Esse texto é uma amostra da coluna mensal só para apoiadores. Expedições Criativas é um editorial que explora o tema criatividade por um viés pouco convencional, trazendo visões e questionamentos mais profundos sobre o fazer criativo.
Nota: eu montei uma nova oficina de escrita online. Da ideia ao ensaio está com vagas abertas para uma turma sábado dia 13 de abril. Tudo pelo zoom e com material de apoio trazendo ideias para você usar na sua newsletter.
A oficina será gravada e disponibilizada aos participantes no dia seguinte.
Solidão & liberdade
É importante que a pessoa esteja sozinha para entender o que é liberdade. Mas no que se pensa quando se fala de liberdade? Como coletivo, ninguém sabe, pois cada um está imaginando uma coisa diferente, uma manifestação própria e profundamente pessoal. A ideia de liberdade é frequentemente mais ligada aos limites que temos aqui e agora do que algo estático e imutável. Ela se transforma ao longo do tempo. O que era liberdade na nossa infância? Comer doces, ficar acordado até tarde, talvez quebrar alguma outra regra que hoje, na vida adulta, pode ser quebrada a qualquer hora e lugar sem nenhuma consequência. A liberdade na vida adulta é colorida e variada, muita gente vai dizer que tudo seria resolvido com dinheiro, mas não seria o dinheiro uma espécie de opressão? Quando imaginamos soluções para nossos problemas pessoais, certamente pensamos em dinheiro, mas se ele é a única saída para o problema, talvez ele seja o próprio problema. Isso não é, de nenhuma maneira, um pensamento leviano, ainda que seja possível concluir que o problema então é a falta de dinheiro e não o dinheiro em si. Ou o sistema econômico, as desigualdades, o capitalismo e enfim. No final, queremos um pouco de segurança no meio de tanta incerteza.
É fácil misturar a ideia de segurança com opressão. Há caminhos que parecem seguros, mas apenas cumprem o papel de manter um limite, um encarceramento disfarçado de proteção. Como a figura clássica do pai ciumento com a filha, que quer protegê-la do olhar alheio, dos perigos da rua e da exposição, mas para isso prende a filha em casa; tira dela a oportunidade de experimentar, de ser vista e de ver. O mundo é perigoso e cruel, sim, mas estamos todos dentro dele.
Estamos sozinhos no universo, ao que me consta, ou pelo menos neste cantinho do universo. O planeta, o sistema solar, vocês sabem. Até que os aliens batam a nossa porta, estamos sozinhos em uma casinha gigantesca, com tudo o que precisamos, nossos afetos e desafetos, amigos e inimigos, presos à atmosfera terrestre recheada de oxigênio, e por isso inventamos. Os universos escondidos pelo espaço talvez não sejam tão interessantes quanto os universos que criamos com a imaginação. Quem sabe por isso seja tão gostoso assistir filmes e ler livros, temos a chance de partir para longe do mundo conhecido, real. Dentro de nossos limites. Podemos pensar que somos livres porque podemos ir e vir sobre a superfície do planeta, mas não podemos sair para o universo além. Então, dentro dele, dentro dos limites, imaginamos. Protegidos.
Não há liberdade a ser sonhada sem limite a ser vencido. Talvez a criatividade seja uma manifestação disso, da nossa incapacidade, como humanidade, de se desprender do planeta Terra. A opressão da falta de oxigênio e ausência de condições ideais de vida no espaço lá fora são limites claros para o ser humano; ainda sim temos a ilusão de que não pensamos nisso, de que é papo para cientistas. Mas passamos a vida toda sob essa opressão. A filosofia, a religião, a ciência e a imaginação estão constantemente tentando entender esse limite. Mas muito mais do que tentativas de explicar o funcionamento do universo, elas justificam nossa incapacidade de apenas ir embora. Em um planeta que está obviamente se tornando mais e mais hostil à vida, essa obviedade é assustadora. Estamos presos em uma casinha de madeira em chamas.
Estamos sozinhos, tão sozinhos que não há deus ex machina possível.
A solidão é importante para criar. Não fosse o sentimento de solidão da humanidade, não teríamos inventado nada. Mesmo para alguém que acredita em deus, há certamente um sentimento de abandono, como se deus tivesse jogado a pessoa em um quarto com leões e tigres, trancado a porta e jogado a chave fora. Te vira. E então enxerga-se o teto, as frestas na parede, cria-se rotas de fuga, mexe-se o corpo, pois a única coisa que resta é a criatividade.
Todo mundo tem um pouco de MacGyver.É difícil uma pessoa ficar sozinha hoje, mesmo em isolamento físico. Internet, smartphone. Há um aparelho de contato imediato com o resto do mundo no bolso e cai-se a todo momento na tentação de preencher cada espacinho de solidão com entretenimento.
