O maldito sagrado feminino
O primeiro conflito do mundo humano deve ter sido um erro de comunicação. Não é essa a origem de todo o mal que nos afeta? As pessoas têm dificuldade de se comunicar. Com os outros. Mas sobretudo, consigo mesmas.
O texto abaixo é uma reflexão íntima, dividida nas seções:
Vácuo na vulva
Drogas mais pesadas
O maldito sagrado feminino
O que caralhos é sagrado?
O que caralhos é feminino?
Nossa língua é maior que a nossa buceta
Breve aviso leviano: o texto abaixo pode conter erros de digitação e afins.
Vácuo na vulva
Quando enfiei o copinho menstrual pela primeira vez dentro do meu canal vaginal, senti que a borda do copinho tocou uma coisa que fazia resistência lá dentro. Em uma pesquisa no Google, descobri que tratava-se do colo do útero. Até então, para mim o colo do útero era uma coisa meio abstrata, um termo técnico para ouvir aqui e ali em papos ginecológicos, uma coisa que minhas amigas mencionaram quando estavam grávidas. Eu não fazia ideia de que o meu colo do útero era algo tão concreto que eu poderia até mesmo tocá-lo com o dedo. E com certeza ele já tinha sido tocado antes, mas eu nem sabia que ele estava ali para início de conversa. Dar nome às coisas também é fazer com que elas existam. Assim, de repente.
Essa foi a primeira de muitas descobertas. Com o uso do coletor menstrual, comecei a entender um pouco mais da minha anatomia e entrei numa aventura gostosa. Mas também passei a ter cólicas menstruais mais fortes. Quando eu reclamei disso na mesa do bar, uma amiga me perguntou se eu não tinha o hábito de tirar o vácuo do copinho. Vácuo do copinho? Pois é, enfia o dedo lá e toca o copinho menstrual para sair o vácuo. Dito e feito. O vácuo causava dor e eu nem sabia que minha vulva é capaz de fazer sucção (!) quando tem alguma coisa parada lá dentro.
Noutro dia, reclamei que às vezes era difícil acertar a dobradura do copinho, sem contar que enfiar-se um negócio assim, no seco, nem sempre funciona. Explico: para que o copinho de silicone entre no canal vaginal, você precisa dobrá-lo sobre si, tipo um rolinho, e então deixar que ele se abra sozinho lá dentro, ajustando-se às paredes internas do canal vaginal. Assim veio outro grande conselho: usar lubrificante na bordinha do coletor. Lubrificante? Pois é. E funciona muito bem, como era de se esperar.
(Minha dica extra: se for levar lubrificante para ajudar nessa tarefa no banheiro do trabalho, guarde o lubrificante em um pote ou tubo onde não esteja escrito LUBRIFICANTE de modo óbvio; assim você evita possíveis constrangimentos).
Nessa época, 2013, eu morava em São Paulo e o coletor menstrual era uma novidade importada do exterior, quem usava geralmente consumia conteúdo em inglês. Eu não era uma dessas pessoas, mas tinha amigas que eram. No ano seguinte, o assunto caiu de vez na buceta boca do povo e eu comecei a circular pelos grupos de pessoas que usavam o copinho para buscar mais dicas úteis.
Eu logo descobri que ter um pequeno copo de sangue na mão apresenta todo um novo mundo de possibilidades para as pessoas. Tem gente que não suporta olhar para o negócio por muito tempo, joga o conteúdo no vaso rapidão. Mas também tem gente que vira o sangue num vidrinho, mistura com água e usa para aguar as plantas (o termo mais conhecido é “plantar a lua”). E há quem meta o dedo no copo cheio de sangue para fazer arte.
E eu? Bom, de vez em quando fico olhando para aquele sangue parado dentro do coletor. Às vezes é vermelho escuro e espesso, outras vezes é mais fino e parece um daqueles vinhos mais encorpados (hummm, safra de abril de 2022, pareço bem saudável). Não, não tenho nojo, mas não faço nada além de virar tudo no vaso sanitário e puxar a descarga. Vida que sangue.
Drogas mais pesadas
Procurar conteúdo sobre coletor menstrual acabou sendo a porta de entrada para um outro assunto que eu desconhecia: o sagrado feminino. As pessoas mencionavam esse termo como se fosse algo comum, mas eu nunca tinha ouvido falar. E, de início, tive dificuldade de entender do que se tratava.
