O que é uma boa vida e por que não temos uma?
⏳ Os milionários do submarino Titan, Karl Marx, Hartmut Rosa e o conceito de aceleração social
Oi, gente… Voltei das férias!
Imaginamos os cinco milionários definhando sufocados no fedor do próprio corpo dentro do cubículo de metal por dezenas de horas. Morrendo bem devagar. Até o último átomo de oxigênio sumir pela última narina no submarino Titan. Não é irônico que tenham morrido rapidamente? Que na nossa imaginação a morte lenta e dolorosa tenha parecido mais justa, mais cabível?
O submarino faz as vezes de guilhotina. Mas as mesmas pessoas que — apropriadamente — dizem que milionário bom é milionário morto, também declaram “quando eu ganhar na mega sena, vou viajar o mundo e comprar uma casa para meus pais/amigos etc”. As pessoas odeiam milionários ao mesmo tempo que sonham em ser um, na expectativa de poder mudar as vidas de outras para melhor. Na esperança de proporcionar uma boa vida para si, para quem se ama e para quem precisa de ajuda.
Mas o que é uma boa vida?
O filósofo alemão Hartmut Rosa faz uma pergunta pertinente, que tem tudo a ver com a vida contemporânea, no seu ensaio Alienação e aceleração: Por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Ele pergunta o que é uma boa vida e por que não temos uma. Para mim, esse é o elo duro entre odiar milionários e desejar ser um. Se os homens do Titan entraram no cubículo de metal, foi por opção. Nós, meros mortais da classe trabalhadora, não temos a opção de fazer esse tipo de burrice. Não temos 250 mil dólares para gastar em um passeio de submarino (ou para salvar nossos amigos e familiares da penúria, desemprego etc). A morte dos milionários é a interrupção do que seria uma boa vida. Uma vida com infinitas opções. O gozo que provamos nessas mortes é uma espécie de vingança de classe.
Mas é uma vingança vazia; olhe ao redor, depois das risadas continuamos do mesmo jeito que estávamos antes do submarino virar a diversão do momento.
Isso não é revolução; é entretenimento. E tudo bem.
Tudo bem?
Tem dias em que eu sinto saudades da televisão, pois os programas de entretenimento tinham horário para começar e terminar. Hoje, geralmente está tudo disponível a qualquer hora na palma da mão e isso me provoca um certo tipo de descontrole. Parece que a maior parte do tempo se divide em dois estados: de trabalho e de alienação. Esses dois são o arroz e feijão dos textos de Karl Marx; e me interessa muito as coisas que ele fala sobre alienação, principalmente porque algumas correntes de pensamento posteriores simplesmente abandonam esse conceito. É desafiador falar de alienação em um mundo alienado. Ou mesmo em um mundo onde a alienação virou sinônimo de descanso. Rosa fala bastante de alienação na sua obra, baseado na ideia de que ela pode ser uma negação da boa vida.
“Alienação para Karl Marx pode ser entendida quando os trabalhadores são separados dos produtos do seu trabalho e do processo de produção em si. Em outras palavras, a alienação se dá quando os trabalhadores não têm controle sobre o que produzem e não têm uma conexão real com seu trabalho.”
Do blog Café com Sociologia.
Enquanto Marx nos conta que o capitalismo nos faz alienados do trabalho, Hartmut Rosa atualiza a teoria e se aprofunda nas consequências. Para ele, a alienação provoca uma distorção na relação entre sujeito e mundo.
No trabalho de Rosa, a alienação é um produto do que ele chama de aceleração social.
Na vida prática, pego o exemplo dos milionários esmagados no submarino. Quando descobrimos sobre seu desaparecimento, não tinha como saber se estavam vivos ou mortos. A localização do veículo marinho era uma incógnita. Passamos a acompanhar os sites de notícias sobre o andamento das buscas. Será que vão encontrá-los antes que o oxigênio acabe? Será que estão flutuando ou ficaram lá no fundo do mar, perto do Titanic?
