Por que as pessoas querem escrever? 🔎🤔
Respondendo leitores #1, uma coluna mensal nova
Na semana passada eu abri um formulário de perguntas para quem lê esta newsletter. Minha intenção é escolher uma ou duas perguntas de vez em quando e respondê-las em uma edição especial Respondendo leitores.
Se você tem algo a perguntar, um conselho a pedir, é só mandar por lá.
Respondendo leitores #1
Hoje, vou responder uma das dez perguntas que chegaram da semana passada para cá, quando falei de quietude. Engraçado que mais da metade das perguntas foram sobre meditação e… poesia! Penso em fazer uma edição para cada tema, respondendo as dúvidas. Mas fiquem a vontade para perguntar sobre qualquer coisa.
A pergunta escolhida para hoje é sobre escrever ou não escrever, eis a questão. Como eu recebo perguntas similares há meses por e-mail, de pessoas diferentes, escolhi esse assunto super debatido (e batido) para começar o editorial de perguntas-respostas.
Pergunta
Pergunta aleatória sobre crise existencial. Rs. Por alguma razão que não entendo (talvez por ter o hábito da leitura), enfiei na cabeça que gostaria de me expressar escrevendo, já fiz várias oficinas de escrita, acontece que escrever é justamente algo que não faço (a não ser pra resumos e nem nisso sou boa, saio quase copiando tudo). Vários escritores dizem que escrevem porque não conseguem não escrever e toda vez que tento eu só sinto que não tenho nada a dizer (ou talvez seja preguiça). Seria o caso de desencanar e só ser feliz lendo as pessoas escritoras que muitas vezes falam tão bem por mim, melhor que eu mesma? Ou deveria investigar mais o porquê dessa fixação com a ideia da escrita, mais do que com a escrita propriamente dita? Será que eu só quero criar algo pra sentir que existo nesse mundo cibernético em que parece que só somos algo se criamos conteúdo e na falta de outras habilidades artísticas/criativas elegi a escrita só porque sou alfabetizada? Acho que não era esse tipo de pergunta que você estava esperando, mas já que escrevi, vou mandar. Rsrs.
A pergunta acima foi enviada de forma anônima e os grifos em negrito são meus.
Resposta
Querida pessoa,
Quase todo mundo que escreve já se fez essas perguntas. George Orwell tem um ensaio famoso só sobre isso, o Por que escrevo. Na semana retrasada eu dei uma oficina online de escrita (o Tales participou e escreveu um texto ótimo sobre o assunto) e o primeiro tópico abordado foi justamente de onde vem o desejo de escrever. Se olharmos para a escrita de um ângulo histórico, pelo o que conseguimos remontar do passado, nos primórdios ela servia para guardar informações, fazer marcações geográficas etc, ou seja, tinha uma função utilitária. Hoje a escrita continua sendo utilitária, mas também serve para uma infinidade de outras coisas. Uma delas é conectar a nossa subjetividade e a nossa individualidade com o mundo exterior. A literatura, como área do conhecimento e da arte, serve muito bem a esse propósito de ponte. Ler é entrar em contato com outra realidade. Escrever é dar o primeiro passo para que esse contato aconteça. Quem escreve também busca uma forma de registro — escrever é um jeito de guardar memória e elaborar o passado e o presente. Isso serve tanto para a ficção como para a não-ficção.
Dito isso, eu tenho consciência de que a palavra Escritor, assim com E maiúsculo, virou uma espécie de desejo, geralmente atrelado a ideia de que escrever é uma forma de ter prestígio. Esses dias eu assisti uma live de uma pessoa (relativamente famosa) que escreve e uma frase na fala dela me pegou muito. Era algo mais ou menos assim “use a escrita como forma de apresentar-se como uma autoridade em um assunto”. De certa forma, essa pessoa está certa. Talvez eu nunca tenha parado para pensar nisso de um jeito tão simples, mas essa afirmação vai de encontro com uma das maiores crises que o mundo enfrenta hoje: a disseminação de informação em larga escala e nossa dificuldade de navegar um mundo com informações demais, fake news demais. Quando algo é publicado em certo formato, há um acordo invisível entre texto e leitor, algo nos diz que aquela informação está documentada — em um post de instagram, um artigo de blog ou um livro, tanto faz — e, portanto, tem autoridade suficiente para estabelecer uma verdade. Existem milhares de artigos em inglês na internet, por exemplo, sobre como se posicionar como uma marca ou um profissional de respeito e muitos deles dão a dica de “publique um ebook sobre sua área de conhecimento”. Acho que ter um livro publicado dá aquela ideia de credibilidade que muita gente quer para parecer uma pessoa relevante. É uma forma de construir o que eu chamo de auto-importância.
