O desejo e a exclusão
Sonhei que pegava uma escritora e mais: o substack, o sentimento de ser excluído e um bonde de outros desejos
Eu vou lamber todas as tuas tatuagens. I am gonna lick all your tattoos. Ali mesmo, na cozinha da escritora norte-americana Lena Dunham, nós duas sentamos de calcinha e sutiã no chão de madeira, cercadas de folhas — nossos romances em andamento, papeis de prosa marcados de anotações e floreios; estavamos uma revisando o texto da outra como uma mútua invasão de privacidade consentida (e não é isso o trabalho de qualquer edição ou revisão? remexer no íntimo, no infinito) —, então afastei seus cabelos cor de cumaru sedoso para trás das orelhas, soltei uma gargalhada, ela riu também e eu contemplei aquele dentinho mais para cima (meu ponto fraco), a boca risonha com o ar de permanente deboche; parti para selvageria. Taquei-lhe um daqueles beijos que a gente simplesmente vai para cima da pessoa, abraçando-a com as pernas, os braços, quase trazendo-a de uma vez para dentro de mim. Ela me beijou de volta com a mesma intensidade e assim entramos numa daquelas transas que parecem um transe, uma dança. Eu vou lamber todas as tuas tatuagens. E lambeu. E lambi.
Acordei meio sem ar e coradíssima. Então, fiquei intrigada.
Esse é o problema de ter um sonho desses com uma pessoa que você teoricamente detesta. No livro Exploração, da peruana Gabriela Wiener, ela expõe a intimidade das dinâmicas sexuais de sua vida não-monogâmica enquanto faz uma análise cortante e eloquente sobre as consequências da colonização das Américas e nossa herança cruel, que mistura explorador e explorados no nosso sangue. “Eu acho que a sexualidade não pode ser entendida isolada das outras dimensões da vida”, ela lança em um dos textos centrais. Gabriela relata seu envolvimento com uma mulher espanhola, branca, de classe alta e magra, enquanto ela mesma é uma latina americana, típica mulher andina e gorda, embora esteja agora numa certa posição de privilégio como escritora bem estabelecida na Espanha, escrevendo no El País. Gabriela põe-se na posição de exploradora da terra de seus colonizadores e também de seus desejos, paixões e contradições. Embora seja composto de longos ensaios pessoais, esse texto tem uma linguagem literária elegante e sedutora, daquele tipo de prosa de quem sabe o que está fazendo e onde está chegando. Lá. Bem no íntimo da leitura.
Nesses dias de turbulência nas redes sociais, onde o Brasil amarga uma viuvez momentânea de Twitter/X, ter um sonho molhado com uma escritora que simultaneamente admiro e detesto foi um escape simbólico para repensar no poder das palavras e na dimensão do desejo. Esse ser incontrolável que habita as profundezas do conhecido-desconhecido. Lena Dunham escreveu, dirigiu e protagonizou a série Girls. Sucesso da HBO nos anos 2010, hoje parece imbecil dizer que foi revolucionário ver uma jovem mulher gorda pelada, transando loucamente com Adam Driver, na tela da TV. Mas foi. E talvez tenha sido essa projeção, essa parte pura e destacada da imagem de Lena que eu quis consumar no meu íntimo. Ou sua segurança absoluta como escritora que sabia onde queria estar; e estava. A despeito de ser uma nepobaby1 com todos os recursos, e apesar de ter escrito um livro sobre escrita que comete o mesmo pecado de Stephen King com seu Sobre a escrita; é mais uma autobiografia do que qualquer outra coisa. Lena Dunham era alvo de minha admiração pelo talento inegável, mas também era alvo de meu desprezo e inveja por ter acesso às coisas que eu jamais terei. Ela estava no lugar certo e na hora certa — talvez seja essa a composição do sucesso, ter talento e saber usá-lo quando a oportunidade te encontra.
