Num lugar onde eu trabalhei em São Paulo, recebia o salário em forma de cheque no quinto dia útil do mês. A peãozada saía aos bandos para depositar o cheque no banco, antes que algo acontecesse com o precioso papel. Na primeira vez, recebi meu cheque enquanto tomava chimarrão e nada mais natural do que me dirigir ao banco com o cheque enfiado dentro do tênis, o chimarrão em uma mão e a garrafa térmica cheia de água quente debaixo do braço. No caminho para o elevador, todo mundo riu. Fui convidada a deixar o aparato no escritório porque, além do mico que eu pagaria na rua, talvez o segurança do banco encrencasse com a térmica, que não caberia naquela portinhola onde colocamos chave e celular antes de passar pela porta giratória. Foi a primeira vez que deixei a cuia para trás. Além disso, tomar chimarrão é uma atividade em grupo e em todos os lugares onde eu transitava eu era a única a mantê-la. Foi perdendo o sentido até que o hábito diário virou semanal, mensal… semestral.
A identidade gaúcha foi se esvaindo de outros jeitos também. Descobri que no RS a gente se comunica de uma forma mais bruta do que o resto do país – com exceção do Rio de Janeiro, nosso páreo natural – e aprendi a suavizar o discurso. No sul, é normal manifestar o que se pensa, muitas vezes em um tom bem agressivo. Mas não é óbvio isso ou aquilo? Morando longe, aprendi muito mais observando os outros, ouvindo os outros, do que expressando minha opinião sobre a vida alheia sem ser requisitada. Morando em outro estado, descobri que uma conversa normal para mim, poderia ser uma ofensa para os outros. Era petulância demais. Franqueza demais. Os amigos mais próximos faziam piada com um suposto “mini superego”, uma crítica meio carinhosa, meio desconcertada, ao meu hábito de achar que estava sempre certa. Hoje eu brinco que tenho amigos que viraram mais do que amigos; são parte do meu superego. Já faz mais de uma década, mas a lição permanece. Ainda bem.
Na primeira vez que andei de metrô às seis da tarde na estação da Sé, possivelmente a mais movimentada do continente sulamericano, eu brandei em voz alta para minha amiga ao lado “como as pessoas não se revoltam contra isso? É um absurdo! Toquem fogo na Secretaria de Transportes, façam alguma coisa!” Paguei mico, claro. Eu paguei muitos micos morando longe. As pessoas me olharam incrédulas. Meu desespero ao ser esmagada contra uma massa de corpos, sem que eu pudesse me mexer, acendeu uma revolta genuína e uma sensação de incompreensão contra a passividade do resto. Senti-me desumanizada. Mas quantos anos eu não andei em pé em um ônibus lotado, por 1 hora e meia em Porto Alegre, para ir para a escola e trabalho? Será que se eu viesse de outro lugar, naquela época, também não falaria a mesma coisa para meus conterrâneos? Para mim mesma? E no entanto, eu vivi 20 anos em pé nos ônibus abarrotados da capital gaúcha, sem dar um pio.
Uma questão de classe
Não dá para controlar a opinião dos outros sobre a nossa identidade.
Quando estava em São Paulo, sofria porque as pessoas achavam que eu era de família rica, enquanto meus pais são da classe trabalhadora. Minha família miscigenada limpou os lares desses mais abastados de quem achavam que eu era herdeira. Criaram seus filhos burgueses, enquanto meus primos criavam uns aos outros sozinhos em casa. A opinião alheia doeu muito, exatamente porque era algo que eu não podia controlar. A ideia que as pessoas de fora tem sobre o sul é de uma herança europeia privilegiada absoluta. Talvez fosse porque a maioria das outras pessoas gaúchas em SP cabiam nesse perfil. Talvez fosse uma ilusão. Um estereótipo. Talvez fosse tudo isso junto. Uma perspectiva incapaz de entender que, por exemplo, estatisticamente o RS pode ser ligeiramente mais branco, mas não é branco. Que no RS existe pobreza, existe perrengue e existe muita luta também. Contraditório explorar exatamente esses tópicos sensíveis para aproximar o RS do resto do Brasil, parece uma coisa tão óbvia e estúpida. Na época eu sentia-me muito mal quando pensava nessas coisas.
