Na internet tudo é glória ou vergonha alheia. Quando a gente posta, é para mostrar o troféu simbólico. O destino instagramável, a festa, a nossa beleza… Pics or it didn’t happen.
Nessa metrópole de bytes, construímos galerias de arte da nossa vida em cada rede social. Nosso legado online se torna, então, um museu de pixels onde todos somos curadores e obras de arte.
De nós mesmos.
Curadoria de si mesmo
Fiquei intrigada com a repercussão da tradução de um texto sobre não deixar a audiência tomar conta da nossa vida. O assunto caiu na boca do povo que acompanha a ascensão e queda de influencers e mais: entrou na pauta do dia de muita gente aqui no mundinho das newsletters. Em um resumo geral, o texto argumenta que o público é tóxico, pois os influencers (e candidatos a tal) tendem a mudar de acordo com o que dá mais audiência nas redes.
“Agora somos forçados a refinar nossas personalidades pelos incontáveis olhos de estranhos. E isso começou a afetar o processo pelo qual desenvolvemos nossas identidades. […] Quando chega nesse ponto, a persona eclipsou a pessoa e o público sequestrou o influenciador.”
- trecho do texto Os perigos de ser sequestrado pela sua audiência.
Esse texto deixa de fora a relação do capitalismo com esse suposto sequestro. Mesmo que a maioria das pessoas não esteja medindo seu sucesso diretamente com o quanto de dinheiro ganha-se com a internet, a lógica da quantificação permanece.
O número de likes em um post é uma espécie de gratificação monetária, mesmo que não possa ser convertida em dinheiro diretamente. Assim, a moeda do like é a validação.
Em uma sociedade onde está cada vez mais difícil sustentar uma vida minimamente digna, onde a precarização do trabalho foi totalmente normalizada, os likes podem ser uma gratificação que compensa essa falta de dinheiro, carinho, suporte, cuidado ou perspectiva.
De onde nascem os likes
Em 2012, na minha carreira em programação, compareci a um evento da W3C no Rio de Janeiro. A W3C é um consórcio mundial: um grupão de pessoas que senta junto para definir como a internet é construída ano após ano. Várias empresas grandes compram cadeiras nesse grande conselho (entre eles tem Google, Mozilla, etc) e sentam junto com acadêmicos para definir como os nossos computadores e celulares vão se comunicar. Entre as pessoas que tive a chance de conhecer no evento, estava Tim Berners-Lee, nada mais nada menos que o cara que criou a web.
Em 1990, com uma proposta que deu a luz em 3 meses, ele inventou o que hoje compreendemos como internet. Depois disso, a W3C foi criada. Para botar ordem nas coisas.
“O hipertexto é um jeito de conectar e acessar informações de vários tipos como uma rede de nós onde o usuário pode navegar segundo sua própria vontade.”
- trecho do abstract da proposta de Tim Berners-Lee propondo a criação da web em 1990. (tradução minha). WorldWideWeb: Proposal for a HyperText Project.
Isso significa que a web, em sua essência, permite que a gente navegue por ela livremente. Mas não é isso que acontece hoje, onde transitamos em espaços que direcionam toda nossa experiência de navegação segundo o que o algoritmo quer que a gente veja.
Na época em que fui ao evento da W3C no Rio, muita gente que participava dessa convenção há décadas me contou que foi também ali, no meio dos projetos apresentados, que primeiro criaram o conceito de likes - ou melhor dizendo, de “click counter”, botões contadores de clique.
Tentei encontrar o tal documento esses tempos e não tive sucesso, mas ainda estou procurando porque quero escrever sobre essa história com detalhes. Reza a lenda que o conceito de clicar em um link que contabiliza cliques foi criado por uma pessoa que apresentou o conceito em uma edição do evento na década de 1990. Mas foi só com a criação do Facebook que a teoria ganhou vida em um projeto real de larga escala. Ou seja, o evento da W3C é importante porque ali nascem as ideias que vão tomar conta das nossas vidas no futuro.
A W3C hoje é financiada por todas as big techs que você pode imaginar.
Nosso relacionamento com números é tóxico.
