A função principal desta newsletter é me permitir escrever sobre coisas difíceis, que não cabem em textos curtos.
Vamos lá.
Culpa
Há uns meses eu escrevi uma newsletter sobre as Feridas abertas entre Brasil e Europa, e algumas pessoas responderam por e-mail. A maioria mencionou experiências pessoais e o impacto que a percepção da desigualdade teve nas suas vidas. Por esses e-mails, entendi que muitos leitores aqui são brancos (provavelmente a maioria). E o denominador comum de todas as mensagens que recebi foi um profundo sentimento de culpa relacionado à desigualdade em geral e, acima de tudo, ao privilégio branco. Algo pouco comentado a fundo nos nossos círculos sociais, óbvio. É um assunto muito difícil de elaborar.
Como uma pessoa branca lida com a culpa ao se deparar com o próprio privilégio em contraste com as dificuldades que uma pessoa não-branca enfrenta?
Falo do âmbito íntimo mesmo. Como se lida com a solidez dessa culpa?
No Brasil, vejo grupos de amigos comentando isso na pequenez da dúvida, aos cochichos, com medo de estarem sendo ofensivos ao tocar no assunto. Porque não há leveza para falar sobre isso, e nós estamos preguiçosos de tudo que não possa ser suavizado. Temos preguiça (e medo) do que não pode ser resumido a uma frase de efeito, uma resposta pronta ou uma piada infame para aliviar o climão.
Parece que não temos ferramentas cognitivas para falar de assuntos difíceis.
Não falamos com tanta profundidade, entre pessoas brancas, de culpa e privilégio branco. Pois não temos meios fáceis de expressar o desconforto. Parece que o assunto simplesmente começa e termina na maldita culpa, sem chegar a lugar algum.
Sinto que, como brasileiros, esperamos uma solução absoluta, uma resposta que decida por nós qual o próximo passo para resolver um problema que será sempre maior que a gente.
Estamos esperando uma espécie de perdão pelo passado que nos fez privilegiados hoje?
“Este percurso de consciencialização coletiva, que começa com negação – culpa – vergonha – reconhecimento – reparação, não é de forma alguma um percurso moral, mas um percurso de responsabilização. [...]
Uma vez confrontado com verdades desconfortáveis dessa história muito suja, o sujeito branco comumente argumenta “não saber...”, “não entender ...”, “não se lembrar...”, “não acreditar...” ou “não estar convencido...”. [...]
Culpa se difere de ansiedade, pois a ansiedade é experienciada em relação a acontecimentos futuros, tal como quando a ansiedade é criada pela ideia de que o racismo possa vir a ocorrer. Culpa é vivenciada em relação a um ato já cometido, ou seja, o racismo já aconteceu, criando um estado emocional de culpabilidade. As respostas comuns à culpa são a intelectualização ou racionalização, isto é, a tentativa do sujeito branco de construir uma justificativa lógica para o racismo; ou descrença. [...]
Reconhecimento segue a vergonha; no momento em que o sujeito branco reconhece sua própria branquitude e/ou racismo. [...] Reconhecimento é, nesse sentido, a passagem da fantasia para a realidade – já não se trata mais da questão de como eu gostaria de ser vista/o, mas sim de quem eu sou; não mais como eu gostaria que as/os “Outras/os” fossem, mas sim quem elas/eles realmente são. “
- Trechos de Memórias da Plantação, de Grada Kilomba.
(as partes em negrito são destaques meus)
Privilégios e privilégios
Do latim privus, privado, e lex, lei, privilégio é uma lei que cabe apenas a uma parte privada da população. O famoso privilégio de ir e vir pertence a todos, por exemplo. Já o privilégio de andar por uma loja sem ser vigiado de perto pelos seguranças é um privilégio branco. Assim como o privilégio de andar nu da cintura para cima em lugares públicos é um privilégio masculino (e cisgênero). E por aí vai.
O problema do privilégio é ser percebido quase que exclusivamente por quem não o tem.
Eu, como mulher cis, assisto com raiva aos homens andando de torso nu pela rua no verão, pois este é um privilégio que não tenho. Se o fizesse, no Brasil, poderia ser presa, publicamente hostilizada e provavelmente exposta na internet.