Mas, na época, a vontade era de gritar para as pessoas do resto do Brasil que eu não era aquela guria. Queria tatuar na testa que: tinha estudado em escola estadual, não sabia falar inglês, não tinha faculdade e nunca tinha experimentado comida árabe (e outras tantas) até pisar em SP. Até transitar entre pessoas de outra classe social. Mas era uma batalha perdida. Inclusive porque as pessoas com quem comecei a andar em São Paulo estudaram em escola particular a vida toda, viajaram para fora do país com os pais, eram fluentes em inglês e conheciam todo tipo de comida internacional possível. Eu não tinha vivido com nada disso até ali, mas fui abrindo o caminho sozinha e acessando essas coisas inclusive porque comecei a andar com essas pessoas, fazer parte do mundo delas. Aprender do que elas falavam e com o que se importavam. Tornar-me fluente em outros idiomas e outras vidas.
Mas isso não importa mais.
A identidade gaúcha é uma piada.
Para o resto do país. E isso nunca mudará o fato de eu ter nascido lá. Ter vergonha de certas coisas não me faz menos gaúcha.
Por muitos anos eu tentei esconder um pouco esse pequeno grande fato sobre a minha vida, enquanto me sentia um alien na minha terra. Às vezes, quando ia visitar, eu não conseguia conversar direito, me sentia desarticulada, como se não falasse mais a língua local, já que língua é muito mais do que palavra pura. É gesto, expressão, tom de voz, os assuntos que importam. Demorei para perceber, mas isso me gerava um grande sofrimento. No sul, todo mundo ouvia as influências não só do sotaque alterado, mas do jeito mais suave e quieto de lidar com as coisas. Os familiares diziam “a paulista veio nos visitar”. Amigos bêbados me acusavam de traição. Como assim tu viu um pôr do sol mais bonito do que o Guaíba? Heresia! Parecia que eu devia algo às pessoas, que era injusta, mas não sabia nem com o quê. A estadia em solo gaúcho nunca durava muito e a vontade de correr para São Paulo batia muito rápido.
Quando eu voltava para SP, “lá vem a gaúcha com o sotaque carregado de novo, que bonitinha. Tomou muito chimarrão?”
Eu me sentia uma piada ambulante.
Generosidade pessoal
Também viajei muito pelo resto do Brasil a trabalho e turismo. A única região onde (ainda) não pus os pés foi o norte, mas por todo o resto eu andei. E, por muito tempo, voltar para Porto Alegre me botava numa situação meio Bilbo Bolseiro retornando ao Condado.
Hoje eu moro fora do Brasil há mais tempo do que morei em São Paulo, e o Brasil virou meu Condado. Falar da cultura e dos problemas sobre a identidade gaúcha, longe do pré-julgamento de outros brasileiros, me deu liberdade para criar minha narrativa. Consigo apresentar as coisas que me dão alegria com leveza, sem começar pedindo desculpas por ser gaúcha. A distância da terra nos permite ver sua localização com mais clareza, não apenas geografica e historicamente, mas tal como ela se apresenta agora. Não é passar pano para o passado vergonhoso do estado. Tampouco enaltecer o tradicionalismo que comemora uma data em que ocorreu um genocídio de pessoas não-brancas, caso da Revolução Farroupilha. Não temos como alterar o passado, mas podemos agir pensando no futuro. Essas coisas devem ser lembradas e revisitadas para que as próximas gerações saibam, discutam e problematizem as coisas com a visão do presente.
Quando moramos longe, pensamos no lugar de origem como aquela ilha inalterável pelo tempo. Mas a cidade onde eu nasci já não existe mais. É outra. Assim como eu sou outra. E foi só ao enxergar essas mudanças que encontrei uma forma de conexão nova. Se eu mudo e a cidade muda, temos algo em comum.
