Tenho saudades de escrever sobre coisas gostosas. Foi assim que escrevi aquele texto sobre o amor, que acabou descambando para coisas nada gostosas, quando eu queria simplesmente falar de amor. Tem coisa mais gostosa do que o amor?
Tem sim. Mas depende sempre do dia, do lugar e da pessoa. E tudo invariavelmente acaba se tornando amor, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde.
Obs: pode ter erros de digitação, etc.
Para quem gosta de escrever
Escrever é diferente de publicar. Vamos deixar isso claro, ok?
Por isso vim escrevendo esse textinho pueril hoje, como se eu fosse aquelas cronistas do século passado, chamando leitores para um cantinho miúdo da minha cabeça, como quem posta uma foto da bunda no instagram, mas fazendo de conta que vocês não estão vendo a minha bunda, que as nádegas fartas são uma casualidade, assim como quem vê a bunda na tela e manda um coração vermelho com o dedo no celular. Casualidade. Vida que segue.
Eu estou sozinha em meu escritório em Estocolmo, um dia nublado desponta uma luz branca, já passou da hora do almoço, mas eu já fui para a aula e discuti a obra de uma escritora aborígene com meu professor irlandês e meus colegas escandinavos, eslavos e africanos. Meu estômago ronca, mas eu não atendo suas vontades.
O que isso tem a ver com escrever? Nada. Tudo. Esses dias eu li que a escrita é a voz do ausente, parece que foi o Freud quem disse. Se você perguntar por aí, todo escritor que se preze começou a escrever pequeno – menos o Haruki Murakami, o Umberto Eco e uns poucos gatos pingados que vão ler isso e dizer mas eu não etc –, porque é na infância que a gente começa a se sentir calado pelo mundo, não é? Ausência. Para criança é terrível perceber a ausência da pessoa que a cuida. Ou perceber a ausência de coisas que não tem, ou coisas que ela não é – em detrimento do que esperam que ela seja.
Eu estava no Brasil até anteontem. Em um desses dias malucos por lá, meu pai apareceu com um caderno rosa da Minnie, todo riscado. Era minha agenda/diário da quarta série. No meio dos adesivos coloridos e anotações sobre o que eu fiz em dias aleatórios, tinham recados fofos de minhas colegas de aula. A maioria deles trazia uma mensagem que começava sempre mais ou menos assim “Vanessa, você é uma grande amiga, gosto de você, você é inteligente”. Obrigada, muito obrigada, coleguinhas. Mas no final, sempre tinha um “mas você precisa emagrecer!”. Às vezes era fofo, outras bem agressivo, mas era sempre presente. Em todos os recados. Eu tinha 9 anos, minhas colegas não deveriam ter mais do que isso também. Talvez esse precisa emagrecer tenha definido minha identidade muito mais do que o inteligente e o grande amiga. Eu sei que foi nessa época que tornei-me uma criança mais introspectiva e me afundei nos livros. Coincidência?
Não fosse pelo registro que meu pai trouxe, essa história passaria batida pelo tempo.
Nos próximos cadernos e diários que tive na vida, não chamei ninguém mais para escrever recado nenhum para mim. Preenchi tudo sozinha, aos garranchos, com amor, ódio e fúria. Até que um dia a fúria se tornou uma fonte de paz. E ali estava eu: palavra por palavra. Existindo fora do meu corpo.
Para quem gosta de escrever, a palavra é presença. Se eu morrer amanhã, essa newsletter vai continuar na sua caixa de entrada.
Eu prefiro que eu mesma escreva sobre mim do que deixar a cargo dos outros. Os outros que se lasquem.
Toma aqui a minha ausência na sua vida.
A onça
Voltei do Brasil com uma tatuagem de onça. Quando me perguntaram qual o significado da onça, eu disse: é para comemorar a estreia do remake da novela Pantanal.
Eu sou uma pessoa horrível. Mas vou voltar para contar a história da onça para vocês com detalhes um dia. Prometo. É uma história de identidade, amor e saudades do que nunca viverei.
Coisas gostosas
Goiabada, caldo de cana, riso de criança, a voz de um amigo bêbado contando história, cachorro fazendo festa, a banda que eu ouvia na adolescência.
Existe algo de muito gostoso em fazer parte de algo. Pode parecer que escrever é uma atitude solitária, mas se você observar, qualquer passo depois da escrita é algo sempre melhor se feito em grupo. Estar em grupo implica em ampliar os horizontes, experimentar coisas novas, trocar, ser simplesmente uma pessoa melhor, junto com outras pessoas sendo melhores versões delas com você.
Para quem gosta de publicar
Quando senti vontade de botar as letras no mundo, fui atrás de informação. Conto isso porque sei que tem gente-que-escreve lendo aqui. Essa busca por informação me levou para lugares peculiares e me permitiu fazer parte, ainda que timidamente, de uma comunidade. Essa experiência me permitiu enxergar muito além do que meus olhos sozinhos conseguiam enxergar.
