O truque mais incrível da escrita é colocar abaixo o conceito de tempo linear. Por exemplo, ao ler os versos da poeta Safo, somos jogados para dentro dos pensamentos de uma jovem apaixonada na ilha de Lesbos em 600 a.C. que rezava para Afrodite. O mesmo acontece ao deitar os olhos nos textos do jovem Hemingway flanando por Paris na década de 1920 e todas suas conversas e reflexões com Gertrude Stein, como um registro meio cru do pensamento entreguerras da época. Se a gente pegar um exemplo mais simples, como as newsletters que recebo no e-mail toda semana, as coisas continuam impressionantes. Coisas escritas por pessoas em outros continentes abrem seus universos para mim com apenas um clique.
Textos são e sempre serão viagens no tempo. E no espaço.
Há uns dias atrás, enquanto conversava com um físico, eu fui lembrada de que a existência do tempo está intimamente ligada à existência do espaço. O tempo como conhecemos no nosso dia a dia é uma ilusão coletiva, apesar de extremamente funcional. Nós não conseguimos perceber “a verdade sobre o tempo” porque a vida como a conhecemos opera em uma velocidade muito devagar.
“O propósito da mecânica [clássica] é descrever como os corpos mudam de lugar no espaço ao longo do tempo. [...] Mas não há tal coisa como uma trajetória única, apenas uma trajetória de um corpo em relação a outro corpo usado como referência”
- trecho retirado de A teoria da relatividade especial e geral, de Albert Einstein, 1920. (tradução minha)
A relatividade propõe que o tempo não é constante, podendo mudar tanto quanto as outras variáveis das fórmulas que aprendemos na escola — ou seja, o tempo é relativo. Claro que falar de tempo nos termos da teoria da relatividade não é fácil, mas sempre encontro no ato da escrita e da leitura uma analogia confortável para esse complicado conceito da física.
Acho que podemos encontrar muita teoria da relatividade na escrita - e na vida.
Uma cabeça presa
Vou dar um exemplo com uma história real. Na última terça-feira, eu voltei para casa de metrô. Na saída da estação, enquanto eu caminhava em direção a catraca – duas portas de vidro que abrem-se quando você passa o bilhete e então fecham-se em poucos segundos – vi uma mulher e uma criança, aparentando uns 3 ou 4 anos de idade, vindo na direção contrária. A mulher cruzou a catraca para dentro da estação; a filha a seguiu. Quando a criança passou, as portas de vidro se fecharam contra ela. O corpinho conseguiu se desvencilhar da pressão, mas a cabeça ficou presa. A mãe gritou. A criança berrou. Assisti os olhinhos azuis arregalarem-se de medo e dor com a pressão, virando um par de bolas de gude. Não sei como fui parar na catraca tão rápido, poderia jurar que fiz um teletransporte. Quando dei por mim, eu e a mãe da criança estávamos cada uma agarrada a uma porta, puxando o vidro para os lados, forçando uma abertura. A estação estava bem movimentada, mas todo mundo congelou assistindo a cena. Eu não consegui me manifestar verbalmente, parece que concentrei toda a energia possível na tentativa de abrir a catraca na força. Os gritos da criança me deram a nítida sensação de que a pressão estava esmagando seu crânio e tudo o que eu conseguia pensar era em tirá-la dali. Pensei em filmes gore (ou splatter) e cenas absurdas de sangue espirrando para todos os lados preencheram o horizonte da minha imaginação naquele momento, cenas geradas pelo medo do futuro imediato. Eu detesto o gênero gore exatamente porque banaliza (dessensibiliza?) a dor dos outros. Ao mesmo tempo que conseguia odiar um gênero cinematográfico, uma outra camada de consciência incomodava-se com o silêncio dos outros, a falta de reação do pessoal na estação. Eu já tive essa sensação intensa de abandono algumas vezes aqui na Suécia, as pessoas demoram muito para reagir a qualquer coisa que fuja do normal cotidiano. É como se a população fosse imune à sensação de urgência. Outra voz soou na minha cabeça fazendo uma super análise que levava em conta a necessidade dos suecos de avaliarem uma situação por um longo tempo antes de decidirem o jeito mais efetivo de reagir. Demorou uma eternidade até que outras pessoas se juntassem em coro aos gritos chorosos da mãe desesperada Öppna! Öppna! Então um cara se juntou a nós na função de força bruta na catraca. Ele tentou empurrar as portas para fora com as duas mãos. Usava luvas de academia, os dedões estourando ao fazer força. De repente, a porta abriu. A criança foi lançada para frente e a mãe a pegou no colo. Reunidas, não pararam de chorar e gritar. Eu respirei aliviada e retornei para vida banal, feliz porque algum funcionário do metrô ouviu o apelo das vozes que gritaram por socorro, reagiu e abriu a catraca lá da sala de controle para liberar a cabeça da criança.