O problema do maldito sagrado feminino
O tal sagrado feminino não tem uma definição exata, pois depende muito de quem está mencionando o termo. Mas de um modo geral, sua concepção mora no desejo de despertar um orgulho de ser mulher, conectar-se com sua ancestralidade (seja lá o que isso quer dizer) e festejar as mudanças do corpo como se fossem transformações da alma. Aqui, a ideia de ser mulher mora essencialmente no conceito de ser uma pessoa portadora de vulva (o termo tecnicamente correto para nosso popular vagina, já que esta é apenas o canal interno), útero, ter seios, menstruar etc.
Daqui podemos descartar várias mulheres de imediato. A começar por qualquer mulher que por algum motivo não menstrua: por questões hormonais, intervenções médicas, etc, ou por terem nascido sem vulva. Sim, isso inclui mulheres trans.
Para além dessa questão técnica, há um desejo de honrar as mulheres do passado através de práticas e encontros de rodas de sagrado feminino. Eu entendo que, como membro da classe mulher, sou historicamente oprimida pela sociedade patriarcal e há uma linhagem de mulheres que sofreram muito para que eu esteja aqui agora, escrevendo esse texto. Alguns sintomas dessa opressão histórica são: uma medicina que negligencia o corpo de quem tem vulva, uma educação que nos priva de informações úteis sobre nossos corpos e uma sociedade que sistematicamente demoniza os processos naturais desses nossos corpos.
Veja bem, eu entendo o apelo das rodas. Encontrar um espaço que sacraliza o nosso corpo — tão mutilado pela cultura da depilação, da aversão aos cheiros humanos e vítima de todo tipo de opressão estética, nos traumatizando para sempre — pode ser libertador.
Mas será que esse tipo de reflexão é mesmo uma boa saída para proporcionar acolhimento? Não tenho certeza se esse é o caminho que busco para pensar um mundo menos degradante para mim e para você.
O que caralhos é sagrado?
Do latim sacratus, o famoso consagrado. Tudo o que é sagrado passou por um processo de consagração, termo que vem diretamente dos campos da religião, que designa o que está a serviço do divino. Essencialmente, se digo que há um tal feminino e esse feminino é sagrado, estou basicamente santificando o feminino.
Se antes disseram que a menstruação era algo sujo, inverter o paradigma e dizer que menstruação é sagrada parece uma boa ideia. Ok. A ideia de consagrar “o feminino” parece uma afronta ao status quo. Mas é só esse caminho que temos como alternativa à opressão dos nossos corpos? E se eu não quiser ser uma deusa? E se meu corpo não for um templo, mas apenas uma casualidade da vida? E os corpos não-femininos que menstruam? Há espaço para eles nesse sagrado?
Consagrar alguma coisa é elevá-la a uma condição acima da humana. Essa santificação traz o estigma do martírio, um meio nobre de alcançar uma superioridade única e praticamente inatingível para quem não faz parte daquele círculo sagrado. Não é à toa que, por exemplo, o uso de hormônios — pílulas anticoncepcionais e afins — costuma ser demonizado nessas rodas. Talvez eu tenha escolhido um exemplo pouco justo, já que nem toda roda de sagrado feminino vai fazer essa demonização explicitamente. Mas se o objetivo é limpar o corpo da intervenção hormonal externa, como será que uma pessoa que depende desses hormônios, por qualquer razão que seja, vai se sentir no meio de tantos outros corpos que se livraram dessas substâncias? Mesmo quando inclusivo, o princípio do sagrado feminino é santificar, limpar e consagrar. E isso abre espaço para o estabelecimento de hierarquias silenciosas.
Quem é a mais sagrada aqui? De novo, caímos numa lógica muito similar ao mito da competição feminina — que deixa de ser mito quando as pessoas o aceitam, incorporam e permitem que seus aspectos definam suas experiências pessoais.
O que caralhos é feminino?
Qualquer dicionário vai dizer que feminino é tudo relativo à mulher. Ok, mas o que é mulher? Será que é ter seios? Mas e quem não tem nada? É menos mulher? Quem tem peito grande seria então mais feminina por padrão? Parece que não. Então é ter buceta? Acho que já passamos dessa fase, né. Talvez seja… ganhar menos?
Se existe uma definição do que era a mulher antes de ela ser oprimida, desconheço. E se gênero é uma mera construção social, quais símbolos da sociedade definem quem é mulher e quem não é? Existe uma marca final que define todas nós?