A comunidade de escritores no Brasil é um lugar gigante, uma praça com todo tipo de gente, onde vamos demolindo as barreiras geográficas porque a internet virou nossa encruzilhada. No ápice de uma crise nacional de identidade, é nos nossos pares que podemos encontrar uma resposta para o que não tem resposta. É talvez na arte e na sua multitude de interpretações que a gente consegue ir além – e em grupo, aprendemos mais sobre os outros; o que é a nossa opinião sobre o mundo senão uma pista para quem a gente é?
Das coisas gostosas do Brasil: pão de queijo, cafézinho, polenta, olhar no olho de quem eu nunca tinha olhado antes, bem de pertinho, e enxergar coisas que a palavra escrita apenas sugeriu.
Talvez este texto não esteja indo a lugar nenhum.
Escrevo, logo existo
A escrita às vezes me parece uma espécie de poder. Conjurar um pensamento, uma ideia, uma pessoa. Bam!
Presença
No texto original do Freud, a questão da ausência é essa:
“Com a câmera fotográfica ele criou um instrumento que guarda as fugidias impressões visuais, o que o disco de gramofone também faz com as igualmente transitórias impressões sonoras; no fundo, os dois são materializações da sua faculdade de lembrar, de sua memória. Com o auxílio do telefone ele ouve bem longe, de distâncias que seriam tidas por inalcançáveis até mesmo em contos de fadas; a escrita é, na sua origem, a linguagem do ausente e a casa, um sucedâneo do útero materno, a mais ansiada moradia, na qual ele estava seguro e sentia-se bem.”
No texto original, Mal-estar na civilização, Freud vai dizer que a gente virou Deus. Mas ninguém está “feliz com essa semelhança”. Tenho para mim que a escrita é um impulso nosso em dar vida ao que já nos habita por dentro. Nos torna criadores. E aí entra a imagem de Deus, com toda a obviedade que ela traz.
Criar é uma forma de estar presente. Assim como escrever uma carta é uma maneira de estar presente em um lugar onde nós não estamos fisicamente.
Não é isso este texto, esta newsletter?
Com o texto fora da intimidade do caderno, algo conecta-se com o mundo exterior.
Por fim
Eu só queria escrever sobre coisas gostosas.
Bom, escrever quase sempre é bem gostoso. Né? 🤔
Recomendações da vez
999 (livro)
Para quem gosta de ficção histórica, esse é um dia de sorte. O incrível contista Wilson Júnior está lançando seu primeiro romance através de financiamento coletivo.
Dizem que tem até tatuagem nas recompensas. O livro está em campanha nas próximas semanas e conta uma história passada no ano de 999, no norte do lugar que mais tarde se torna Portugal.
Filamentos (curso)
Um curso e grupo de estudos de longo prazo para conversar sobre ficção científica; de ecologia à literatura. É outro projeto no ar pelo Catarse, realizado pela editora Bandeirola e a prof. Ana Rüsche.
“8 encontros + 8 newsletters + grupo de discussão = 8 meses (até dez./2022).Todos os meses você vai receber uma newsletter temática, com informações sobre o assunto do mês, links, bibliografia e dicas.”
Jabás
Flights of Foundry
De sexta a domingo desta semana, estarei participando como moderadora, palestrante e arroz de festa no evento internacional Flights of Foundry.
Vou falar sobre ficção científica brasileira, tradução, o processo de edição na Eita! Magazine e sobre histórias de horror.
Essa é minha grade:
Participante - Finding the Locus of Horror in Your Story
Participante - Creating and Editing A Magazine
Moderadora - Spotlight on Brazilian SFF
Moderadora - More than Words: Translating Culture
Chill-n-chat with Vanessa Guedes
Ainda dá tempo de se inscrever para assistir as mesas. E sim, o evento é todo em inglês.
Cartas
Saiu uma nova carta desenhada pelo Rapha, acompanhada de um texto meu sobre o significado. Confere lá no insta:
Por hoje é só!
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
(site)
(twitter)
(instagram)
Sent from my tamagotchi
so queria te dizer que eu li seu texto, e ele cumpriu pelo menos a funcao de marcar sua presenca na minha vida. e esta onca hein? que coincidencia tb estou numa fase onca pintada fortissima. E tb estive no brasil recentemente, senti o cheiro de mato e barulho das maritacas, calor do sol e carinho de estranhos, antes de voltar para a pobreza nordica. eles nunca vao entender. meu coracao ainda nao voltou.
Oi Vanessa!
Recentemente entendi que vc é amiga de um casal de mega amigos (gui e marina) . :)
Não era isso que queria comentar, rs. Queria dizer que esse texto, mesmo em muitos pedaços, me pegou no colo com carinho e me deu muitas pistas para retomar uma escrita com frequência - ando meio travada na minha própria news. Além disso, ter citado Freudinho me alegrou muito, o safado foi mesmo um revolucionário, né?
Voltarei nesse texto mais vezes, já espalhei no zap agorinha.
um abraço