Aproveitando a onda da semana passada, quando escrevi por uma escrita menos criativa, hoje o texto tá diferente.
Preparem-se para serem voyeurs de uma troca de cartas. Dessa vez entre mim, na qualidade de imigrante na Suécia, e a Lalai Persson, brasileira na Alemanha, que conheço da badalada (e super recomendada) newsletter Espiral.
TEMPO DE LEITURA: 10 minutos.
Oi, Lalai :)
Aqui na universidade de Estocolmo há um sem-número de cerejeiras espalhadas pelo campus. É comum ver legiões de estudantes tirando fotos embaixo delas nos primeiros dias de primavera. Ou, melhor dizendo, nos últimos dias de inverno. Sinto-me alheia à excitação, o rosa pálido das árvores me lembra do roxo e do amarelo vibrante dos ipês, como uma lembrança apagada de uma vida mais colorida e movimentada existindo agora, nesse momento, nos arredores do trópico de Capricórnio. Um colorido que eu estou perdendo. Quando me perguntam porque eu moro longe, aqui nessa terra fria, eu não sei mais responder. Me falta uma articulação simples para uma resposta complexa. Eu não sei. Mas é suave viver aqui.
Depois de mais de sete anos, me encontro em um momento de entender a melancolia da obra de Ingmar Bergman, embora hoje eu aprecie mais o trabalho de outras pessoas do cinema local. Compreendo a mística e a sedução de seus filmes, a palidez do ritmo e a dureza das paisagens, o país é assim mesmo. Me faltam palavras para falar da Suécia, é um lugar de um simplismo gritante, ensurdecedor. Sua história recente parece uma linha reta, organizada, sem deslizes. Mas é vivendo nessa insólita linha que percebo a maioria das coisas acontecendo sem serem faladas. Estranho. Afinal, que país é esse onde o verbo foi diminuído? A dúvida desenrola mais perguntas do que respostas. País indecifrável.
Mas que diabos é um país?
Estou estudando sobre a formação da identidade nacional sueca em uma disciplina do departamento de História, mesmo que eu não seja aluna desse curso. Para entender a identidade sueca (e seu nacionalismo) é necessário visitar o conceito de país, nação, nacionalidade e outros quetais, por onde vou me fazendo perguntas sobre a minha própria brasilidade. É impossível viver em terra estrangeira sem pensar na terra natal. O tempo todo.
Um dos elementos mais importantes para caracterizar um país é a língua; ao estudar sobre o desenvolvimento do sueco, aprendo que ele não é exatamente o mesmo no sul e nem no norte. Isso me faz pensar no quão bizarro é o Brasil com o português entendível do Oiapoque ao Chuí. Como esses europeus são tão incompetentes que não conseguem se fazer entender em um território que tem apenas o tamanho da nossa região sul? Bom, porque não sofreram a agressão de um genocídio e um processo violento de colonização. A língua é mesmo um chicote. Se hoje a gente não pensa mais nisso, talvez esteja na hora de revisitar o sentimento. Não sei. Penso no português com carinho, mas também com um pouco de raiva. É meu refúgio, minha primeira paixão, mas é uma língua que chegou na minha boca por um rastro de sangue.
Esquecer, jamais.
Hoje, durante uma aula de literatura árabe, ministrada em inglês, eu escutei dois colegas cochichando atrás de mim e estranhei. As palavras escorreram direto para o coração do ouvido, sem obstáculos, sem aquela característica truncada e ruidosa com que chegam as línguas estrangeiras, que são como uma visão borrada do outro lado de um vidro embaçado. Falavam português. Será? Escutei com mais atenção e percebi que não. Falavam sueco. E o mais extraordinário: eu não conhecia exatamente todas as expressões que eles usavam, mas ainda sim, a língua escorreu macia para dentro de mim e eu entendi tudo. Você sabe, Lalai, que a maioria dos imigrantes em países do norte europeu comunicam-se muito mais em inglês do que na língua local. Na Suécia é difícil ser fluente se você veio para cá trabalhar com tecnologia, que é o meu caso. O idioma oficial de trabalho é o inglês. Mesmo estudando a língua sueca por anos, eu costumo dizer que meu sueco é funcional. Eu sempre tenho que fazer esforço para entender. Sempre! É cansativo, mas acho que me acostumei ao cansaço. Quando me mudei para cá, eu sabia muito pouco inglês, conseguia ler e tal, mas conversar era um suplício. De algum jeito eu consegui um emprego, e depois outro, e outro, e nos primeiros 2 anos morando aqui eu chegava em casa com uma tremenda dor de cabeça todos os dias. Era o preço da vida bilíngue. Mas foi assim que fiquei fluente em inglês e hoje até ficção eu consigo escrever nesse idioma. Não só escrever, mas editar as narrativas escritas por falantes nativos. Falar e escrever em inglês virou algo natural, não me causa dor e nem estranhamento; assim como o português, a palavra já escorre direto para o meu coração. E assim como português, é uma língua que me desperta emoções profundas de amor e ódio. O outro idioma que conheço, o francês, também segue nessa cartilha emotiva. Espanhol. Estamos fadadas a falar apenas línguas genocidas?
