TEMPO DE LEITURA: 7 minutos.
1) Ninguém gosta de pessoas excessivamente narcisistas. Eu tenho uma amiga de muitos anos que é uma das pessoas mais narcisistas que eu conheço. Muitas vezes o excesso de narcisismo atrapalhou a amizade, eu já fiquei meio ano sem falar com ela por conta de uma situação problemática para nós duas, mas ela fez tudo ser sobre ela. Rompi. Meu limite de tolerância foi atravessado. Ela via a situação por um ângulo muito diferente do meu. Felizmente, depois de meses, a pessoa reconheceu meu aborrecimento e fez mais do que se desculpar, me escreveu uma carta longa explicando porque eu me afastei dela. Eu não precisava que ninguém me explicasse o que eu já sabia, mas foi importante ver que ela entendeu as nuances e os motivos do meu rompimento. Um pedido de desculpas com contexto vale muito mais a pena do que um simples pedido de desculpas sem maiores reflexões. A amizade restaurou-se e continuamos.
É essencial ter por perto pessoas que são capazes de passar por cima das próprias convicções para enxergar o outro ali na frente. Minha amiga continua meio narcisista, mas hoje em dia noto que eu me dou uma certa autorização para ser narcisista quando estou com ela. Essa liberdade tem me feito bem.
2) Eu estava há pouco mais de cinco anos fazendo terapia comportamental quando notei que só trocar de terapeuta não estava me jogando na direçao de um buraco mais profundo para onde eu queria olhar. É paradoxal, eu sei. Eu já tinha feito terapia até em língua estrangeira, uma experiência que sozinha já renderia um texto inteiro. Foi quando procurei a psicanálise - no bom e velho português, minha língua-mãe. Foi uma decisão ousada; metade dos meus amigos ama conversar sobre o tema e a outra metade chama psicanálise de pseudociência. Tinha receio de ser bombardeada de informações e empolgação pelos primeiros e duramente criticada pelos outros. Foi por causa desses dois perfis tão distintos que eu demorei quase um ano para contar para galera que eu estava no divã. Quando decidi me abrir, primeiro revelei para os fãs da psicanálise; nas conversas com eles eu encontrei uma validação que construiu a coragem para contar para aqueles que creem que psicanálise não é uma terapia válida. Então, eu tive as conversas difíceis, com pessoas que me amam e não estavam contentes com minha decisão pessoal sobre terapia.
3) Deitar no divã e ser criticada por alguns amigos me levou a explorar alguns escritos da psicanálise (tanto textos lá do início dela quanto textos mais contemporâneos, que atualizam os temas). Uma das coisas mais surpreendentes dessas leituras foi descobrir que narcisismo não é exclusivamente uma patologia, mas algo que todo mundo tem um pouco.
Mas o que faz de uma pessoa mais narcisista que as outras? E por que a pessoa que reconhecemos como narcisista incomoda tanto?
Eu tenho um suspeito. Talvez o segredo da diferença esteja no espelho.
4) Quando conheci essa amiga narcisista, ela costumava falar de seus planos e sonhos de vida com muita convicção. Sonhava alto e falava de desejos megalomaníacos. Queria para si coisas quase irreais e falava delas como se fossem palpáveis. Possíveis. Era como se ela vivesse em outra realidade. Do outro lado, nós ao redor dela, que tínhamos tantas dúvidas a respeito de nossas próprias capacidades, nós que não ousávamos pensar em ser tão grandes, ficávamos espantadas com aquele discurso. Se não nos autorizávamos a sonhar tão alto, como que uma pessoa tão próxima, tão parecida com a gente, permitia-se esses delírios? Metade de mim se preocupava, metade de mim queria acreditar que ela conseguiria.
Hoje, quase quinze anos depois, ela já conquistou todas as coisas que queria. Independente da opinião dos outros. Ou, apesar da opinião dos outros.
4) Acredito que o jeito que olhamos para as outras pessoas tem muito mais a ver com a gente do que com elas. Alguém que classificamos como narcisista pode causar estranhamento, porque não é de praxe ver um amor próprio tão em evidência. Se chamo minha amiga de narcisista e não a mim mesma, vejo uma diferença entre nós. É um espelhamento da minha personalidade na dela, um reconhecimento dos lugares onde não nos encontramos.
Quando eu era adolescente, gostava quando diziam que eu era uma pessoa fácil de lidar, mas detestava quando diziam que eu era metida a sabe-tudo. Por muito tempo eu ocupava a cabeça pensando em como ser uma pessoa agradável, uma atividade desgastante e impossível. Ser agradável, sendo mulher, significava também parecer menos inteligente do que eu sabia que eu era. Ao mesmo tempo em que me questionava se eu era inteligente de verdade ou se estava só me iludindo, sendo, no fundo, apenas mais uma pessoa babaca.