Minha amargura, assim como nossa amargura sobre a suspensão do Twitter no Brasil, é o puro sentimento de exclusão.
No livro Sobre desistir, o britânico Adam Phillips escreve um ensaio belíssimo sobre ser excluído. E como o hábito de se sentir excluído leva a gente ao plano da identificação, quase como um lifestyle. Uma maneira de existir onde estar excluído é parte inerente de como experienciamos a vida. Em certo momento ele conta que “os heróis trágicos são sempre vingativos. E sempre se sentem excluídos de algo que consideram ser de suma importância.” Nos últimos tempos eu tenho acompanhado os posts na nova rede social da escrita, o Notes, com muita curiosidade. Observo que há uma preocupação em deixar claro que ali é uma comunidade feliz e verdejante, onde plantamos escritores e os regamos com entusiasmo e motivação, todo nosso amor. Mas também há um paradoxo do discurso da exclusão de quem está chegando agora numa praia que parecia deserta, mas estava habitada e ó, que absurdo, aqueles que estavam aqui há anos estão oprimindo os recém chegados. Eu entendo o sentimento, pois eu me senti assim em outros lugares pela vida inteira e ainda hoje me sinto profundamente deslocada quando estou junto de escritores que publicam em grandes editoras, por exemplo. Me sentir excluída é um lugar de conforto, pois me dá um passe livre para me sentir apagada desse lugar de enorme importância: a literatura brasileira. Mas a realidade é que tenho conhecido de perto alguns desses nomes que circulam nos espaços onde nunca estive antes e a verdade é que as pessoas são muito mais gente querendo chegar onde nosso desejo também quer, e menos de pessoas que olham para baixo com desprezo. Estamos todos olhando para cima, por isso no caminho a gente vê quem está mais perto daquele pontinho luminoso onde queremos estar. É fácil odiar alguém que não pode se defender; difícil é olhar para as instituições e os mecanismos do capital (e da oportunidade) que permitem essa hierarquia silenciosa.
Poucos anos atrás, no Twitter, um projeto literário belíssimo do qual fiz/faço parte foi alvo de um ódio coletivo enorme, uma tentativa de cancelamento. Eu e outras pessoas tínhamos trabalhado todos os dias por seis meses, sem remuneração e após nosso horário de trabalho normal, para que um bando de aleatórios jogasse impropérios mal-fundamentados em apenas um ou dois dias, nos acusando de estar excluindo pessoas, quando o projeto era acessível e tinha uma diversidade regional e racial imensa. Tentaram a todo custo acabar com nosso trabalho. Depois de passada a mágoa e a tristeza, entendi que o ódio das pessoas não era da gente, mas do mercado literário em si. Das grandes editoras. Mas ao mesmo tempo que odiavam as grande editoras, eles também desejavam estar lá, pois estar lá é o reconhecimento do talento, da capacidade e da moral. Vi, vim e venci, como diria Júlio César, que anos depois foi morto a facadas pelos seus. Foi mais fácil para aquelas pessoas expressarem seu ódio contra algo que estava nascendo, algo que elas também gostariam de participar, mas era pequeno o suficiente para não queimá-las no mercado editorial. Sinto que estamos cada vez mais afundados na máxima de que as pessoas não querem resolver nada, elas querem sangue.
“Nós nos organizamos em torno dessas experiência de exclusão e estreitamos a mente para conseguir lidar com elas. E a identidade, assim como a exclusão, nos torna violentos.” O Phillips segue explicando que a identidade é a autocura para a experiência de exclusão. Se me sinto suprimida de certo lugar, é porque eu sou X ou Y. Temos esse costume de, então, diminuir nossa identidade também. Honestamente, eu sinto que esse sentimento é saudável até certo ponto, pois a raiva e a violência podem ser como uma força motriz para nos movimentar à diante. Nesse sentido, toda a expressão de arte — música, desenho, pintura, escrita etc — é uma manifestação do sentimento de estar excluído. E por isso nos identificamos com a arte, pois a única coisa da qual nenhum de nós se sente excluído é a experiência de exclusão. Todo mundo passa por isso. É um dos pilares da vivência humana. Mas quando isso ofusca todo o resto, quando não é possível mais criar por outros motivos, outras causas, a exclusão vira uma armadilha. Ela ofusca sua própria base, a questão de que não estamos aqui sozinhos uns contra os outros, mas que somos vítimas coletivas de um sistema político que nos explora, colocando-nos uns contra os outros.