Uma das coisas que mais amo sobre ser uma estrangeira no lugar que chamo de lar é o silêncio da ignorância: ando pelos lugares e escuto apenas meus próprios pensamentos. As vozes das pessoas são ruídos. Talvez seja de um grande egoísmo isso. Não sei. Parece que vivo mais no meu mundinho particular do que na terra dos outros. Mas mês passado recebi a visita de alguns amigos brasileiros e quando eles me perguntavam o que estava escrito nas placas e anúncios pela cidade, eu soube traduzir tranquilamente tudo, sem precisar parar para pensar. Isso nunca tinha acontecido antes e é um absurdo enxergar tão nítido agora, depois que eu simplesmente desisti das aulas de sueco em 2020. Curioso… Faz duas semanas que tenho dores de cabeça intensas depois de passar o dia na universidade. Talvez o cérebro esteja se abrindo para receber o sueco em um abraço, assim como fez com os outros idiomas. Talvez eu esteja só me enganando. Talvez a Suécia tenha me envenenado de cinismo contra ela mesma.
Lalai, como é o alemão para você? Sei que você mora em Berlim. Todas as vezes que eu fui aí — e não foram poucas, já que a passagem de avião para a Alemanha antes da pandemia era o mesmo preço que uma passagem do ônibus Rio-SP — eu vivi situações engraçadas pelas ruas e bares, já que o inglês não parece ser tão língua-franca como na Suécia. É possível se virar só com inglês por onde você anda?
Esses tempos eu falava com um amigo dinamarquês sobre os atrasos dos nossos amigos latinos nos encontros. E ele me disse uma coisa que desceu meio amarga: para mim, você é sueca, não vejo diferença entre o jeito que você leva a vida e as pessoas daqui, eu só lembro que você é brasileira quando você fala do Brasil. Acho que ele estava me tecendo um elogio meio bagunçado, nunca me identifiquei com a cultura sueca e foi maluco entender que alguém me via assim. Isso me fez pensar sobre como será que as pessoas me veem, o que elas sentem quando estamos juntas. Já passei por situações ruidosas aqui por ser brasileira, nada alarmante, mas aprendi que muita gente no trabalho e na universidade me procurou para desabafar porque sou latina, porque parece que o estereótipo sobre sermos abertos alcança os outros como um convite para serem acolhidos. É bonito, mas desconcertante. Tem essa magia que o Brasil exerce sobre as pessoas. Muitas vezes, em rodas de conversa com pessoas de inúmeras nacionalidades, alguém pede para cada um dizer de qual país é. As pessoas vão dizendo Índia, Estados Unidos, França, Marrocos, China… e quando eu falo Brasil, imediatamente todo mundo abre um sorriso. Isso não acontece com outros países. Lalai, você já percebeu isso? O Brasil é uma visão de amor. Tenho receio de revelar que na nossa terra também há ódio. Muito ódio. Mas acho que gosto de fazer morada nesse lugar amoroso que se constrói na fantasia do estrangeiro. Talvez eu mesma esteja um pouco estrangeira.
Uma das coisas que eu mais amo aqui é a liberdade de ir sozinha caminhar no mato e nadar no lago. 70% da Suécia é floresta. Existem duas reservas naturais onde eu consigo chegar a pé caminhando da porta do prédio, e eu estou na capital do país. Sinto como se minha casa não se restringisse ao apartamento térreo onde moro, mas como se todo o bairro fosse meu. Ando tanto pelo mato local que reconheço cada árvore das proximidades, o desenho dos galhos, a cor das folhas. Nunca pensei em me mudar do Brasil. Na verdade, nunca pensei em me mudar de Porto Alegre. Quando me mudei para São Paulo por um convite de trabalho, achei que ficaria longe por cerca de um ano e depois voltaria. Mas foram cinco anos na selva de pedra. E agora mais de sete anos na selva de… bem, árvores. A Suécia tem esse relacionamento profundo com a natureza. É nessa fresta que eu deslizo e encontro uma morada, como se o meio ambiente fosse parte intrínseca da vida das pessoas. Às vezes saio para fazer trilhas sozinha na floresta de Tyresö e cruzo com outros andarilhos, rola um aceno educado e cada um segue seu rumo. Eu gosto do diálogo do silêncio no mundo selvagem. Foi aqui onde aprendi a abraçar árvores espontaneamente quando sozinha e beijar a parede de concreto do meu apartamento, agradecendo pela graça de pertencer. É na natureza que as línguas se tornam obsoletas e as expressões do silêncio viram poesia.