Foram dias peculiares: a timeline falava de uma coisa que estava acontecendo no tempo presente, mas com a imaginação ligada lá na expectativa. É mais ou menos nesse lugar, onde o tempo presente se mescla ao passado e ao futuro, que podemos observar a aceleração social. Ela fica entre a experiência (passado) e a expectativa (futuro) - muito perto de uma emoção que chamamos de ansiedade.
Na palavras do filósofo, a aceleração social é:
“[o] declínio das taxas de confiança em experiências e expectativas, bem como pela contração do hiato de tempo definível como o ’presente’.
Na minha visão, esse declínio da confiança no tempo é uma brecha onde a alienação nos pega de jeito. Se me sinto deprimida com o que me aconteceu nos últimos dias e angustiada com o que pode acontecer nos próximos, a única coisa que resta para o momento de agora é fugir da agonia que é estar viva. É entrar no buraco do TikTok, Instagram ou qualquer outro meio de alienação fácil — pois a ansiedade e a expectativa tornam impossível me fazer presente no aqui e agora.
Acompanhar as buscas por um submarino perdido, cuja tripulação é formada por milionários que tem uma vida exponencialmente melhor do que a minha, é o que tem pra hoje. Saber que essas pessoas encontram-se em uma situação de não ter opções frente a realidade, onde se colocaram voluntariamente, é um tipo de gozo.
De um ponto de vista mais poético, é curioso ver o papel do mar nessa história. Enquanto fonte de calmaria e revolta, maré baixa e maré alta, o mar figura como um símbolo de exploração. Temos assistido muitos filmes do que estão chamando de gênero eat the rich (devorem os ricos), onde muitos tem o mar como elemento importante, quando não principal (exemplo: os filmes Triângulo da Tristeza, O menu e Glass Onion, e a série White Lotus, entre outros). O próprio Titanic figura como um retrato medonho da vida real do que é a diferença de classes e o problema das opções. A elite aristocrática no topo do navio, os trabalhadores na parte de baixo; esses últimos presos nos porões enquanto o navio afunda, sem ter para onde correr, como se a condição social tomasse uma forma sólida na realidade. Por isso o confinamento dos tripulantes do Titan é emblemática em muitos níveis.
Mas não é curioso que sua morte não altere muito o mundo à nossa volta? Alguns sites de notícias publicaram os nomes das pessoas que herdaram as fortunas deixadas pelos milionários falecidos. As fortunas continuam concentradas nas famílias. Nada mudou.
Uma vida de realizações
Todo mundo vai morrer um dia. Antes da modernidade, quando a religião era uma pauta muito maior do que agora, esse medo da morte era manifestado nas crenças de uma vida após a morte. A religião ditava as regras do que deveríamos fazer para alcançar a vida eterna, a morte ideal. Hoje, essa eternidade está mais ligada a ideia de vida; quanto mais experiências tivermos, mais eterna se parece nossa vida. Mais interessante nós aparecemos para os outros (as redes sociais estão aí para confirmar a teoria). O medo da morte se traduz na vontade de fazer um milhão de coisas. O resultado direto disso é a sensação de que não temos tempo para nada, pois aceleramos tudo o que podemos a fim de viver cada vez mais e em menos tempo. Sobre isso, Rosa é certeiro:
[Assim] a boa vida é uma vida realizada, ou seja, uma vida rica em experiências e em capacidades desenvolvidas [...] Não há mais aqui a suposição de uma “vida mais elevada” nos esperando depois da morte, mas sim a busca por realizar tantas opções quanto possível dentro das vastas possibilidades que o mundo tem para oferecer. [...] acelerar o “ritmo da vida” é nossa resposta para o problema da finitude e da morte.
O que é uma boa vida? Nessa perspectiva, encontramos uma possível resposta para a pergunta. Uma boa vida é uma vida realizada, ou seja, uma vida rica em experiências. Quem têm hoje as vidas mais riquíssimas nessa lógica? Exatamente as pessoas que podem se dar ao luxo de morrer tentando alcançar os destroços de um navio a 4km de profundidade no fundo do oceano.