Essa tal de auto-importância fica entre a necessidade de se entender como uma pessoa — com voz, opinião e emoções próprias, ou seja, com subjetividade e individualidade —, em contraste com o resto da sociedade, o desejo de ser ouvida (ou, melhor dizendo, ser lida) e o reconhecimento de si mesma como artista. Mas a relevância do que temos a dizer não importa muito, quem vai decidir se o texto é relevante é a massa de leitores. O problema é que o caminho para chegar até uma massa de leitores não é tão democrático quanto a gente fantasia.
Talvez a dificuldade em encontrar leitores seja uma das raízes da insegurança sobre porque alguém quer tanto escrever, mas trava. Ou talvez seja a dúvida sobre auto-importância, sobre sentir que há uma necessidade de algo muito importante para ser dito que vai valer as palavras rascunhadas numa tela em branco. Para mim, a maior graça da escrita é que enquanto estou escrevendo ninguém mais está lendo. Eu escrevo para mim antes de escrever para os outros. Se hoje eu escrevo essas cartas para vocês aqui nessa newsletter, é porque fiquei quase vinte anos escrevendo essas coisas para mim nos meus diários até sentir que queria compartilha-las com o resto do mundo. Mas acho que antes de decidir se há algo importante a ser compartilhado, também tem o lance de que a literatura não é só uma fonte de conexão e utilidades. Ela também é arte, ou seja, nem todo texto precisa ser uma “lacração”.
Um dos participantes da minha oficina de escrita lembrou-me de que a literatura tem valor estético também. Penso, agora, em uma das minhas autoras favoritas, Clarice Lispector. Gosto de reler Água Viva de tempos em tempos, um livro onde nada acontece. Meu prazer é no ritmo, na exploração dela sobre o tédio, o vazio, a falta de propósito na existência. Não posso dizer que aprendi alguma coisa lendo Água Viva, mas encontro um grande prazer na sua leitura.
Um problema muito discutido entre o meio editorial é a percepção de que há mais gente querendo ser publicada do que gente querendo ler. Ou seja, parece que há mais escritores do que leitores. Eu tenho uma visão um pouco diferente, talvez meio paradoxal. Tenho a sensação de que entre as pessoas que querem publicar existe pouca gente querendo ler. É bem diferente de afirmar que existem mais escritores do que leitores. Eu acredito, sim, que existem poucos leitores ávidos entre os aspirantes a escritores. Vou dar uma exemplo. Esse dias, em uma aula de escrita de ficção, uma colega minha apresentou seu projeto de narrativa, um space opera com protagonistas mulheres. Quando o professor perguntou o que ela, como autora, tinha de especial ou porque ela deveria escrever essa história, a moça disse que não existiam autoras na ficção científica. Tampouco protagonistas femininas. Ela afirmou que a literatura de ficção científica era exclusivamente masculina, citando Iassac Asimov, Philip K. Dick e outros autores americanos de produção expressiva entre as décadas 1930-80. Eu fui obrigada a intervir para dar a notícia, para a colega e a turma toda, de que o prêmio Nebula — o mais importante prêmio da literatura de ficção científica no mundo — nomeou 8 mulheres com o prêmio principal de 2012 para cá. Sem contar que, dos escritores clássicos do gênero mais lidos na atualidade, temos Ursula LeGuin, Octavia Butler e Margaret Atwood (as duas primeiras são falecidas, mas publicaram muito entre as décadas de 1970-2000). Eu entendo que tradicionalmente a ficção científica tem essa imagem forte de cientificismo super masculino, mas isso é um retrato muito específico de um período e uma geografia. Poderia dizer que, em 2023, isso não passa de um cliché. Se você lê ficção científica hoje e não está lendo nenhuma mulher, você é um leitora desatualizada. Mas até aí tudo bem. Não é um crime ler só determinados autores. Mas como uma escritora que se propõe a levantar um debate contemporâneo sobre gênero, inovação e novas formas de ver o mundo, é mais do que necessário olhar para seus pares — as pessoas que publicam hoje no gênero que você quer escrever.
