Este texto pertence ao editorial Diário de conexões. Com a proposta de trazer temas que conectam crises existenciais entre passado, presente, futuro, lugares, viagens e intimidade.
No dia seguinte à minha morte talvez alguém diga “que pena”, talvez outro alguém diga “já era tempo”, ou ainda pode ser que joguem o velho “mas tão jovem!” mesmo que eu tenha 70 ou 80 anos. A única coisa que sei com certeza é que serei para sempre mais velha do que minha amiga que faleceu aos 34 anos no dia cinco de setembro de 2015. Neste ano, uma semana depois do aniversário de morte - morteversário? - eu senti um formigamento mental; é que comemoramos juntas seu último ano de vida naquele fatídico 2015, o ano em que eu mudaria de país e e ela partiria para sempre. Minha amiga nasceu no dia 12 de fevereiro e eu no dia 13. De alguma forma, no dia que cantaram parabéns para nós duas eu senti uma simbiose silenciosa entre nós, como se fossemos gêmeas, embora ela fosse nove anos mais velha que eu. Agora, nove anos depois que ela morreu eu me tornei mais velha, mais velha do que minha irmã gêmea mais velha. Isso já tinha acontecido antes com amigos que perdi na adolescência, mas nada comparado a essa sensação estranha de atravessar o mundo respirando mais tempo do que ela, essa pessoa que amei tão profundamente que vomitei sem parar enquanto seu corpo apodrecia no caixão nos primeiros dias de sua morte. Dissolve.
Viemos da água do útero de nossas mães, respiramos o ar do mundo e depois voltamos ao solo ou ao fogo. Viver talvez seja o grande fenômeno, aquilo que se interpõe entre o infinito do não-existir antes da vida, antes da concepção, e do não-existir na eternidade da morte. No último sábado eu fui a um chá de fraldas e sabe-se lá porque diabos me fizeram umas gracinhas sobre estar na minha época de ter filhos ou algo do tipo, como se eu fosse uma embalagem com data de validade, como se houvesse algo apodrecendo dentro de mim — e talvez essa seja uma maneira justa de ver o útero, como uma potencialidade que talvez nunca se realize, assim como as pessoas são promessas e muitas vezes morrem antes de chegar lá. Eu sei que não foi isso que as pessoas pensaram. Eu amo bebês, eles cheiram bem para caramba e não consigo evitar amá-los infinitamente, pois é bom demais amar um ser humano que ainda está para ser, que por mais pequeno e inocente que seja, já divide o fardo da humanidade inteira comigo; o fato de que temos uma data de expiração. É impossível não querer protegê-los de tudo e de todos. Mas gerar uma vida é também gerar uma morte. Por isso me irritam os comentários levianos sobre ter filhos. Não há nada de leviano em gerar simultaneamente uma vida e uma morte. Coagula.
Depois que minha amiga morreu, eu fiquei uns dois anos achando todos os filmes de horror insuportáveis. Assim como era insuportável a ideia de um dia falar com seu pai e sua mãe novamente. Mas os filmes de terror eram difíceis porque ao invés de ter medo do fantasma, do demônio ou da aparição, que geralmente revela-se como o espírito de alguém que um dia já habitou a terra, eu tinha ímpetos de fantasiar que naquela faceta assustadora era a minha amiga que viria assombrando as pessoas e tudo o que eu queria era vê-la de novo. Eu chamaria seu nome três vezes no escuro, no banheiro, e quando seu corpo apodrecido atravessasse o espelho de encontro ao meu, para me estrangular, eu a abraçaria e diria o quanto senti sua falta. Se ela de repente surgisse no escuro do meu quarto, no pé da minha cama, ou talvez deitada de costas para mim ao meu lado, oculta pelo cobertor, eu a receberia num abraço apertado. Talvez eu passasse a gostar do cheiro de terra e carniça.
Solve et coagula. Do latim, dissolver e coagular. As palavras estão tatuadas nos braços de Baphomet, deus não-binárie dos antigos templários. A cabra alada do sabá. Um lembrete de que vida e morte são faces da mesma existência e não-existência, que a transformação escorre como uma solução, um corpo que se liquefaz para alimentar os vermes e a terra, ou a gordura que derrete no fogo da pira funerária. Mas o sangue que escorre e depois coagula também continua vivo em outros corpos, replicando-se na dança da vida, na próxima geração. Nascer e morrer nos carregando até o fim dos tempos. Até o sol explodir e nos engolir para pulsar e criar uma outra coisa. Uma nova não-existência.
Respiro.
Expediente
Outubro, né? Vocês queriam o quê? Brincadeira. Eu estou empacada em dois ensaios longos sobre arte, para o editorial Expedições Criativas, mas vai sair.
À parte os editoriais de apoiadores, eu espero explorar mais a temática de horror esse mês. O meu projeto de ficção atual tem muito desse tema e eu sinto que o embalo do terror interno tem vazado para os textos de não-ficção também. Inclusive acho que é por isso que empaquei nos ensaios sobre arte, porque eles são mais positivos e felizes, e eu estou 100% no clima de halloween aqui.
Eu ando meio sumida e abublé das ideias, mas continuo aqui. :)
📡 Satélite de recomendações
Esse episódio aí da Clareira da Seiva com a
tá muito bom.Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Esses dias li em um tweet (𝕏uite) que o luto é uma prova de que a gente amou bem, que é uma lembrancinha (souvenir) de ter amado. Luto é um recibo que a gente balança no ar e diz para o mundão: ói, o amor uma vez foi meu; aqui a prova de que eu paguei o preço cheio e sem descontos.
somos eternos enquanto vivermos na memória de quem ainda se lembra de nós 💓💓🥲🥹