Então volto à Gabriela Weiner, no momento em que ela percebe: “Desejei nas mulheres o que queria em mim, magreza, brancura.” E penso nos meu desejo de possuir Lena Dunham, algo que meu consciente jamais permitiria, pois a detesto. Mas Lena não é apenas a representação do privilégio, seu talento e seu corpo gordo não me deixam odiá-la por inteiro. Talvez meu sonho com ela tenha sido uma maneira do inconsciente de humanizar eu mesma. Eu que me sinto excluída e, consequentemente, uma pobre coitada que nunca chegará a lugar nenhum porque esse ou aquele está na minha frente. Meu desprezo por ela não era afinal ela, mas minha raiva de uma sociedade guiada pelo capital e pelas consequências da colonização. É muito fácil odiar Lena Dunham, difícil é direcionar esse ódio para o capitalismo, para o monopólio americano da literatura, sei lá. Instituições sem face, de uma existência pulverizada, pois isso é o neoliberalismo; um vírus, uma legião invisível que está por toda parte.
Por ora, me sinto feliz de perceber que meu inconsciente me fez amar a parte de Lena Dunham que divido com ela: meu corpo e meu amor pela literatura.
Expediente: vou deixar de publicar às quintas-feiras
Aviso aos navegantes, a partir desse mês eu volto à programação de 2021 e 2022, publicando com frequência, mas sem dia fixo.
O motivo é simples, eu voltei às aulas aqui no hemisfério norte e comecei a reta final do bacharelado em artes e humanidades na Universidade de Estocolmo. Só no mês de outubro eu tenho mais de três mil páginas de textos literários e acadêmicos para ler, sem contar as aulas de linguística, minha maior dor de cabeça (é horrível aprender fonética e teoria de pragmática em outro país). Também estou me adaptando a tomar antidepressivo para tratar uma condição de saúde que demorei cinco anos para descobrir. Como me conheço bem, eu sei que continuarei escrevendo para um c*ralho aqui para vocês, mas não tenho condições nenhuma de manter um dia fixo para isso.
Aos apoiadores: continuarei publicando um editorial exclusivo das Expedições Criativas todo mês (inclusive em setembro vocês vão receber dois, pois não consegui fechar o ensaio de agosto devido ao estresse de ter ficado sem computador e sem celular funcionais por mais de duas semanas).
Qualquer coisa estou aqui disponível por e-mail - é só responder esse diretamente.
📡 Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Do dicionário Collins, nepobaby: uma pessoa, especialmente na indústria do entretenimento, cuja carreira acredita-se ter sido impulsionada por pais famosos.
Achei tão cinematográfico e honesto esse sonho. Que belo conto Sáfico. A cada linha eu estava mais absorta. E quanta lucidez esmiuçar as tantas camadas que estão por trás das nossas esperanças, temores, deveres e devires. Muita coisa no seu texto bate no coração de muitas leitoras e escritoras.
Agradeço pela generosidade da sua escrita, Vanessa. É um deleite mergulhar nas suas reflexões e destilar o ódio pro sistema, ainda que seja mais fácil projetá-lo nas figuras que a gente admira/odeia. Um abraço, boa sorte nas aulas e leituras : )
Amiga, algo mudou aí. Daqui me parece q sua escrita mudou. Aquela maturidade que almejamos na escolha de palavras pra conter os excessos. Amei esse texto. Sempre os adoro. Mas esse, veio com aquele clique. Uma belezura.