Meu útero é cheio de opiniões. Não minhas, claro, mas de deus e o mundo. Falam dele como se fosse um bem público, tipo um imóvel, pronto para ser ocupado. Pensei que depois de completar 30 anos as perguntas sobre a ocupação do meu útero começariam para valer, mas olhando para trás com atenção, as pessoas enchem-no de expectativas desde antes da minha primeira menstruação descer. Eu tinha uma boneca enorme ali pelos seis ou sete anos, parecia um bebezão. Minha irmã era bem pequena na época e às vezes me parecia que a boneca e ela tinham o mesmo peso e altura. Por que razão alguém presentearia uma criança com outra criança, ainda que de mentira, se não fosse para encher aquele útero infantil de desejos que ainda não tinha? A mana rabiscou o rosto e os bracinhos da boneca à caneta. Eu fingi tristeza, mas no fundo estava indiferente. Achei que ela simplesmente havia feito o que as criancinhas fazem. Às vezes me pergunto se, na verdade, fui eu quem a convenceu a cometer o crime. Não lembro. Talvez hoje eu tenha inventado que a culpa pela boneca riscada era minha. Talvez hoje eu queira ser culpada pela arruinação do brinquedo.
Minha mãe começou a trabalhar aos 6 anos de idade. Sim, isso mesmo. 6 anos. Cuidava de outra criança, uma bebê, filha da patroa. Naquela época isso era comum no interior do Rio Grande do Sul. Mamãe me contou várias vezes que seu sonho de infância era ter uma certa boneca que parecia um bebê. Eu ficava confusa, mas não comentava. Não tinha ela um bebê de verdade para cuidar naquela época? Quando a mãe me deu aquela bonecona de presente, me ensinou a vesti-la com as roupas de bebê da mana, que crescia muito rápido. Até fraldas descartáveis eu colocava na boneca. Aconchegava sua boquinha dura no bico do meu inexistente seio, imitando o que a mãe fazia com seu próprio bebê. Minha brincadeira era uma grande performance para deixa-la feliz. A mãe queria tanto aquela boneca. Era um presente dela para mim, mas eu também a presenteava de volta com o espetáculo da repetição. Será que foi feliz ao ver a filha mais velha realizando seu velho sonho de infância? Me pergunto se, naquele passado distante, seu desejo era simplesmente substituir o bebê de verdade por uma boneca de pano.
Meu útero castiga-me todo mês com 12 horas exatas de dor de barriga, enjoo e cólica. É tudo tão exato e previsível que programo meus dias de acordo com essa indisponibilidade. Na época do colégio, eu chegava a desmaiar de enjoo e pressão baixa. Não sei quantas vezes chamaram a mãe para ir me buscar. Dali a gente seguia sempre para o pronto-socorro, onde eu tomava dramin na veia. Dramin é meu remédio favorito até hoje. Trago caixas e caixas de comprimido quando visito o Brasil, já que é vendido apenas sob prescrição médica aqui no exterior. Aos 15 anos, um ano depois de começar a menstruar, me prescreveram a primeira cartela de anticoncepcional. Foi uma época boa, não vou mentir. Só fui ter espinhas aos 24, quando parei de tomar a pílula.
Meu útero é profissional em não engravidar. Seguimos invictos, a despeito de toda a atividade. O problema em ser muito boa em evitar gravidez é que em algum momento você percebe que não há mais reconhecimento externo nesse profissionalismo todo. É como se estivesse evitando ser mãe na adolescência há mais de 15 anos. Talvez tenha batido a consciência de estar, sim, evitando ser mãe simplesmente.
Meu útero adora crianças. Assim, no plural e no geral. Só não bateu a vontade de ter uma criança dentro dele. É engraçado que a maioria das pessoas com útero, da minha idade e sem filhos, costumam temer a hora do parto. Meu útero tem zero temor de uma dor que tem hora para acabar, mas eu tenho calafrios quando penso na ideia de uma decisão que não tem volta. De uma vida grudada na minha. Ainda sim, meu útero é cheio de opiniões. De deus e o mundo.
Meu útero é vazio de um desejo. Perguntei para a analista o que havia de errado em mim, que pareço ser uma das poucas portadoras de útero que não sente uma vontade violenta e arrebatadora de ocupa-lo com uma vida em formação. É necessário um desejo muito grande, Vanessa. Engraçado que todos os dias encontro um desejo violento novo em coisas e pessoas, mas até agora a maternidade segue sendo um mistério desprovido do erotismo necessário para me deixar maluca. Tampouco ela me desagrada. É simplesmente um não-desejo, sem nunca chegar a ser repulsa. Inclusive, gosto muito de ouvir sobre a maternidade alheia.
Meu útero é cheio de arrependimentos. Dos outros. Prometem que serei uma velha desgostosa, que sentirei falta de pessoas que sequer existem e que nunca experimentarei o amor de verdade até ver um pedaço de mim correr com vida própria por aí. Talvez, nessa lógica, eu seja o pedaço da minha mãe que quis ser livre da maternidade várias vezes. Ela nunca disse nada do tipo. Pelo contrário, mamãe é grande entusiasta dos úteros ocupados. Mas eu detesto pensar que ela nunca desejou que eu sumisse. Sei lá, algum dia de privação de sono, uma birra, alguma merda que eu tenha dito para ela. Talvez eu seja o gene que viveu para fazer a performance das viagens que ela sonhou em fazer, mas não pôde. Talvez minha mãe seja uma parte de mim que viveu o prometido amor-maior-que-tudo. Talvez eu seja uma versão alternativa dela. Talvez um dia eu seja mãe aos 40, talvez não seja mãe nunca, talvez seja mãe de alguém que não saiu de dentro de mim. Eu sou um grande talvez e meu útero é um pequeno quem sabe. 🩸
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sou mãe há nove anos e meio. Nasci em uma geração em que havia menos o questionamento formal sobre ter ou não filhos - menos ainda as ideias tão bem estruturadas a respeito de por que não ter, como vejo hoje nas mulheres mais novas. E simplesmente não consigo entender como uma mulher (especialmente a que já tem filhos e sabe bem tudo que envolve) pressiona outra mulher em uma escolha destas.
Falando aqui com uma pessoa sendo gerada: é bem louco saber que tem um coração que não é o seu batendo dentro da barriga, que aquele desconforto não é pum preso, é um chutinho, são mil emoções novas todos os dias. Mas bate uns pensamentos de que a minha vida como era antes desse serzinho não existirá mais assim que ele der o primeiro berro, tudo o que eu era pode não ser mais. Então eu entendo demais quem tem esse "não-desejo" que eu tive também durante muito tempo, de verdade. É abrir mão de muita coisa - até do seu espaço pessoal - para outra pessoa, uma que vai ser dependente durante muito tempo, que demanda um investimento emocional gigantesco. Pode ser que o desejo surja ou não, mas esse negócio de que vai ficar sozinha é balela - nunca estamos sozinhos, vivemos em bando justamente por isso... Os opinadores de útero são os mais prepotentes em achar que sabem mais do seu corpo do que você. Não sabem é de nada.