...que mora ao lado mas parece outro país. Versos conhecidos sussurram poesias da minha terra e se teve algo que me fez levantar da cama antes das 7 da manhã do sábado foi a voz do Nei Lisboa, músico de Caxias, gaúcho como eu.
Gaúcho como eu. É muito estranho revisitar essa identidade que há muito exorcizei, mas às vezes eu sinto que tudo que pode me salvar é invocar o demônio de volta para dentro do corpo.
Minha sogra está ilhada sem comunicação na região do Vale do Taquari, em um vilarejo colado a Lajeado, Lajeado é aquela cidade do vídeo que está circulando pela internet, em que um pedaço dela simplesmente sumiu. Virou um rio. São imagens fortes. Temos certeza de que ela está bem e segura, mas a falta de comunicação gera medos e ansiedades. Familiares e amigos, espalhados por regiões dos quatro cantos do estado, mandam mensagens de tempos em tempos para avisar que estão bem, tem comida, tem luz, tem internet. Às vezes não tem e sabemos pelo silêncio. Nunca se sabe quanto vai durar o silêncio. Minha irmã, que não dormia há dias, finalmente mandou um video rindo, meio de desespero, meio que se divertindo porque nossa mãe resolveu fazer bolinhos de chuva para esperar o tempo passar. Os camaradas dos assentamentos e sítios perdendo a colheita. A maioria das pessoas na capital está naquela letargia estranha, divididos entre a inércia e as ventanias, aquelas que vem de fora e jogam a chuva do céu contra as paredes incessantemente e aquelas que vem de dentro, o ímpeto de fazer alguma coisa, algo além de mandar um pix, algo além de verificar com todos os mil grupos de whatsapp se todos estão bem, qualquer coisa, para diminuir a tragédia. Estamos calejados do isolamento e das limitações.
Um silêncio sem fim, deixando a rima assim sem mágoas, sem nada.
Uma camarada pediu para rezarmos, pois quando uma pessoa que não acredita em deus reza, vale por 100.
Eu vi alguém reclamando no twitter que o New York Times fez uma matéria sobre as inundações no Rio Grande do Sul enquanto a mídia nacional não tinha feito nada. Óbvio que era um exagero. As notícias estavam sim circulando. Mas quando eu falei com os amigos dos outros estados, pouquíssima gente sabia. Não sei se foi o show da Madonna que ofuscou ou o fato de que vivemos em bolhas mesmo, ou em um mar de informações, as notícias só chegam quando alguém compartilha. Sei lá. Fiquei levemente impactada. Ao mesmo tempo, tantas enchentes aconteceram no Espírito Santo e em Santa Catarina e eu fui saber só um ou dois dias depois, quando a água já havia baixado.
Em Porto Alegre, nos anos 90, aprendi que a minha rua favorita da cidade, a Rua da Praia, chama-se assim porque no início as margens do Rio Guaíba chegavam até ela. Isso parecia uma loucura, tantos prédios enormes naqueles três ou quatro quarteirões entre a rua e a margem do lago… Esse lago (estuário, acho que é o termo técnico correto) que nos acostumamos a chamar de rio.
Ontem deitei na cama, na minha cama a 11 mil quilômetros de distância, e eu vi.
Eu vi as margens do Guaíba avançando em direção a Rua da Praia.
Quando criança, eu me impressionava com o fato de tudo aquilo ser um aterro e muitas noites eu fui dormir imaginando a rua da praia como.. bem, uma praia. Ver aquilo acontecendo no mundo real em um vídeo, em uma imagem fora da minha cabeça, foi como um descolamento da realidade. Foi a mesma sensação que eu tive ao ver a aurora boreal pela janela no meu quarto aqui no fim do mundo. Sinto um certo pavor inexplicável ao perceber isso.
A tragédia, a dor, o prazer, o amor, o ódio, aceleradores do sangue. Correntes emotivas, abalos sísmicos de um coração partido.
A única coisa segurando o lago é um muro. E onde não há muro -
Permaneço à espera.
Para acompanhar o que está acontecendo
O instagram da Prefeitura de Porto Alegre;
Matéria: Enchente do Guaíba passa a cheia histórica de 1941; fotos mostram comparação
Como ajudar
O governador do estado pediu doações em pix para a população do país — um absurdo. Como disse o amigo Juds, não temos como saber se o Eduardo Leite vai usar essa grana para ajudar mesmo. Lembrando que ele planejou uma verba de 50 mil reais para a defesa civil, controle ambiental e desastre ambiental em 2024, quando haviam 117 milhões de verba disponível. Houveram rusgas entre ele e Matheus Borges, deputado do PSOL, talvez valha a pena ler sobre o caso.
Se você quiser ajudar alguém agora, de imediato, é melhor doar para organizações da sociedade civil como ongs e coletivos que estão efetivamente lidando com o ônus da tragédia com as próprias mãos.
Para quem mora no RS, tem esse compilado de lugares que estão aceitando doação de alimentos, roupas etc.
Isso é tudo por enquanto.
Vanessa Guedes.
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Ps: O verso que abre essa edição e a frase em itálico no meio do texto é dessa música do Nei Lisboa.
Que ódio do Eduardo Leite e que sorte que nosso povo, esse brasileiro, sempre dá jeito em meio às maiores merdas. Às sucessivas e intermináveis merdas que vivemos aqui. Um abraço forte, da capixaba que vê todos os anos, cidades do es tbm afundarem em dias normais.
Desejo que a sua família continue bem e vc, também, mesmo longe. Não sou gaúcha, mas estou muito comovida com o que está acontecendo e muito indignada com a bolha da Madonna. Já estava antes, ao saber que os governos locais concederam R$ 20 milhões para o show enquanto os hospitais colapsam e a cidade segue insegura. É o país das contradições e da alienação mesmo. Que a chuva dê trégua e que cada um encontre coragem para recomeçar.