Relatividade
Toda essa cena deve ter durado menos de um minuto se assistida pelo circuito de câmeras do metrô. Mas para mim pareceu uma pequena eternidade. Para a mãe da criança, deve ter durado uma vida. Tudo é uma questão de referência. Provavelmente as pessoas na estação também tiveram a percepção do tempo afetada enquanto assistiam o movimento.
Assim como a teoria geral da relatividade de Einstein demonstra que o tempo pode passar diferente dependendo do nosso movimento, seres humanos podem viver histórias distintas mesmo quando envolvidos na mesma situação.
Por isso é importante escrever sobre o tempo presente em que vivemos. Cada um de nós terá sempre uma percepção única das coisas.
Às vezes as pessoas comentam comigo que gostariam de escrever, mas lhes falta motivação. Longe de mim comparar qualquer um com Einstein, mas ao reler sobre relatividade descobri que toda a teoria nasceu de uma série de ensaios e anotações dispersos através dos anos. Coisas que Einstein pensava desde menino. Eram ideias e divagações sobre si mesmo e o funcionamento do mundo; rascunhos que deram fundamento para o que depois ele desenvolveria de um jeito formal no departamento de física teórica1. O que me leva a crer que toda ideia revolucionária um dia deve ter sido só uma ideia besta em um pedaço de papel.
Se Einstein fosse um jovem contemporâneo de hoje, talvez ele tivesse uma newsletter.
Contra o texto apressado
Sinto que vivemos uma ilusão de que o mundo exige pressa de absolutamente tudo. As opiniões, as respostas. Acho tão cansativo. Sigo me recusando a ter respostas rápidas para o que não preciso reagir rápido. Guardo a urgência para situações urgentes.
Uma coisa que eu vinha sentindo há uns anos era certa carência de conexão com outras pessoas. Algo diferente da amizade regular, do dia a dia. Era uma certa necessidade de ler textos de pessoas vivas, para ser mais precisa. Pessoas que não fossem apenas as escolhidas por instituições – como grandes editoras, por exemplo – para serem porta-vozes. Mas gente como eu, como você, que tem disposição de olhar de perto para as coisas que nos afligem. E para as coisas que nos despertam interesse.
Então, chegaram as newsletters.
Vejo as newsletters como um movimento de resistência contra o conteúdo condensado que as redes sociais nos empurram goela abaixo. Como costumo dizer aqui, eu me recuso a tratar de assuntos complexos através de frases de impacto que cabem em 3 quadrados de texto. E ver que não estou sozinha nisso me anima.
Escrever textos mais longos é quase como uma rebeldia; em um mundo acelerado, a gente permanece olhando para as coisas com atenção. Estamos de corpo e mente fincados no aqui e agora. Estamos coletivamente elaborando o nosso mundo, o nosso tempo. Olhamos para o passado pensando no presente. E discutimos o presente nos responsabilizando pelo futuro. ⌛
“O ser humano é apenas uma parte desse todo que chamamos de Universo, uma parte limitada em tempo e espaço. Ele experimenta a si mesmo, seus pensamentos e sentimentos como se fossem separados do resto – um tipo de ilusão de ótica da consciência. O esforço para libertar-se dessa ilusão é uma questão de verdadeira fé. Não alimentar a ilusão, mas tentar superá-la é o caminho para alcançar uma medida possível de paz de espírito.”
– trecho da carta que Einstein escreveu em 1950 para Robert S. Marcus, na época diretor do Congresso Judaico Mundial, que tinha acabado de perder um filho. Fonte (tradução minha)
✨Celebrar o texto: um evento online para quem faz newsletters ✨
Eu venho pensando tudo isso há meses. Em julho, mandei e-mail para algumas pessoas que escrevem newsletters com a seguinte ideia: e se a gente se reunisse para falar disso tudo durante um final de semana?
Hoje, quase 3 meses depois, apresento o evento O texto & o tempo. Um encontro para quem lê e para quem escreve newsletters. Com palestras, bate-papos e muita discussão boa, nos dias 5 e 6 de novembro vamos para o Zoom para falar disso tudo.
Tem muita gente bacana envolvida: Gaía Passarelli, Aline Valek, Ariela K., Eric Novello… A lista só cresce. Olha lá na programação do evento.
O texto & o tempo
Um evento para reunir pessoas autoras e leitoras de newsletter que estejam dispostas a discutir nossa relação com a produção e consumo de conteúdo em texto. Vamos conversar sobre o que está acontecendo e quais as diferenças desse formato de publicação em relação aos outros outros.
Quando: 5 e 6 de novembro
Onde: pelo Zoom
Quanto: 48 reais
(com vagas sociais; veja as informações no site)
Conto com vocês por lá!
Por hoje é só.
Beijos, abraços e todo o tempo do mundo.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Silva de Lima, Melina. Einstein e a Teoria da Relatividade Especial: uma abordagem histórica e introdutória. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física, v.24 n. 2. 2013. UFRGS.
ISSN 1807-2763
vai ser muito legal :)
Adoro suas conexões. São inteligentes e próximas do leitor, coisa rara. Animadíssima para esse evento. <3