O fogo na terra da arte 🔥
Como ser observador e agente, turista e imigrante, no terreno escuro da criação
E que se faça a luz.
Creio que há apenas dois jeitos de participar do mundo, com dois papéis bem claros: observador e agente. Sempre somos um ou outro, não importa a situação. Mas para fazer qualquer tipo de arte, é necessário meio que usar esses dois modos simultaneamente, às vezes dando mais espaço para um do que para o outro. Tenho motivos para chegar a essa conclusão logo de cara.
Fazer arte é como andar pelo desconhecido, explorando áreas vendadas, desfamiliares — meio como diz Marguerite Duras em Escrever, quando ela descreve essa experiência como encontrar-se dentro de um buraco. Para mim é mais como estar em um terreno aberto enorme e escuro, talvez ventoso, segurando uma vela acesa. Às vezes percorro esse terreno como turista (observadora), outras vezes como imigrante (agente).
Se estou andando pelo terreno como turista, o vento pode apagar a vela e a consequência disso é a interrupção do que eu estiver observando. Posso ficar com a memória do que eu estava vendo e fazer o que quiser com isso sem grandes consequências. Mas se eu estiver andando pelo terreno como imigrante, perder a fonte de luz é um acontecimento crítico, pois como imigrante eu faço parte daquele lugar e minha estadia ali não é temporária. Eu preciso de luz. Então convém aprender estratégias para evitar que a chama da vela se apague.
Convém aprender a direção que o vento sopra.
Nesses últimos tempos, distanciei-me da escrita e da colagem (minhas formas favoritas de expressão artística) por semanas. Essa distância auto-imposta foi um efeito colateral do cansaço de percorrer esse terreno inexplorado todos os dias, por anos e anos, sem parar. Eu estava precisando de familiaridade, de lugares conhecidos e um pouco de descanso desse estado de exploramento que a arte impõe. Mas é claro que nós podemos sempre deixar a arte de lado, como técnica, mas a arte como modo de vida nunca nos deixará. Pensei muito no processo artístico — inclusive porque estou cansadíssima de conhecer o processo de criação dos outros o tempo todo. Talvez isso seja tema para um outro texto, mas não posso deixar de lembrar que por conta da sensação de obrigatoriedade em postar nas redes sociais o tempo todo, as pessoas usam muito o próprio processo artístico como produto. A transação que acontece é a troca da exposição por curtidas, uma forma de capitalismo requintada, tão normalizada em nossa rotina que nem a enxergamos mais como transação. É como se o fazer artístico fosse produção e produto ao mesmo tempo. Que loucura, né?
Quando alguém se propõe a fazer algo simples, vamos dizer assim, como um desenho, a falta de costume e habilidade coloca-se como um desafio difícil. Mas na verdade esse é o primeiro passo para dentro do terreno desconhecido e escuro. Ninguém sabe como o desenho será até que ele seja. Ninguém sabe o que será feito até que se tente fazer. Ninguém lerá um texto até que ele seja escrito. O problema, estamos carecas de saber, é que a pessoa não sabe fazer um círculo em linha reta, mas já está pensando no que os outros vão dizer sobre o desenho que ela ainda nem rabiscou. Isso também tem outra faceta, o fato inegável de que os louros do reconhecimento jamais virão para os desafios fáceis. No livro Arte e Medo, Baileys e Orland usam os jogos olímpicos para exemplificar essa questão.
“Arte provocativa desafia não apenas o espectador, mas também o artista. A arte que fica aquém muitas vezes não é assim porque quem a criou não conseguiu superar o desafio, mas porque, em primeiro lugar, nunca houve um desafio. Pense nisso como nos saltos ornamentais das Olimpíadas: ninguém recebe pontuação alta se saltar do trampolim mais baixo, nem mesmo por um mergulho perfeito. Há pouca recompensa por uma perfeição que pode ser rapidamente alcançada por muitos.”