Eu sinto essa falta de solidão quando tento me conectar com os outros. É um movimento contraditório esse, mas às vezes para ficar sozinha eu procuro os outros, esses estranhos que podem ser espelhos, que podem ter as palavras certas para descrever algo que eu sinto, mas não consigo nomear. Essa procura acontece nas artes. Na literatura, na música, nas pinturas. E com frequência eu tenho sentido um alento maior e mais autêntico em coisas antigas, coisas do passado, enquanto na contemporaneidade tem sido mais difícil encontrar pérolas que traduzam bem meus sentimentos ou que me apresentem coisas totalmente novas. Há uma sensação de repetição tão profunda quanto o abismo sem fundo da rolagem da tela no celular. Às vezes o mundo parece tão barulhento que eu não sei se sou eu ou a pessoa do outro lado, mas algo não está se encaixando. Minha suspeita é de que falta solitude na nossa solidão. Uma certa privacidade no sentido de privação, de estímulos, de visual, de movimento, de som. Há um desconforto no meio do mundo superestimulado. Não acredito no isolamento total como uma resposta a esse inquietamento, mas acredito no ruído intercalado com pausa, como a música é construída, de sons e silêncio. Tem nos faltado o silêncio para formar o ritmo. Infelizmente, o barulho sem interrupção é apenas um chiado. Ruído branco. Tudo está preenchido.
É necessário reproduzir o sentimento de solidão da humanidade em nossa solidão pessoal. Esses dias meu noivo reclamou sobre sentir-se incapaz de ter um pensamento próprio ou original a respeito de um certo jogo. Ele então me explicou que era óbvio que o jogo era irônico por causa de certos elementos. Eu imediatamente chamei a atenção dele para o fato de que definir o jogo como irônico já é ter uma opinião. Acho que ele quis dizer que queria ter uma visão mais elaborada sobre a experiência, que gostaria de sacar todas as referências e inspirações da obra, como se ele precisasse escrever uma resenha detalhada do que viu. Imagino que esse sentimento venha da exposição constante à conteúdos de análise e resenha de jogos na internet. Fiquei pensando no cinema, naquele momento pós-filme quando a tela escurece e ficamos sozinhos com a sensação que a história nos provocou. Quando eu falo de solidão, eu falo também desse momento. Me parece que não deixamos esse instante solitário acontecer por muito tempo, pois tudo está preenchido. Jogar um jogo ou assistir um filme não são atividades que param quando a história termina e sobem os créditos. A internet continua trazendo o jogo e o filme para você e você vai morder a isca porque esse conteúdo é interessante. Isso acontece com tanta naturalidade e consistência que parece o único jeito de consumir as coisas.
Eu tenho me sentido muito presa por essa experiência, e não só porque eu a vivo todos os dias, mas porque eu também sinto essa opressão em cima das outras pessoas. Sinto falta da minha solidão e da solidão dos outros. Assim, a liberdade não me parece um projeto falido de algo que estamos tentando definir juntos, mas uma manifestação de rompimento, uma ação. A solidão real provoca ecos, não só os nossos, mas dos outros. Precisamos de solitude para escuta-los vindo lá de longe. Deixar o vazio dos outros encontrar o meu vazio. Sinto falta desse espaçamento. Em dias como esse, pergunto-me se as grandes crises sobre criatividade e arte deste século não são uma resposta a nossa profunda falta de solidão. E todo o vazio que perdemos com ela.
“Acho que vem daí a palavra solidão, pessoas tão sólidas que ninguém vem checar se estão ruindo.”
Se Deus me chamar eu não vou, de Mariana Salomão Carrara
Esse texto é uma amostra da coluna mensal só para apoiadores. Expedições Criativas é um editorial que explora o tema criatividade por um viés pouco convencional, trazendo visões e questionamentos mais profundos sobre o fazer criativo.
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📡 Satélite de recomendações
A criatividade é um ato de liberdade.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Ficar sozinha é primordial para eu me sentir eu mesma. No momento, o conje saiu pra academia e estou no silêncio (na real com as maritacas ao fundo), tomando café e lendo newsletter. Não sinto angústia ou tristeza, se não tivesse o celular, eu estaria ocupada com outra coisa e numa paz terrível. Acho a solidão um tema delicado no pós capitalismo, inclusive é fator de risco na saúde. Tantos fios a puxar. Obrigada pelo texto. Beijo.
também não acredito no isolamento total como uma resposta ao mundo superestimulado, mas acho muito importante ter momentos de solidão.