Enquanto isso, na superfície do mar, um bote inflável, com centenas de imigrantes refugiados das guerras civis da Líbia e outros países do continente africano, afundava e matava 80 pessoas (da contagem de corpos encontrados até agora). É fácil fazer autocrítica coletiva desse contraste entre a infraestrutura de resgate e a mobilização da mídia nos dois casos. É uma crítica fácil e barata, mas necessária e importante. O que nos escapa talvez seja um certo tipo de consciência: de que estamos mais próximos dos tripulantes do bote, que fugiam em busca de uma vida com mais opções de sobrevivência, do que dos milionários que desfrutaram de uma boa vida.
Quando me debrucei nas anotações sobre os textos de Rosa, as notícias do submarino e do bote tomando conta das timelines, eu me fiz outra pergunta.
Como ter uma boa vida e como fazer para que todas as pessoas desfrutem de uma?
👩💼Expediente
3000
Enquanto me dei três semanas de férias, essa newsletter chegou aos 3000 leitores. Em dezembro de 2021 eu comemorava 300 assinantes e fiz um post de agradecimento; o que mudou de lá para cá? Em termos de gratidão a todo mundo que está caminhando comigo pelas palavras, nada. Então digo mais uma vez: obrigada. Obrigada por escolher ser uma pessoa que se permite ser tragada por textos longos, sobre assuntos difíceis. Na aceleração do dia a dia, parece que ainda há espaço para a pausa. Uma pausa nada passiva, claro. Uma pausa cheia de atenção.
Nessas breves férias eu tive a oportunidade de viajar um pouquinho e visitar amigos, tive a chance de olhar a paisagem sem pensar em nada, apenas sentir que vivia o tempo presente.
Nessa viagem, teve um dia em que subi a Duna de Pilat, a maior duna de areia da Europa. No meio do passeio, meu namorado-companheiro, um sindicalista, escalava as centenas de degraus da escada que leva ao topo da duna enquanto participava de uma reunião com outros sindicalistas pelo telefone. Eu e um outro amigo estávamos levemente chateados e preocupados com o fato de que meu companheiro não estava aproveitando o passeio, pois enquanto o corpo dele estava ali com a gente, a mente estava em outro lugar, com outras pessoas. Ele estava de férias, mas não estava desfrutando de nenhum tipo de descanso naquele momento. Foi quando eu lembrei que a gente pode até tirar férias do trabalho, mas não podemos nos dar ao luxo de tirar férias da luta de classes. E por isso voltei aos estudos sobre aceleração social, ainda durante as férias.
Chegar aos 3000 leitores tem um gostinho especial, mas também tem um sabor amargo. Na semana que vem, quero me debruçar sobre o problema da competição nos dias de hoje. Já falei um pouco sobre isso no texto Redes sociais são museus, sobre como os números de seguidores, visualizações, comentários e likes dão um tom de valorização monetária para nossa vida. Quero aprofundar esse tema.
Espero continuar com a tua companhia por mais quintas-feiras, enquanto esse relacionamento estiver bom para mim e para ti.
No mais, em agosto (aniversário de 2 anos escrevendo aqui!) devo trazer umas novidades bacanas para quem acompanha essa coluna informal.
Obrigada por estar comigo.
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Mais motivos para celebrar
Por 5 votos a 2, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou, nesta sexta-feira (30), o ex-presidente Jair Bolsonaro à inelegibilidade pelo período de oito anos. Com o entendimento, o ex-presidente fica impedido de disputar as eleições até 2030.
Fonte: EBC, Agência Brasil. 30 de junho de 2023.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
eu tô sem palavras pra essa analise, foi tão boa e me fez ver as coisas por uma perspectiva muito interessante que é essa de aceleração social. principalmente porque me encontro num dilema de abandonar a possibilidade de fazer uma faculdade que gosto e não ter emprego direito ou estudar pra concurso e ter uma renda estável: um bom exemplo sobre seu incrível texto de hoje sobre o que nos faz ter uma vida boa.
e parabéns pelos 3000 leitores!! você merece ser lida e fico feliz de ser alguém que te lê! abraços 💜
Oi, Vanessa, prazer. Estou no curso da Ana Rusche,e sou nova no substack :) Sou a subscriber 3001? 😃 Adorei, vou ler as anteriores.