Nazismo, cinema e uma dose de culpa
De Quentin Tarantino a François Truffaut, o que estamos fazendo com a culpa pelo passado que não podemos mudar?
Hoje venho com uma reflexão espinhosa, mas de coração aberto, sobre um tema que me intriga muito.
Feliz terça-feira.
Aviso: pode conter erros de digitação e gramática.
Eu costumo evitar filmes sobre o período da Segunda Guerra porque, além de me deixarem deprimida, eles geralmente romantizam todas as coisas que não deveriam ser romantizadas (sacrifício, honra, etc). Inclusive, essa nova onda de filmes que humorizam aspectos do nazismo parece-me um insulto.
Até agora não assisti ao comentado Jojo Rabbit porque só de ler a sinopse me sinto enjoada — sim, eu sei que é dirigido e protagonizado por um ator maori, também descendente de judeus, de quem gosto muitíssimo, Taika Waititi (que conduz o meu seriado favorito do momento, What we do in the shadows, uma sátira perfeita da vida de vampiros no século 21). Ainda sim, não me sinto confortável com a ideia de assistir a uma retratação de Hitler posto como amigo imaginário de uma criança de 10 anos, membro da Juventude Hitlerista, por mais que o apelo seja para o cômico. Não consigo ver nada de cômico nessa ideia. Uma das poucas retratações que me contradizem um tanto sobre isso é do Tarantino, Bastardos Inglórios, onde há humor, mas não há romantização de absolutamente nada — talvez apenas do cinema representando a arte como elemento catalisador das nossa dor, visão explícita por Shoshanna, a protagonista judia que realiza a vingança final.
Talvez o que me dê desconforto é a tendência em retratar a figura de uma pessoa judia em um momento de vulnerabilidade total (muita vezes presa num porão, dependente da boa vontade de outrem), dependendo da boa vontade de uma pessoa protegida pelo status quo do momento, cuja figura é humanizada através desses artifícios baratos: uma criança, uma mulher, um soldado que não gostaria de estar ali. É uma forçação de barra para criação de heróis no meio dos alemães e uma sistemática vitimização da resistência judaica. Essas escolhas são perigosas, porque mexem com a nossos sentimentos de espectadores; afinal, esses personagens estão representando apenas parte do que foi o fucking regime nazista. Se escolhemos usar apenas o artifício da humanização e empatia das raríssimas histórias de exceções que fizeram parte desse regime, como se fossem a experiência universal, me parece que forçamos uma espécie de identificação com os alemães do início do século 20 que, como povo, viabilizaram a possibilidade do Holocausto.
Por isso, nos últimos anos, todas as tentativas de ironização desse período (e das figuras históricas que fizeram esse período) parecem descabidas. Como se o tiro saísse pela culatra. Penso que não há nada de errado em investir em novas produções que contam histórias sobre a guerra, mas a visão distanciada que estamos vivendo por esta geração de cineastas me deixa angustiada. É como se o tempo afetasse a memória coletiva, mesmo que a gente ainda tenha acesso ao registro histórico dos horrores que o fanatismo identitário alemão trouxe.
Não seria essa onda de filmes engraçadinhos um sintoma da culpa colossal que sentimos hoje pela guerra, pela colonização e pelos privilégios também?
Culpa
Há três newsletter atrás (no texto Feridas abertas entre Brasil e Europa), algumas pessoas me escreveram para falar de culpa. Como uma pessoa branca lida com a culpa quando se depara com seu privilégio ao entender as dificuldades que uma pessoa negra enfrenta?
No Brasil, especialmente, as discussões sobre isso quase não aparecem — pelo menos não em um sentido mais popular. Vejo sim, grupos de amigos comentando isso na pequenez da dúvida, aos cochichos, com medo de estar sendo ofensivo ao tocar no assunto. Porque não há leveza para falar sobre isso; e nós estamos preguiçosos de tudo que não possa ser suavizado. Temos preguiça do que não pode ser resumido a uma frase de efeito, uma resposta pronta ou uma piada infame.
Parece que não temos ferramentas cognitivas para falar de assuntos difíceis.