Obras de arte são objetos de valor. Galerias e museus concentram acervos que custam dinheiro. Muito dinheiro. O valor que cada obra vale representa o quão importante ela é. Quando eu proponho a ideia de que as redes sociais são galerias de arte, vejo nossos posts como obras expostas nessas galerias; o valor de cada post é definido pelo número de likes (ou reações) que provoca. É uma capitalização do valor humano.
O like é uma moeda. Essa moeda compra validação pessoal e pública.
Assim, os números impõem uma ordem de importância ao conteúdo, por isso a fome por likes (e comentários positivos) é algo muito palpável. Quanto mais likes, mais relevância sua galeria de arte pessoal tem. Aqui precisamos lembrar também que a matéria-prima dessas obras de arte somos nós mesmos. Nessa lógica, a nossa vida ganha um tom de monetização — ainda que não seja dinheiro de verdade (embora essa fama possa se tornar dinheiro real depois).
Os posts que geram mais likes vão definindo os próximos. Por isso a reação das outras pessoas ao nosso conteúdo se torna tóxica, mas não são as pessoas exatamente que geram isso. Não é exatamente “o público” que gera esse estresse, é a lógica de monetização emocional onde a sociedade se estrutura hoje.
Nossa forma na internet
A web foi criada para permitir nosso livre trânsito de um link ao outro, mas o like abalou essa estrutura. Se as primeiras páginas pessoais da internet eram um bloco de texto estático com uma pequena biografia, onde tínhamos o controle do conteúdo e mais liberdade para definir a forma, hoje temos milhares de maneiras de nos apresentar usando as redes sociais. Tudo ficou mais fácil. Mas todas essas maneiras estão limitadas ao formato das plataformas. Não tem como quebrar a parede do quadrado, do limite de caracteres. O conteúdo é apresentado em grades. Grades! Todo o design das redes onde perambulamos usa o princípio das grids e não temos como escapar. Estamos presos entre grades de pixels.
As galerias de arte que exibem nossa vida também são prisões.
Prisões onde os carcereiros transformam-se em algoritmos que, observando nosso comportamento, nos dão um biscoito ou nos deixam perecer no limbo do esquecimento na cela virtual.
A internet é ficção
No fundo, a internet é ficção, como disse a Aline Valek.
Quando eu uso o termo “curadoria de si mesmo” quero chamar atenção para o fato de que, apesar de estarmos presos a essa lógica de likes, ainda sim temos controle do que postamos ou não. Não estamos vivendo dentro do Big Brother Brasil. Ainda podemos controlar o que vai para as redes.
Assim, na escolha consciente do que se posta, podemos fazer coro com a Aline e concordar que a internet é ficção. A persona online ainda está sob nosso controle — o pulo do gato é entender o que estamos esperando disso tudo. Ou qual estrutura de poder está nos obrigando a estar presente nessas celas de pixels travestidas de galerias de arte.
O que você acha?
Em um próximo texto, quero abordar esse tema a partir do nosso ponto de vista como visitantes dessas galerias de arte egocêntricas.
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Para quem leu o texto Síndrome de invejinha, vale escutar esse episódio do Não Pod Tocar, que aprofunda o assunto e discorre sobre como a inveja afeta nossa vida.
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Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Ps: o texto de domingo veio com uma semana de antecedência porque no próximo eu vou estar apresentando (online) a literatura latino-americana de ficção científica na 80º edição da Convenção Mundial de Ficção Científica, a Chicon. Então estarei mais focada em fazer bonito representando o Brasil por lá - junto com a Ana, a Iana e o Thiago - e não vou conseguir vir fazer bonito para vocês aqui.
Mas o texto de quinta-feira vem normalmente. Preparem-se que vem projeto de textos novos por aqui e eu vou contar com a participação de vocês.
Amei demais essa edição. Acho que rende uma boa conversa a relação entre arte e capitalismo, nesse tema de redes como galerias ou museus, trazendo a arte também como possibilidade de contestação ao sistema.
Mas sem dúvida o capitalismo é a grande chave para pensar o mundo hoje, e seu texto mostra isso maravilhosamente. Um sistema que vem assumindo uma versão das mais emocionalmente impactantes, levando as pessoas a se autoproduzir como conteúdo de forma voluntária para alimentar as redes.
Estou citando da minha cabeça, mas teve um lance no uso do ícone do coração, não teve? Antes era usado o símbolo do joinha. Posso tar errada tb.
Aguardo as próximas!⭐️