A ideia do narcisismo causa medo, porque a maioria das pessoas não quer ser vista como tal. Não acho que temos medo de ser narcisistas, mas temos medo que as pessoas nos percebam assim. Vem da coleção de tudo que dá medo. As estranhezas, as faltas. Olhar para nossos buracos é aterrorizante.
5) Lendo sobre psicanálise, aprendi que o narcisismo tem a ver com egoísmo. Quando eu era criança, chamávamos de egoísta o amiguinho que não queria emprestar seus brinquedos pro grupo, que não compartilhava. Freud explica. E ele diz, na sua Introdução ao Narcisismo, que “um forte egoísmo protege contra o adoecimento”. Na minha interpretação, esse tal adoecimento que ele fala tem muito a ver com a busca das pessoas preocupadas demais em agradar aos outros. Logo depois, o mesmo Freud aponta que “é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar.” É a corda bamba do instagram de auto-ajuda: bote você mesma em primeiro lugar (seja mais egoísta), mas também seja generosa e disponível para os outros (seja menos egoísta) e assim você será amada. Um pouco de droga, um pouco de salada.
Nas leituras, entendi que o narcisismo impede que uma pessoa enxergue outras realidades a sua volta. A narrativa que ela escolhe para si parece-me uma espécie de proteção.
Mas proteção contra o quê?
6) Não existe lugar no mundo que me assuste mais do que o lugar onde eu nasci. E não há tema mais difícil para mim do que escrever sobre esse lugar. No entanto, estou trabalhando em histórias que se passam exatamente lá e exploram aspectos de tudo o que me faz ter vergonha, me assusta, me surpreende e me faz questionar o que significa pertencer a um lugar. Me espanta o narcisismo do povo gaúcho e é nesse espanto, nesse grande buraco escuro, onde despenco agora. Em queda livre, mergulho numa abertura cavada dentro de uma árvore aqui na Europa e vou caindo pelo centro da Terra em um corredor vertical de espelhos em direção ao pampa rio-grandense. Como uma Alice chegando no país do chimarrão.
Escrever sobre essas coisas é terrível quando entro em modo analítico.
7) Há uns dez anos, quando minha amiga decidiu criar uma editora, ela me escreveu pedindo um livro. Para mim, logo para mim. Eu, que nunca tinha publicado nada mais do que alguns tweets e tinha um blog péssimo sobre minha vida comum de jovem adulta em São Paulo. Quando nem eu mesma acreditava que seria capaz de escrever qualquer coisa que preste, essa pessoa estava lá me fazendo o chamado que nem eu mesma ousei fazer. Não cheguei a escrever livro nenhum para ela, mas tive a humildade de ouvi-la. Enxergar minha escrita pelos olhos dela — e de tantos outros amigos — me fez começar a acreditar em uma coisa que era minha.
8) O narcisismo impede que a pessoa perceba as necessidades das outras e, no entanto, minha amiga me viu quando nem mesmo eu me enxergava. Perdida nas minhas neuroses, não olhei pro meu próprio nariz.
9) Ninguém gosta de pessoas excessivamente narcisistas. Mas toda pessoa que tem uma ideia na cabeça precisa de uma dose de narcisismo para acreditar em si mesma. Precisa de um pouco de fantasia. E de uma ou duas pessoas sem medo de sonhar alto e sem receio de acreditar no potencial das amigas.
10) O dia que a psicanálise me ganhou, foi o dia que ouvi que ela era a cura pela palavra. Eu não tinha nada para curar, não me sentia doente. Mas se havia um lugar onde a palavra tinha todo esse poder, eu precisava ver de perto. Precisava espiar o abismo. O buraco.
O espelho.
Bastidores da escrita
Faz tempo que queria experimentar escrever nesse formato de lista. Como eu queria emular um pouco uma sessão de psicanálise, me pareceu adequado. O item 6 é mais ou menos como eu mesma desvio do assunto quando me incomodo com alguma curva na sessão. É como tento desconversar de mim mesma. Mas invariavelmente falo do mesmo tema ao tentar sair dele. Lacan explica 🙃 Eu acho. (Minha analista é lacaniana.)
Satélite de recomendações
Para quem curtiu me acompanhar fazendo o Caminho de Santiago ano passado, indico forte os textos da Surina. Ela também fez um dos caminhos, um bem mais longo do que o meu, e escreveu lindamente sobre a experiência. Esses aqui os são meus favoritos de todos os textos dela:
O Angelo publicou uma edição nova da À Revelia ontem que me deixou bem reflexiva. Confira:
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..e aqui, outra vez em que eu falei de narcisismo:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Adorei este. Tenho pensado muito sobre a prisão de querer agradar todo mundo o tempo todo; é minha bola da vez... Obrigada por olhar a sua amiga narcisista e refletir de volta pra gente - e obrigada, também, pelas recomendações do Sofá da Surina.
P.S. Tenho muita vontade de ver a sua escrita num livro!
E a gente que lê aqui enfrenta junto. Obrigada pelo texto 💛