Estudar na Suécia & a página invisível dos livros
Seguimos com mais uma newsletter no modo mesa de bar & café da manhã longo no domingo.
Aviso: o texto abaixo pode conter traços de erros de digitação e frases desengonçadas.
A página invisível de todos os livros
Números de paginação são as únicas coisas presentes nas páginas de um livro que seguramente não foram escritas pelo autor. Há a conveniência de separar números pares à esquerda, números ímpares à direita.
Vai lá, pega um livro aí perto de você para conferir. Eu espero aqui no próximo parágrafo, não vou a lugar nenhum pelo próximo minuto.
No mundo da programação, uma das primeiras coisas que aprendemos é que sempre começamos a contar a partir de 0. A ordem do mundo começa nesse lugar vazio, mas que na língua das máquinas de vazio não tem nada1. O zero é a ordem do dia, é onde a contagem das matrizes começa, tudo faz sentido nesse contexto.
No mundo da palavra, não. A capa do livro já começa contando 1, como convenientemente fazemos no dia a dia (seja para contar quantos livros não-lidos temos na estante ou quantos sacos de supermercado vamos carregar sozinhos para casa). O livro tem uma concretude em sua contagem, a capa é sempre a primeira, a número 1. E dali segue a sequência ordenada de uma unidade após a outra. Isso jamais muda, não importa quantos livros você leu. Sempre acaba voltando para página 1 ao começar um livro novo.
E por falar em livros, essa é a primeira vez na minha vida que tenho a obrigação de lê-los em grande quantidade num curto espaço de tempo. Estou no início da minha terceira década de vida e entrei na universidade mais uma vez. Dessa vez, um mundo todo novo na graduação, estudando línguas em um país cuja língua oficial não é a minha nativa. Um país onde o sistema de ingresso opera em outra lógica, o sistema de notas é diferente; tudo é meio alienígena. Meus colegas também. Além de serem nativos da Suécia — salvo a exceção de alguns intercambistas de outros países — eles também são mais novos. Não muito mais novos, mas o suficiente para eu me sentir distante mais vezes do que gostaria de admitir.
Uma das coisas que me faz diferente deles é que eu tenho certeza do que estou fazendo ali. Pode parecer meio besta, mas aos 20 e tantos anos a maioria das pessoas por aqui ainda está experimentando (desculpa informar, mas se você passou dos vinte e poucos e ainda está experimentando, você provavelmente é mais privilegiado do que imagina). A vida aqui permite isso de certa forma. A universidade funciona mais ou menos assim: você não precisa se inscrever num curso específico para entrar. Existem “programas” que são parecidos com a nossa universidade brasileira, onde você entra já mirando numa profissão específica no final, mas você não é obrigado a fazer assim desde o início. Você pode simplesmente ir fazendo disciplinas soltas de qualquer área de conhecimento, sem estar preso a um curso, até gostar de algo e aí seguir para os tópicos mais avançados daquele assunto, se formando naquele tema dois ou três anos depois. Tenho colegas que estudam literatura comigo, mas também estão aprendendo programação, outros fazendo disciplinas de ciências políticas ou teatro, etc. É um universo bem diferente do que conheci quando cursei três anos de Licenciatura em Física no Brasil, há mais de dez anos atrás.
É estranho quando eu conto para os meus amigos brasileiros que estou de volta à universidade e eles me perguntam imediatamente “qual curso?”, porque não estou cursando um programa específico. Mas nesse primeiro semestre peguei disciplinas de linguística e literatura. As aulas são baseadas na premissa de que você já leu os textos e está chegando ali para debater o assunto com todo mundo (daí a exigência de às vezes ter que ler dois, três ou até quatro livros inteiros em uma semana, de formatos, tamanhos e gêneros completamente distintos, mais os textos de apoio e teóricos). É como se fosse um grande clube do livro que funciona todos os dias, intercalando com semanas de aulas de teoria, ministradas por professores especialistas naquele tópico. E aí mora a questão da diferença que falei lá no início.
Quando abrimos um livro pela primeira vez, a página 1 traz uma falsa sensação de início absoluto. Nenhum de nós jamais abre um livro como se nossa mente estivesse zerada. Todo livro tem uma página zero oculta, uma página abstrata, gigante, que traz todos os outros livros e histórias que sabemos antes de sequer olhar para a página 1.
A página 0 dos livros é o nosso repertório.
E o repertório tem uma função mágica que nunca muda: ele pode apenas aumentar.
Nunca diminuir.
Nas aulas de literatura, com uma turma de mais de cem pessoas interessadas nos mais diversos assuntos, tenho observado a página 0 figurando um papel importantíssimo em todas as discussões. É incrível debater histórias com pessoas de família árabe, por exemplo. As referências são outras, as interpretações trazem um foco menos óbvio, mais duro, as emoções que eles absorvem não são as mesmas que eu, mulher brasileira, sinto. Inclusive eu tenho tido a oportunidade de indicar muitos autores latinos, assim como estou aprendendo não apenas os nomes dos autores novos que estamos estudando na aula (estudamos literatura inglesa), mas também aqueles que meus colegas me indicam, da sua própria cultura. Nossos repertórios se chocam e às vezes causam terremotos dialéticos.
Os repertórios também estão se misturando, crescendo, expandindo seus tentáculos para todas as direções.
E você, pessoa leitora, já pensou no seu repertório?
Como a página 0 de seus livros influencia sua leitura, sua interpretação e a forma como você sente as histórias? Você tem lido autores radicalmente diferentes de você?
Você pode sempre responder a essa newsletter como qualquer email que chega na sua caixa de entrada.
(E se você ainda não assinou para receber os textos no seu email, clique no botão abaixo):
Jabás e recomendações
Recentemente eu fui entrevistada pelo site Como eu escrevo. Foi a primeira vez na vida que me debrucei longamente sobre meu próprio processo criativo e falei um pouco sobre como a participação dos leitores desta newsletter está influenciando as histórias que estou escrevendo agora.
Para quem curtiu o papo sobre literatura e línguas, o podcast Incêndio na Escrivaninha — projeto que toco com a Ana Rusche e o Thiago A. Lage — tem uma temporada inteira apenas sobre línguas e linguagem. Listo abaixo alguns episódios:
- Linguagem dos animais, com o professor Bruno Matangrano
- Línguas artificiais e fictícias
Tô indicando esses três agora, mas temos muito mais episódios sobre línguas para você se deliciar. Você encontra o Incêndio em todos os tocadores de podcast e no Spotify.
A Eita!Magazine está caminhando para os 160% de arrecadação para a nova edição. Contribua para que a gente possa pagar mais uma pessoa autora para compor a revista. Vai lá no nosso Catarse.
E para quem ficou curioso sobre como estudar aqui na Suécia, dá uma olhada no site Study in Sweden (o período de inscrição para os cursos que começam em setembro de 2022 está aberto para estrangeiros).
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
(site)
(twitter)
(instagram)
Sent from my tamagotchi
Ps: feliz dia das bruxas!
* Dijkstra, Edsger Wybe (2008). "Why numbering should start at zero (EWD 831)". E. W. Dijkstra Archive. University of Texas at Austin.