Eu estava escrevendo essa carta de dentro da biblioteca da universidade, mas o sol lá fora me atraiu para o pé de um freixo. Estou sentada aqui, o tronco do corpo apoiado no tronco da árvore. Essa árvore na qual foi inspirado o mito da Iggdrasil, a árvore da vida da mitologia nórdica. É engraçado como os suecos são reticentes com a visão do mundo viking que o resto do planeta joga sobre eles. A mística não se sustenta exatamente aqui, na terra de Freya. Se eu fizer um esforço linguístico, tudo parece pertencer a um mundo fantástico paralelo, a rua das Valquírias, a avenida de Tor, a praça de Odin. São esses os nomes dos lugares quando traduzidos, assim como no Brasil alguns lugares tem nomes de santos. Muitos prédios tem forma de barco e muitos barcos encontramos por toda Estocolmo, essa capital feita de ilhas. Não é só a temperatura que nos avisa da estação, é também a forma da água, o congelamento das coisas no inverno, segurando o mundo em suspensão, unindo as ilhas como um bloco de terra só. Uma ilusão temporal.
Na minha frente as cerejeiras estão se desmanchando agora. As pequenas pétalas em rosa apagado, quase branco, chegam no meu rosto com o vento quente de maio. O tempo de pular no lago vem chegando e o humor das pessoas está melhor. Sinto que esse verão vai ser incrível. Nem estou chateada pelo fato de que o sol vai brilhar incessantemente por mais de 20 horas daqui para frente. Assim como as plantas, é tempo da fotossíntese do humor — o que a gente absorver da vida agora vai nos fazer atravessar o inverno escuro sem enlouquecer.
Espero que você tenha um verão quente e iluminado em Berlim.
E quando quiser me visitar aqui em Estocolmo, as portas estão abertas. Quem sabe no Midsommar?
Um abraço,
Vanessa.
Nota aos leitores
Para acompanhar o resto dessa conversa sobre imigração, assinem a newsletter da Lalai também. Eu, particularmente, gosto muito da edição 66 “Você é feliz?”, que ela escreveu em fevereiro.
Satélite de recomendações
Muito além de Ingmar Bergman
Meu filme favorito do homem é Persona, mas gostaria de indicar umas coisinhas de outros diretores suecos de quem eu gosto muito.
O filme Amatörer (Amadores, de 2018), da Gabriela Pichler. É uma obra radicalmente diferente de toda a filmografia sueca, com uma história que se desenrola pelas lentes de diferentes imigrantes que vivem numa pequena cidade do interior. É bem experimental, com uma qualidade incrível. Eu me emociono ao ponto de chorar toda vez que o filme termina. É lindo, lindo, lindo.
O filme Flickorna (As garotas, de 1968), da Mai Zetterling. Quando estudei no Instituto de Cinema da Suécia, aprendi que a Zetterling era considerada, por algumas pessoas da área, mais talentosa que o Ingmar Bergman. Mas por causa do teor político deste filme em específico, ela perdeu o apoio do Instituto para fazer suas produções. É uma peça feminista e criativa que, além de jogar com críticas sociais sutis sobre o bem-estar social, fala sobre ter ou não ter filhos, contracepção e as mazelas em ser mulher e artista.
A série de tv Gösta (de 2019), do Lucas Moodysson. É um slice of life de um psicólogo de 28 anos extremamente gentil que quer ajudar todo mundo na sua volta. Além da história simples, mas interessante, essa série tem apenas 1 temporada e é o puro espírito da comédia sueca contemporânea, na minha humilde opinião.
Bônus: esse mesmo diretor tem um filme adolescente muito fofo chamado Fucking Åmål. Como foi lançado em 1998, eu acho que ele faz um contraponto muito bom às comédias românticas estadunidenses do mesmo período.
Espero que tenham gostado da cartinha. Se quiserem perguntar mais coisas sobre a Suécia, a vida de imigrante ou questões de escrita, newsletter, etc, vou deixar aqui o botão de perguntas anônimas do meu NGL.
Vou responder vocês pelos stories do meu instagram. Acompanhem lá.
No mais, pensei em escrever uma edição sobre Rita Lee e o adeus à essa nossa grande, que partiu logo no último eclipse lunar. Mas tem tanta coisa sendo dita por aí, me parece meio esquisito. Não sei. Mas fica aí meu grande abraço para todo mundo que também é fã dessa mulher fenomenal que nos deixou essa semana. 🕊️
Por hoje é só.
Beijos e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Uau. Sinto-me arrebatada e privilegiada por receber essa carta aberta. Passou-se um filme na minha cabeça, já que a Suécia habita a minha vida indiretamente. Entendi tanto sobre o que você fala da vida por aí,dos suecos, da natureza e inclusive a passagens sobre os vickings. Obrigada pela delicadeza e poesia das suas palavras. Espero conseguir responder à altura. ❤️❤️❤️❤️
Adorei sua carta, obrigada por abri-la pra gente. Admiro sua coragem de viver nesse lugar que é tão frio em tantos sentidos. Depois de ter morado em vários países e ter voltado ao Brasil, também penso na minha brasilidade e nos pedaços de outras identidades nacionais que ficaram em mim. (Curiosa pra ler a resposta da Lalai)