um produto da sociedade capitalista. No capitalismo, nós não somos pessoas, mas máquinas, substituíveis e condicionáveis, e a alienação é a ferramenta que nos afasta do sentimento de sermos humanos.
Esse afastamento é facilitado pelos smartphones. Eles permitem que exista um espaço virtual de distração, um espaço que molda a maneira como vemos o mundo e a nós mesmos. No livro A Alienação do Homem Moderno, o autor demonstra muito bem como esse processo de apatia coletiva da classe trabalhadora faz com que as pessoas percam sua individualidade.
“Talvez o nosso trabalho tenha se tornado mais fácil e mais eficiente, mas também se tornou despersonalizado. Essa despersonalização virou um poder perigoso, já que até nossos pensamentos e vida fora do trabalho são largamente padronizados. Nós usamos nosso tempo de lazer para expressar e desenvolver aspectos pessoais que somos obrigados a reprimir enquanto fazemos nosso trabalho na fábrica, na loja ou no escritório? Ou nós preferimos evitar os desafios que nos aguardam na tarefa de desenvolver nossos próprios valores e alcançar integridade pessoal? Pode ser doloroso admitir, mas os produtores de Hollywood não estão totalmente errados quando enfatizam a importância de atrações padronizadas e encaram o criticismo sobre a baixa qualidade de seus filmes com franqueza: é isso que as pessoas gostam e nós demos a eles o que eles querem.”
- Fritz Pappenheim, 1959. The Alienation of Modern Man. (tradução minha)
Fonte original
Mas será que também estamos dando espaço para as pessoas pensarem no que elas querem?
Atenção
Ainda que a sensação geral seja de uma massa de indivíduos estagnados em frente às telas, há também quem exerça sua criatividade dividindo-a com o resto do mundo. Nunca foi tão fácil se expressar artisticamente para uma grande audiência. Se tem gente criando e gente consumindo, existe uma transferência afetiva entre público e artista.
Isso pode significar que mesmo alienados continuamos atentos. A distração na tela do celular não é sinônimo de falta de atenção. Pelo contrário. Estamos 100% atentos enquanto observamos o conteúdo que passa pelos nossos olhos, a questão é: no que estamos prestando atenção?
Assim como a gente pode treinar o algoritmo, ele também nos treina. Quanto mais ele nos dá o que queremos, mais tempo de vida gastamos no espaço virtual de alienação. O maquinário por trás das redes sociais é movido pelo dinheiro, logo, não há interesse em expandir nossa visão para qualquer coisa que rompa com a lógica capitalista que sustenta essa dinâmica.
O jornalista e professor Eugenio Bucci, autor do livro A superindústria do imaginário: Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível, elabora a ideia de que o olhar virou um produto do capitalismo de tal modo que estar nas redes sociais virou também trabalho.
“O capital deixou de lado os objetos físicos e virou um narrador, um contador de histórias, e se fez um produtor de significações. O capital se descobriu linguagem e se deu bem na sua nova encarnação. Bem a propósito, a velha oposição entre trabalho e linguagem se dissolveu, não existe mais.”
- Bucci, 2022.
Tenho a impressão de que estar nas redes sociais também é uma espécie de trabalho de avaliação constante. Tanto autoavaliação, quando julgamos nossas próprias expressões públicas, desde pensar se postamos certa foto ou não, até ponderar sobre manifestações políticas e indiretas pessoais, quanto avaliação alheia. Assim como julga-se a si mesmo sobre o próprio conteúdo, também se analisa o conteúdo dos outros. O tempo todo.
Até os profissionais que precisamos contratar para realizar qualquer tipo de serviço são primeiro meticulosamente analisados na sua presença online. A constância dessa lógica no nosso dia a dia, a longo prazo, pode ser enlouquecedora.
Vigiamos e somos vigiados; a atenção virou a polícia silenciosa do dia a dia.
Controle
Enquanto isso, a antropóloga Sherry Turkle, que estuda a afetividade entre humanos e robôs há mais de 40 anos, analisa o impacto da tecnologia nos nossos sentimentos nesse contexto de superindustrialização. No seu último livro, Alone Together: why we expect more from technology and less from each other (“Sozinhos juntos: porque esperamos mais da tecnologia e menos uns dos outros”, ainda sem tradução para o português), ela diz que a tecnologia nos faz esquecer o que sabemos sobre a vida.
Uma das pessoas que participou das pesquisas de Turkle, quando questionada sobre sua dificuldade em conversar, falou algo que me deu uma pista para entender um dos impactos dessa dependência das redes sociais. "Conversar? Vou lhe contar o que há de errado em conversar. Rola em tempo real e você não pode controlar o que você está dizendo."
Essa fala demonstra bem como a lógica absorvida da economia da atenção escala para outros setores da vida. E longe de mim assumir uma postura paternalista (afinal, as pessoas e a sociedade mudam o tempo todo), mas há de se pensar no tamanho do impacto disso tudo no nosso sistema cognitivo. Se a atenção excessiva nos leva a treinar o olhar (e a mente) para vigilância, vamos procurar controlar tudo o que pudermos, sem sequer pensar sobre isso.
As câmeras de vigilância da distopia real que vivemos não são controladas por uma única instituição ou corporação, mas sim por cada um de nós.
Voltando ao pensamento marxista, se hoje somos apenas uma máquina para o sistema capitalista de produção, nosso controle central mora na dependência das redes. É um tipo de alienação extremamente eficiente, pois ao mesmo tempo que nos proporciona a ilusão de descanso mental, também nos mantém conectados, fechando um ciclo perfeito de exploração capitalista.
Daqui uma ou duas edições da newsletter quinzenal de domingo, vamos olhar alternativas para fugir dessa malha pegajosa.
Satélite de Recomendações
O tempo do óleo
Na última edição da newsletter da Lis Vilas Boas, oceanógrafa e escritora, ela falou de forma linda e acessível sobre os impactos do derramamento de petróleo no mar. Leia aqui.
O texto & o tempo
Um evento para reunir pessoas autoras e leitoras de newsletter que estejam dispostas a discutir nossa relação com a produção e consumo de conteúdo em texto. Veja aqui.
Quando: 5 e 6 de novembro
Onde: pelo Zoom
Quanto: 48 reais (com vagas sociais; veja no site).
Eita! Cidades
A campanha do Catarse da Eita! Magazine ainda está no ar! Lembrando que: temos cadernos-passaporte lindos de recompensa, sem contar um curso de escrita e muito mais. Apoia lá.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Adorei sua reflexão. Quando escrevi minha última newsletter eu parei pra refletir sobre o ponto em que as redes sociais estavam quando comecei a trabalhar com elas (época do Orkut) e onde elas foram parar. Saiu de redes sociais pra social media, o que já diz bastante sobre sua evolução e do negócio gigante que virou, as profissões novas que surgiram e do quanto diminuiu o tamanho do mundo. Ao mesmo tempo que nos conectou, nos desconectou. Hoje somos, provavelmente, pessoas diferentes do que seríamos sem elas, gostando de outras coisas (eu noto como meu gosto musical mudou nos últimos anos), nos tornando em outras pessoas. Gostei dessa frase: “a tecnologia nos faz esquecer o que sabemos sobre a vida.”, não só o que sabemos, mas também nos faz esquecer do que queremos.
Amei seu ensaio sobre esse assunto e por ter citado a Sherry Turkle, usei exatamente esse livro na minha dissertação de mestrado. Se quiser, posso te mostrar meu trabalho! Escrevi sobre a relação da subjetividade e o uso da internet-móvel (quando escrevi, ela estava no começo da popularização no brasil).
beijo