Eu, pelo menos, nunca vi, nem comi, só escuto falar. O que me leva a pensar que talvez o que defina o que é feminino seja: a opressão. A opressão às pessoas que carregam certa variedade de símbolos e significados perante a sociedade.
Quando falamos de sagrado feminino, talvez o que a gente esteja fazendo é simplesmente santificar a opressão.
Olha lá mais um dia nascendo no horizonte e a Terra girando.
Nossa língua é maior que nossa buceta
Assim como o colo do útero passou a existir para mim de um modo mais concreto só depois que aprendi seu nome e meti meu dedo lá dentro, outras coisas na vida a gente descobre que existem apenas quando aprendemos seu nome.
Mas a palavra mulher colocou um significado sobre mim desde o dia em que nasci, antes mesmo que eu soubesse falar. Antes que eu soubesse o que significa qualquer palavra, a coleção infinita de símbolos que, juntos, identificam o que os outros entendem como uma mulher recaiu sobre mim. E ainda estou tentando entender o que é isso quer dizer.
Mas o que eu queria saber mesmo é:
O que é uma mulher para você?
Deixe um comentário, eu quero conversar com você e sei que outras pessoas também vão aprender com o que você compartilhar. ✨
Referências e sugestões de leitura
Judith Butler. Gender Trouble.
Paul B. Preciado. Um apartamento em Urano.
Renata Côrrea. Monumento para a mulher desconhecida: ensaios íntimos.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
(site)
(twitter)
(instagram)
Sent from my tamagotchi
Então, Van, eu penso um pouco como você. Eu sinto uma total falta de acolhimento nesse tipo de discussão (seja por não incluir mulheres que tenham malformações dos órgãos genitais, seja por não incluir trans, seja pela demonização do anticoncepcional). Até porque nós não somos vulva. A vulva faz parte da gente e merece carinho mas todo o nosso corpo merece. No fundo eu sempre tive pouca paciência justamente porque muitas coisas ali são desinformação (demonização de contraceptivo hormonal, por exemplo. E aí não se leva em conta o fato de que são os contraceptivos de maior aceitação no sus, o que exclui também mulheres que usam por necessidade ou mesmo por opção). Eu acho muito bonito a gente ter essas percepções sobre o nosso corpo (como vc teve sobre o colo do útero) mas pra mim sempre ficou mais como algo individual e pessoal, justamente porque em rodas de discussão entra muito preconceito e muitas "verdades absolutas". Uma vez eu respondi um post (nem me lembro sobre o que era) no instagram e eu defendi a opção da mulher usar contraceptivo hormonal e citei outras causas bem mais comuns de trombose, como cigarro. Eu nunca fui tão atacada. Mulheres me chamando de desinformada (por acaso sou médica e sei que o cigarro é sim bem mais trombogênico que pílula), fazendo piadinhas e dizendo até que mulher que opta por hormônio é porque não tem informação. Uma amiga quando virou mãe sentiu a necessidade de justificar o parto cesáreo da filha porque ela vive cercada pelas rodas do parto natural. É muita falta de acolhimento quando a OPÇÃO da mulher não é o aspecto mais valorizado por essa cultura, seja pílula, seja cesariana, seja usar absorvente. Esse "mundo do sagrado feminino" é muito cheio disso então eu acabo tendo uma vivência mais pessoal nesse aspecto de valorizar, aprender sobre e amar meu corpo. Adorei seu texto de hoje e um beijo carinhoso.
Uau 😦
Parabéns pelo artigo! Há muito que sinto e penso o mesmo 😧
Exatamente o mesmo!
Obrigada pela partilha!
Sinto que é importante sim existir pessoas disponíveis e espaços onde podemos procurar ajuda para entendermos um pouco melhor sobre a nos próprios!
Pessoas que vibrem a energia do amor e da aceitação, pessoas que possam ajudar outras a ser o reflexo de si mesmas e não cópias umas das outras!
É urgente ajudar sim! Mas sem condicionalismo!
É bom ter um lugar onde procurar amor 🧡
É bom ser exatamente como és e aceitares te e seres aceite 🤍
Este lugar não poderá ser chamado de sagrado feminino… este lugar onde todos cabem uns ao lado dos outros e nenhum se destaca ou se faz parecer melhor ou maior!
As terapias em círculo são lindas e as rodas devem existir sim mas há lugar para todos! E todos podem conhecer se um pouco mais a si mesmo num ambiente seguro de aceitação!