O sumiço da fada sensata
Vulnerabilidade, exposição e a sensação de que precisamos ter opinião para tudo
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A opinião das mulheres na internet é a nova minissaia. Se ela tem uma e usa, ela está pedindo para ser assediada. Essa afirmação é uma tradução livre do que ouvi da escritora feminista britânica Laurie Penny falando no último sábado em uma conversa sobre gênero e poder, na Feira do Livro de Gotemburgo. Mas a palavra mulher poderia ser substituída por qualquer minoria social. Pessoas historicamente hostilizadas são observadas com mais rigor moral e ético do que outras, mais privilegiadas. Sinto que esperamos uma moral intacta e perfeita, de acordo com a nossa própria, das pessoas que admiramos. Poucos anos atrás, a expressão “fada sensata” era usada com frequência para definir uma pessoa que expressou uma opinião impecável sobre a polêmica do dia. Como se a sensatez fosse motivo para elogiar alguém. Ao invés de inspirar conversas, a fada sensata costumava selar o debate com seu bom senso. Aos demais, restava replicar as palavras da fada, usando-a para informar uma posição pessoal sobre o assunto.
Vivemos em um contexto digital que parece exigir que tenhamos opinião sobre tudo. Uso aqui a palavra parece porque é uma sensação coletiva de vigilância. Como se houvesse uma conspiração exigindo nosso parecer sobre qualquer coisa que pinta na tela. Ao mesmo tempo, essa exposição é validada e avaliada por aqueles que nos seguem. Eis aí a sensação de vigilância. É um dilema contemporâneo. Antes, o único jeito de acompanhar o que as pessoas famosas pensavam era através de jornais, revistas, rádio e televisão. Hoje elas estão nos mesmos lugares onde nós, meros mortais, estamos compartilhando sobre nossas vidas mundanas. Nas redes sociais, nossas declarações tomam um aspecto de igualdade de formato com “personalidades”, criando uma sensação de que habitamos os mesmos espaços — ou que temos a mesma relevância. É uma ilusão, mas nosso cérebro sobrecarregado não percebe. O vídeo de uma amiga de infância comentando sobre autismo aparece na minha frente na mesma tela, formato e linguagem que uma pesquisadora de autismo do departamento de psicologia de uma universidade. Na mesma rede social, uma atriz famosa opina sobre o que ela acha do tema. Eu uso o exemplo do autismo porque há poucos dias uma amiga, que está no espectro autista, comentou sobre a chuva de desinformação e dicas que muitas pessoas (autistas, cuidadoras e familiares de autistas) tem compartilhado sobre o assunto. E como é difícil fazer uma crítica direta, mesmo no modo privado, pois são pessoas que já estão em um estado de grande vulnerabilidade emocional e pública. Ao mesmo tempo, o depoimento de uma pessoa leiga em um assunto não é necessariamente ruim, principalmente se a pessoa parte do lugar de apenas dividir uma experiência - e não uma verdade universal.
Porém, o celular nos dá a capacidade de subir em um palco com uma facilidade assustadora. E parece que ter alguma experiência ou o contato com qualquer situação é razão suficiente para termos alguma coisa para falar a respeito. Ou para virarmos professores. Mas não é exatamente culpa das pessoas. Repito: é uma crise de formato.
No fundo, não existe pressão nenhuma para exposição. (Talvez exista para as pessoas cuja profissão seja influencer, já que o trabalho deles consiste em aparecer, aparecer e aparecer, não importa o custo.) Mas o formato das redes sociais constrói a sensação de necessidade de atenção. E para ter atenção, é necessário aparecer.
Quem se expõe está vulnerável. À opinião alheia, ao pensamento dos outros. São coisas incontroláveis. Tenho várias amigas inteligentíssimas que tem vontade de escrever na internet, mas tem medo de retaliação, caso falem alguma besteira. São pessoas estudadas e especialistas nos assuntos que tem vontade de escrever, mas exatamente por saberem da dimensão e da complexidade das coisas, preferem não falar. Eu entendo. É complicado mesmo.
A crise de formato vai de encontro àquele velho termo, constantemente usado em lugares de disputa intelectual, o famoso “lugar de fala”. Enquanto qualquer pessoa tem um lugar de fala em relação a qualquer assunto, a maioria delas entende o termo como uma limitação (ou mesmo uma proibição). Mas ele apenas descreve o lugar de onde parte o discurso. Mas a crise de formato nas redes sociais coloca em xeque qualquer chance de compreensão do lugar de fala. A homogenização do formato também limita o conteúdo e o discurso.
“Você sabia que as redes estão sofrendo uma crise de formato? Meu nome é Vanessa Guedes, sou escritora da newsletter Segredos em Órbita, e eu vou contar para você qual é o maior problema das redes sociais nos dias de hoje.” Fala sério. Por que todo mundo está abrindo os vídeos exatamente nesse formato “chamar atenção + apresentar-se + continuar o conteúdo”? Eu arrisco responder: é acessível, funciona, informa bem, chama a atenção e eu aposto que 90% dos cursos de marketing para redes sociais está ensinando as pessoas a fazerem assim. Eu gostaria de acreditar que eu estou só cansada e empapuçada com tanta coisa igual, mas há também um problema de homogenização do discurso que atrapalha a credibilidade do conteúdo. Se todo mundo tivesse um posicionamento crítico a respeito disso, talvez não fosse exatamente um problema. Mas o hábito de olhar para tela do celular para descansar (ou fugir da realidade) cria um hábito passivo. Para uma cabeça cansada, não há distinção entre uma pessoa especialista em um tema e um qualquer dando opinião em um vídeo. Estão todos falando do mesmo jeito, produzindo um vídeo com o mesmo nível de profissionalismo e dentro do mesmo formato retangular na vertical. O lugar de fala perde-se. Mas ganhamos o “lugar de autoridade”. Mesmo que a intenção da pessoa na tela não seja colocar-se como uma autoridade, o formato com que ela se apresenta faz com que seja vista como tal.
Por outro lado, os problemas que a exposição online traz consigo faz com que pessoas especialmente vulneráveis, mas cujo discurso tem um potencial precioso, evitem se comunicar. É uma faca de dois gumes mesmo. O medo de não ser uma fada sensata é real. O medo de falar besteira é real. Eu ainda prefiro acreditar que o medo não seja exatamente do cancelamento público, mas uma sensação de responsabilidade.
A fada sensata sumiu de uns tempos para cá. Onde será que ela foi? Será que ainda vive? Será que ela voltou para o reino encantado das fadas para nunca mais voltar à realidade?
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Esta newsletter continua aberta e sendo publicada toda quinta-feira. Mas a última semana do mês agora é dedicada ao Expedições Criativas, editorial exclusivo para apoiadores. Se você curte os textos daqui, considere apoiar o projeto. De quebra, você leva um editorial especial discutindo assuntos relacionados a criatividade do dia a dia. Na semana passada, publiquei um texto discutindo Como ter ideias? :)
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Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Cada vez menos tenho vontade de compartilhar qq coisa em rede social. E olhe q eu nunca fui de expor opiniões justamente pq não quero sofrer cobranças.
“ Para uma cabeça cansada, não há distinção entre uma pessoa especialista em um tema e um qualquer dando opinião em um vídeo”- muito bom esse trecho. E qdo isso de junta ao fato das pessoas, em geral, preferirem um conteúdo raso, ai que fica mais homogênea ainda
A Fada Sensata deu lugar ao Alecrim Dourado. Antes o povo admirava a sensatez, agora aponta quem usa dessa "sensatez" como o intocável certinho. Cansada das redes, e dos termos delas.