Andar sem camisa é um privilégio (dos homens) que noto com facilidade, pois é um privilégio do qual sou excluída. Percebe?
Eu, como mulher branca, apenas sei sobre a vigilância hostil dos seguranças das lojas em cima de pessoas não-brancas porque essas pessoas falam sobre isso. Se não fosse uma coisa extensivamente discutida hoje em dia nos espaços da internet em que eu circulo, e exposta pelas pessoas que sofrem essa violência, eu jamais saberia que eu detenho o privilégio de transitar dentro de lojas sem ser perseguida. Assim, penso em todas as coisas que me escapam — naquilo que ninguém disse, mas acontece o tempo todo à minha volta.
O problema do privilégio é não ser reconhecido por quem o tem.
Para reconhecer as coisas, é necessário prestar atenção. Talvez prestar atenção não apenas no que as pessoas falam ou escrevem, mas em algo além: notar as coisas que não são ditas. Um exercício interminável de atenção.
Privilégio ou direito?
É preciso lembrar que a maioria das coisas que definimos como privilégios são, na verdade, direitos que estão sendo negados a uma parte da população.
Eu faço o exercício de me fazer essa pergunta quando penso com raiva que tal pessoa tem tal privilégio e nem sabe (ou sabe, mas faz de conta que não vê). Talvez esse privilégio seja apenas um direito que me é negado. Aí, a raiva sai da pessoa e vai para a instituição que permite que isso aconteça (o governo, a sociedade, o processo de colonização etc).
Me ajuda a atravessar o dia, embora não resolva a questão diretamente.
O mal-estar vem da certeza de que mesmo as instituições são formadas por pessoas. Ou seja, a fachada institucional também protege quem toma decisões, tornando as estruturas tradicionais de opressão ainda mais blindadas para a crítica. No fim, pessoas sempre serão responsáveis pelas decisões que formam a estrutura que exclui outros indivíduos.
Falar é preciso
Nas mensagens que recebi por email, notei que a culpa pelo privilégio branco é frequentemente sobreposta por um desejo de ação. Como se “fazer algo a respeito” fosse a única saída para um dilema. Mesmo um que nunca irá se resolver inteiramente enquanto estivermos vivos.
Aprender a usar o privilégio para favorecer quem é excluído dele é o mínimo.
A questão é que nossos gestos e ações individuais reparam uma coisinha aqui e outra ali. Mesmo com as tentativas de reparação histórica promovidas por ações afirmativas — como cotas raciais em universidades e empresas —, tudo ainda é só um início. Apoiar essas iniciativas e defendê-las é só o começo também para nós, como indivíduos. Mas o que a maioria das pessoas sente é que o trabalho de reparação termina ali. Em uma ou duas boas ações pontuais na vida.
Quando a culpa pelo privilégio branco aparece de novo, nos pegando desprevenidos, fica aquele sentimento de: ué, mas eu já não estava me sentindo melhor porque já fiz isso ou aquilo?
A gente vai morrer com esse privilégio branco. Ou seja, a chance é que o sentimento de culpa nos acompanhe para sempre — e culpa não desmancha privilégio. Por isso precisamos mais do que nunca falar sobre racismo abertamente. E entender que combatê-lo faz parte da nossa vida para sempre.
Síndrome de salvador branco
“o termo [salvador branco] é usado quando alguém acredita que pode ‘resgatar’ pessoas negras de uma situação de pobreza ou vulnerabilidade, simplesmente por ser branco e/ou vir de uma posição econômica mais privilegiada. Ao se juntar com a exposição na mídia e nas redes sociais, esse complexo contribui pra reforçar estereótipos [..]”
- trecho do artigo Complexo de branco salvador: boas intenções não são o suficiente
Há muito tempo quero falar disso por aqui, mas nada antes tinha me motivado a pensar tanto no assunto quanto ao episódio recente envolvendo Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso. Acompanhei a repercussão e entendi a comoção nas redes. A fala de Ewbank tocou muita gente, pois expôs uma verdade dura. De que talvez se ela não fosse uma mulher branca privilegiada, a sua reação antirracista teria outro tipo de consequência. E ela está certíssima.