Sigo menos envergonhada do meu estado do que antes. Se no passado a rebeldia gaúcha culminou em uma revolta separatista que influenciou inúmeras províncias Brasil afora, hoje a rebeldia que restou pode ser encontrada em ideias mais generosas. Na fama da mulher gaúcha que não leva desaforo para casa. Na figura de Brizola. Na presença da resistência negra. Nas mobilizações regionais da Via Campesina e do MST. Na arte em escolher bem as peleias onde se mete, as brigas que se compra. Na política que prioriza o povo e ainda vive, a despeito de eleições. Talvez seja um momento de lembrar que política não se faz só nessa época, mas nos anos que separam uma eleição da outra. Nos espaços de resistência e aprendizado. E sobre isso, eu me comovo ao pensar na educação política que o povo do meu estado me deu.
Me ensinaram primeiro que sou brasileira, de um povo sofrido para quem nada é dado de graça. Me ensinaram que gente do sul não é apenas isso. É gente do sul do Brasil. Um povo que recusa-se a ser quem os outros lhe dizem que é. Um povo que nunca esquece ser Brasil.
Talvez seja essa a brutalidade da língua.
Que tenhamos sempre fibra para enxergar nossas amarras.
E que nunca saia de nós o desejo de lutar contra as amarras que nos prendem.1
Seu Jorge
O assunto da perda de identidade regional cruzou com um caso de racismo sofrido pelo Seu Jorge em Porto Alegre na última sexta-feira. Foi revoltante ler sobre o ocorrido.
“A Polícia Civil marcou, para esta quarta-feira (19), os depoimentos de testemunhas da investigação de racismo durante show do cantor Seu Jorge em Porto Alegre. Na última sexta (14), o artista se apresentou no Grêmio Náutico União, tradicional clube da cidade, quando foi chamado de ‘macaco’ e ouviu pessoas imitando o som do animal, segundo a polícia.”
Matéria do G1.
Mesmo que tenham sido algumas poucas pessoas que sentiram-se confortáveis em manifestar publicamente seu racismo contra um artista que estava no palco onde apresentava seu trabalho, as mensagens que recebi sobre o caso foram no tom de “olha aí o RS nos fazendo passar vergonha de novo”. O racismo não é um problema exclusivo de um estado, mas o sentimento de derrota de ver isso acontecendo justamente lá, com a fama que o RS tem, é brutal. O lugar onde ocorreu o crime é um clube famoso, onde meus parentes faxinaram os banheiros por anos.
O discurso do Seu Jorge é certeiro. Ele não generaliza o estado gaúcho como uma unidade personificada, mas vê a pluralidade e as desigualdades que o compõe. Fala com as pessoas não-brancas que estão lá e que o resto do país ignora em suas generalizações. Ele bota o dedo na ferida das instituições que viabilizam o racismo estrutural e oprimem o povo. Chama as pessoas para se organizarem coletivamente.
Isso é política também. E das mais potentes.
Eita! Cidades
A campanha do Catarse da Eita! Magazine ainda está no ar! Lembrando que: temos cadernos-passaporte lindos de recompensa, sem contar um curso de escrita e muito mais. Apoia lá.
Evento
Um evento para reunir pessoas autoras e leitoras de newsletter que estejam dispostas a discutir nossa relação com a produção e consumo de conteúdo em texto. Veja aqui.
Quando: 5 e 6 de novembro
Onde: pelo Zoom
Quanto: 48 reais (com vagas sociais; veja no site).
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Esse pedacinho do texto foi inspirado na famosa frase da marxista Rosa Luxemburgo. “Quem não se movimenta, não sabe as amarras que o prendem.”
Vanessa, acredito que o sentimento de "eu mudei, e o lugar também" vá ser encontrado em Andaimes, do Bennedeti. Quando li, foi como um abraço. Beijos, adorei a newsletter!
Tenho dito que sair do seu lugar no Brasil para outro, costumeiramente sp, é como ser estrangeiro no próprio país. Faz um ano que sai de Recife, tenho ótima relação com meu estado e cidade e sinto saudades, mas foi ótimo vir e ver outras realidades e neste pacote tem o conhecer tamanho de alguns preconceitos. Sempre fui muito bem tratada em terras gaúchas, adoro a serra e retorno de tempos em tempos. Esse país carrega muitos países dentro, torço para as pessoas abrirem os olhos para a riqueza que é tudo isso. Para sermos mais curiosos e menos julgadores, sabe? Texto lindo e vulnerável, tem um pouco de cada um de nós.