Eu acho que muita gente tem vontade de escrever e publicar, mas não se atenta ao que está sendo publicado agora. Você precisa prestar atenção nos escritores contemporâneos — seus colegas!! —, nos prêmios do ramo, no catálogo das editoras na ativa etc. Isso serve também para quem quer se aventurar em blog e newsletter, é necessário ler muito para entender até onde podemos chegar com a nossa escrita.
No mais, gosto dessa parte da mensagem: Seria o caso de desencanar e só ser feliz lendo as pessoas escritoras que muitas vezes falam tão bem por mim, melhor que eu mesma?
Via de regra, eu acredito que cada um de nós tem algo de relevante para contar. Ou uma história incrível para criar. Mas nem todo mundo precisa fazer isso. Eu não tenho como responder essa sua pergunta, querida leitora, porque a única pessoa que pode decidir por você é você mesma. Mas eu posso contar como eu responderia essa pergunta se ela tivesse sido feita para mim.
Eu gosto de escrever os textos que eu gostaria de ler, mas não existem. Ou de contar as coisas pelo modo como eu enxergo o mundo. Uma situação ótima para exemplificar: há muito tempo eu acompanho conteúdos sobre não-monogamia pela internet e pelos livros. Mas sempre senti falta de textos que não fossem focados em criticar a monogamia. Eu entendo o motivo das pessoas escreverem desse modo, mas essa falta me provocou uma inquietação. Isso me fez ter vontade de escrever sobre o assunto. Assim, eu me dei a chance de produzir um texto que eu adoraria ler. Escolhi falar das sensações, das emoções e do conforto que eu encontro em uma vida não-monogâmica, coisas que me atravessam mais do que posicionar meu estilo de vida como uma lição de moral ou um contraponto radical na sociedade. A escrita me deu liberdade para falar de um assunto batido, super na moda nas redes sociais, mas de acordo com os meus termos.
Outra parte que gostei da pergunta é “saio quase copiando tudo”. Copiar é um jeito ótimo de aprender. Se você é boa de copiar, copia bastante. Esse é meu conselho. Claro que não dá para copiar algo na íntegra e assinar seu nome, isso seria plágio (à consultar: a história de Pierre Menard em um conto de Jorge Luís Borges). Mas autores fazem referências a obras anteriores o tempo todo. Em 1851, Herman Miéville publicou Moby Dick com a famosa frase de abertura: “Chamem-me simplesmente Ismael.” Em 1988, Luís Fernando Veríssimo começou O Jardim do Diabo com “Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida.” Na minha oficina de escrita, eu ensinei o pessoal uma técnica de escrita não-criativa que consiste em usar um texto de ficção como base para escrever um post de blog. Não é uma referência, nem um plágio, mas uma forma de destravar a mão para começar a escrever sobre o que nos importa.
Não sei se respondi aos questionamentos como você gostaria, mas espero ter ajudado na reflexão.
Um conselho breve para qualquer pessoa
Escreva. Não se paga imposto para isso.
Mas escreva como se ninguém estivesse lendo.
O resto você decide depois. ;)
Lembrando que você também pode fazer parte da coluna Respondendo leitores.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Vanessa, continuo desfrutando demais teus escritos. Amei tua resposta à pergunta da leitora. Me identifiquei nas duas pontas. Obrigada por tua escrita tão cheia de vida sempre.
Revirei os olhos daqui no sofá com a moça da space opera, rs. É duro, mas precisamos ler sempre. Obrigada pela edição ☺️