Quando penso na ideia do filme Jojo Rabbit, penso nessa nossa cultura de memes, em que tudo é passível de virar algo leve, algo debochado, principalmente coisas que não podemos consertar. Penso no embrulho do estômago que temos quando olhamos para o passado. É como se esse mal-estar gerasse a necessidade do escárnio, a vontade de rir do inrisível. Isso parece tornar as coisas mais palatáveis. Mas e aí? O que se tornou palatável? A ideia de que os nazistas eram pessoas ridículas e passíveis de deboche? Não parece ser isso que a história real revela. A nova onda fascista no mundo está aí para mostrar o quão perigoso pode ser essa ridicularização generalizada.
Quebrando a corrente
Uma coisa em comum nos filmes sobre a segunda guerra, independente de seu gênero, é o final. O final é sempre agridoce e triste (A Vida é Bela, Begni, 1999), heroicamente catártico (Capitão América, 2011) ou cheio de revanche (Bastardos Inglórios, 2009).
Mas há um filme sobre o período que não segue esse padrão. E é nesse filme que eu tenho encontrado conforto nesses tempos críticos que vivemos sobre identitarismo, revisionismo histórico e crise mundial.
O último metrô
Esses dias, me peguei assistindo ao filme francês O Último metrô (François Truffaut, 1980) pela terceira vez só esse ano. Na história, vemos a ocupação dos alemães na França em 1942, quando Paris é tomada pelas tropas e a vida das pessoas é profundamente afetada por todas as mudanças que os alemães forçam na cidade. O transporte público e a distribuição de comida são reduzidos, censura é instituída, judeus são perseguidos e um toque de recolher é imposto. Com a redução drástica do fornecimento de combustível, há uma grande queda na oferta de transporte público, que sujeita as pessoas a longos períodos de espera pelo próximo trem. Os parisienses passam a gastar um tempo muito maior pelas ruas, à mercê desses horários esparsos de transporte, ao mesmo tempo em que ataques ocasionais e a presença militar alemã tornam o ambiente urbano perigoso. A solução encontrada pela população é ocupar os teatros até o horário do último trem.
A história do filme acontece em um desses teatros de Montmartre. Administrado por um casal de artistas, a guerra não só bate à porta como entra com toda a força na vida de todo mundo que faz o teatro acontecer. Aqui, a censura talvez seja o menor dos problemas, ainda que cumpra um papel importante no desenrolar do enredo. Nesse contexto, o diretor e dono do teatro, o judeu Lucas (na pele do ator Heinz Bennet), some. Dizem que viajou para longe. Mas logo descobrimos que sua esposa, Marion (vivida por Catherine Deneuve), escondeu o marido no porão da casa de espetáculos.
Em um clima de muito tesão um pela companhia do outro, eles passam as noites transando e conversando sobre a performance dos atores, escondidos nesse porão escuro, mas cheio de livros e velas, de onde o marido ouve a atuação da peça em exibição pela tubulação do teatro. O amor entre Marion e Lucas é evidente. E uma coisa que me pega muito é a erotização desse amor na tela, principalmente entre duas pessoas mais velhas, que estão juntas há muito tempo. A felicidade deles permanece ameaçada o tempo todo pela presença dos alemães em Paris, mas o esforço mútuo em continuar vivendo através dessas noites no porão é uma expressão fortíssima de resistência. Marion acaba vivendo uma vida dupla, fingindo até mesmo para os funcionários do teatro que o marido realmente está fora do país. Muitas vezes é questionada por ter casado com um homem judeu. A mulher navega por essa vida dupla sem leveza; o mundo brutaliza seu dia a dia, e tudo que acontece a ela e ao teatro são tratados com a seriedade que merecem. E nem ela e nem o teatro se desmancham. Seguem firmes.
Mais tarde, Marion se envolve com um dos atores da peça em cartaz, Bernard (vivido por Gerard Depardieu), numa outra chave de paixão e erotismo que culmina em pouco (ou nenhum) conflito moral. Aí está umas das coisas que mais me agradam nesse filme; a ausência de culpa. Tudo o que os três protagonistas querem é continuar vivendo para produzir a próxima peça de teatro. Bernard é secretamente membro da resistência francesa, ele tem seus próprios dramas e perigos para enfrentar, mas é óbvio que a sua paixão pela vida e pela arte conectam-no diretamente a Marion. E essa mesma paixão pela arte mantém aceso o amor entre Marion e Lucas. Em nenhum momento o interesse de Marion pelos dois é posto à prova. Em nenhum momento ela precisa escolher entre um e outro. Frente às atrocidades daqueles tempos, a generosidade de Truffaut em oferecer a Marion o afeto desses homens apaixonados é um contraponto ao peso que o mundo externo traz à vida dos três. Não é tratar com leveza os assuntos difíceis; é permitir que histórias de amor aconteçam sem conflitos motivados pela culpa. Aqui, o conflito vem de fora, do público e institucional, não do privado.