Há pouca recompensa por uma perfeição que pode ser rapidamente alcançada por muitos. A busca por perfeição é um dilema. Enquanto paralisadora — faz com que as pessoas desistam antes de tentar — ela é a inimiga do prazer, pois faz com que esqueçamos de fazer as coisas “só por fazer”. Como o 8 de ouros no tarô, que descreve a paixão pelo processo, pelo trabalho; fazer algo sem focar na recompensa, mas porque se quer fazer aquilo. Por outro lado, também temos essa perfeição meia-boca, essa coisa meio feijão com arroz que funciona na teoria, mas não traz nenhum desafio real. O jeito como nossa vida digital se organiza faz com que ambas perfeições sejam como vento apagando a vela. O imigrante em terra desconhecida precisa encontrar maneiras de reavivar a chama, reacender o fogo quando o vento da perfeição o extinguir.
Tomar o papel de agente é responsabilizar-se pela vela que ilumina o lugar onde estamos indo enquanto artistas. Ou enquanto seres humanos, seres criativos, sei lá, toda pessoa tem potencial para acessar essa parte de si tão escura, tão profunda, tão íntima. E do outro lado, volto a imagem do turista, o observador, aquele que está lá espiando e experimentando esse lugar de um jeito muito controlado. O observador que não precisa aprender muito sobre o fogo que dispõe, pois sua relação com ele é temporária, breve, fraca. Isso não quer dizer leviano ou banal, pois muitas vezes essa conexão descompromissada é tudo o que precisamos. Por isso digo que criar coisas novas, fazer arte etc, é usar ambos simultaneamente. Entender de qual precisamos em cada momento é um tipo de inteligência única e intransferível. É impossível ensinar alguém como melhor usar cada um desses papéis. Por isso é preciso sujar as mãos, os pés e os joelhos, engatinhar no escuro atrás da vela; e acender o pavio com a boca, o sopro faiscante que guardamos aqui dentro, quando descemos ao abismo.
É bom estar de volta ao terreno escuro com vocês :)
Chegou uma galera nova por aqui essa semana. Para conhecer um pouco mais dos meus textos, deixo aqui o link para um dos meus favoritos:
📡 Satélite de recomendações
o belíssimo livro de ensaios Ferozes Melancolias, da Ana Rusche - cujo prefácio eu assino, com o maior prazer do mundo, esperando que ele esteja à altura de apresentar esse livrão;
”Às vezes penso sobre o começo do universo. Fecho os olhos na cama antes de dormir, coloco as mãos na barriga e procuro as origens da existência, mas no fim das contas tudo que consigo encontrar por dentro das pálpebras é vácuo.”
o livro 108, da escritora Surina Mariana, que comecei recentemente e já estou apaixonada;esse edição da news do Marcos Candido;
e essa pequena bio-letter sobre uma das minhas artistas surrealistas favoritas, feita pelo querido Eric Novello.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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quando você fala em terreno escuro eu lembro daquelas gincanas do Gugu em que a pessoa precisava meter a mão em um buraco e adivinhar o que tinha lá dentro, podia ser tanto uma cobra quanto um coelho fofo. Às vezes a pessoa esperneava, se debatia toda, mas metia a mão mesmo assim. Acho que quem escreve tem essa coragem dos convidados do Gugu hahah
Eu que acredito no artista como agente da ciência profunda do Ser, fico agradecido a esta linda mensagem marcando o retorno da autora Vanessa Guedes nesse espaço de luz! As vezes a vela é quase apagada como na alegoria da ilustração do texto, "Fuga para o Egito". Mas extraio daqui muito do que indago e procuro, ou seja, seria o artista ao mesmo tempo partícula (individuo), e também onda (massa e escuridão)? E o genial Leão Tolstoi, havia me dado as primeiras dicas, ao falar sobre o herói, ou melhor, quem seria o herói da história. É que ora o vemos como único e distinto, ora ele desaparece e se perde na multidão, se desfaz na massa popular. Somos de fato observador e agente, ao mesmo tempo, luz e escuridão! Aliás, sem a escuridão não poderia haver luz! Gostei muito!