Mas alguma coisa na repercussão desse episódio me deixou muito desconfortável. Por mais que o casal tenha se esforçado para denunciar que o caso virou “o caso” porque eles são brancos e famosos, no final a história teve um destino batido. É uma narrativa midiática que não foge da lógica do salvador branco. Em uma sociedade marcada pelo privilégio branco, essa narrativa continua servindo aos interesses de quem? Por mais que o casal esteja tentando quebrar essa lógica, eles não têm o poder de radicalizar uma estrutura que continua servindo ao status quo. Exatamente porque o racismo estrutural opera em uma dinâmica intrínseca ao funcionamento da nossa sociedade como a conhecemos.
Não é culpa deles, nem de ninguém em específico. É simplesmente um problema sobre o qual precisamos pensar — de novo, não há uma resposta pronta ou simples para essa dinâmica.
“o racismo é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”
- Silvio Almeida no livro Racismo Estrutural.
Uma das coisas que me chamaram a atenção foi a fala de Bruno “O papel do branco privilegiado não é discutir o racismo, é combatê-lo”. Eu entendo o que ele quis dizer com isso. É bem óbvio. Minha implicância é com a afirmação de que o branco discute racismo. Não acredito que estamos discutindo o racismo o suficiente. Se estivéssemos, os números que denunciam o racismo estrutural não seriam esses que vemos por aí.
O episódio de uma pessoa racista manifestando seu racismo abertamente é fácil de identificar. E sim, devemos reagir contra, como o casal fez. É o mínimo.
“Diante da alta de casos [de denúncias de racismo no Brasil], a primeira hipótese que salta aos olhos é que as pessoas estão mais racistas.
Mas diante do racismo estrutural que sempre operou na sociedade brasileira, outras explicações ganham mais corpo. Ainda assim, o aumento do discurso de ódio não está descartado.
Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que o apelo em torno do tema em discursos políticos interfere nas ações sociais. "Os últimos anos deram espaços para o aumento dos discursos de ódio, o que pode ter impactado, sim, no aumento da violência", diz.- Leia na íntegra em Por que registros de racismo quadruplicaram desde 2018 no país, no Uol.
O maior desafio hoje é identificar os racismos silenciosos do dia a dia. Aquilo que não está na superfície. Aquilo que requer que as pessoas brancas realizem um exercício de alteridade para não só enxergar, mas também para ouvir o que o outro, desprovido do privilégio branco, pode expressar.
Como vamos fazer isso quando a maioria das pessoas brancas não está em um ambiente de convivência igualitária com a maioria das pessoas não-brancas?
Para mudar isso, as pessoas brancas precisam, sim, discutir mais sobre racismo. Não na superficialidade da reação ao escândalo “nossa, que aburdo”, mas na profundidade da escuta, da pesquisa. E sobretudo: de olhar para si mesmo com perguntas.
Estudando autores não-brancos na universidade, entendo que se informar é missão de quem detém o privilégio. Olhe o mundo à sua volta. Há informação por todo lado.
“É preciso pesquisar, ler o que foi produzido sobre o tema por pessoas negras — e é bastante coisa. No caso de quem tem acesso a bibliotecas e universidades, a responsabilidade é redobrada, e não deve ser delegada. Eu brinco que, muitas vezes, pessoas brancas nos colocam no lugar de ‘Wikipreta’, como se nós precisássemos ensinar e dar todas as respostas sobre a questão do racismo no Brasil. Essa responsabilidade é também das pessoas brancas — e deve ser contínua.”
— trecho do Pequeno Manual Antirracista, da Djamila Ribeiro.
Faça sua pesquisa, parça.
Converse sobre o que você leu e observou com as pessoas à sua volta.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
PS: A revisão gramatical do texto acima é obra da Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no Pistolando Podcast.
Valeu, Let!
"Precisamos mais do que nunca falar sobre racismo abertamente. E entender que combatê-lo faz parte da nossa vida para sempre."
Simples assim. Obrigada pelo reflexão.