É uma história norteada pelo amor pela arte, pelas pessoas e pelo desejo de proteger o direito de se expressar.
Culpa pelo privilégio
Nos outros filmes sobre a Segunda Guerra que citei antes, a culpa parece ser a peça-chave que leva aos finais clichês. Essa culpa também aparece nesses filmes novos, cheios de sátiras e piadas pastelão com as figuras do nazismo. O humor parece uma saída sedutora para lidar com qualquer tema difícil. E a culpa sempre será um tema difícil.
Isso me leva de novo para a questão que apareceu por aqui esses dias: e a culpa da pessoa branca pelo seu privilégio? Eis aí um nó invisível que aperta a garganta de muita gente, pois, assim como qualquer outra questão complexa, não há resposta final.
Nos emails e mensagens que recebi na newsletter sobre as Feridas abertas entre Brasil e Europa, notei que essa culpa é também sobreposta por um desejo de ação. Como se “fazer algo a respeito” fosse uma boa reação à vontade de reparar o mundo. Aprender a usar o privilégio para favorecer quem precisa parece um jeito de começar a lidar com as coisas, sim.
No filme de Truffaut, Marion navega seu privilégio (o sobrenome Steiner, sua pele branca e a cabeleira loira) usando-o como carapaça de proteção no confronto com a Gestapo, na vigilância da censura e na presença de oficiais alemães no teatro. Em nenhum momento a culpa por esse privilégio aparece como uma questão ou a paralisa. Ela não tem medo de usar isso para proteger as pessoas, o teatro e a si mesma.
É aqui que a ausência de culpa atinge uma camada mais profunda. O desejo de salvar e sobreviver é mais forte. Não há espaço para o remorso por coisas que ela não pode mudar. Inclusive, a falta de auto-punimento dá espaço para que Marion encare de frente os problemas. É quase como uma segurança de caráter.
Essa atitude me parece uma força contrária à satirização das coisas. Quando a gente se guia pelo desejo — de reparar, de sobreviver, de ajudar —, podemos nos libertar um pouco da culpa. A culpa paralisante, a culpa pesada, a culpa pelo o que não podemos consertar. Isso não é sinônimo de “não ter consciência”. Mas de encontrar jeitos para lidar com o que não podemos consertar de modo direto.
Desejo de final feliz
O último metrô tem um final feliz. A obra-prima do cineasta François Truffaut fecha no primeiro sorriso que Marion exibe em todo o longa-metragem; o retrato de quem não fugiu ao próprio desejo.
Percebo que assistir a esse filme repetidamente é meu próprio desejo de assistir um final feliz. Dou play de novo e de novo no filme, apenas pelo prazer de assistir a última cena.
Como faz falta uma luz no fim do túnel.
Recomendações
Dessa vez eu queria que vocês me recomendassem alguma coisa.
O que vocês estão lendo? Tem alguma newsletter nova no pedaço que vocês estão curtindo? Um livro massa, uma série, um filme, um podcast?…
Manda aí! Eu quero as recomendações de vocês.
Na próxima news, vou começar uma seção mais sólida de recomendações e quero montar uma boa fonte de coisas legais para mandar para todo mundo.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Ps: Para assistir O último metrô, você pode usar o serviço de streaming que só tem filme velho ou cult, a Mubi.
Antes da pandemia eu fazia um trabalho de reforço escolar em uma comunidade carente aqui em Araruama/RJ e sempre ficava pensando em que músicas e textos eu podia ler que valorizassem a pessoa negra. Mas ao mesmo tempo sempre tive receio de fazer isso e parecer que eu, uma branquela, esteve falando de alguma coisa que não me pertence. Vamos retomar o trabalho de reforço agora e estou ainda tentando ver como levar esse material e fazer uma troca com os jovens da comunidade. Quando você falou da culpa branca lembrei dessa questão. Não é minha única culpa pelo privilégio, mas é uma das quais eu tento fazer algo por ela.
Minha recomendação é a série Dickinson, da Apple+. É sobre a juventude da poetisa Emily Dickinson e mistura drama e humor, e faz uso de vários anacronismos para modernizar a narrativa. Tou na segunda de três temporadas (já está encerrada) e amando.