Prometo que essa newsletter não vai virar monotemática sobre escrita. Eu só tenho minhas fases. Vocês sabem.
Semana passada eu falei sobre a sedução da narrativa pessoal e um pouquinho sobre autoteoria. Hoje quero dar continuidade sobre a escrita como tema, mas expandindo a discussão para pensar um pouco na busca pela criatividade como uma crise.
Eu passei os anos de 2019 e 2020 lendo o máximo possível sobre escrita criativa. Foram dezenas de livros. Durante esse período, eu comentava sobre as leituras com outras pessoas escritoras e muita gente sugeriu que eu escrevesse sobre isso em algum lugar. Na época eu não tinha essa newsletter e publicar no meu blog não era uma ideia atraente: o texto de blog só circula se for compartilhado por alguém com muitos seguidores em alguma rede social. Eu nunca tive muito seguidor em lugar algum e tinha vergonha de pedir para os amigos influencers divulgarem meus textos. Não vou problematizar a minha pequenez em pensar que um texto só valeria a pena ser publicado se houvesse a garantia de ser lido (hoje eu penso diferente), mas uma hora eu volto nessa questão. Acabei guardando para mim mesma as reflexões desse período de leitura intensa de livros sobre a famigerada escrita criativa.
Pelo menos, no ano seguinte, eu criei a Segredos em Órbita.
O conflito da escrita criativa
A escrita criativa diz respeito à escrita literária, tanto faz se ficção ou não-ficção. Não entra nesse grupo: texto jornalístico (embora existam peças jornalísticas bem criativas que, na minha humilde opinião, são sim peças de escrita criativa), manuais de uso, textos enciclopédicos etc. Conceitualmente, a existência de uma escrita criativa supõe também a existência de uma escrita não-criativa. Tipo bula de remédio, letreiro de ônibus, essas coisas. O oferecimento de cursos de escrita criativa é um fenômeno dos últimos anos, eles proliferam como colônias de fungos, por todos os lugares. Eu já fui aluna em alguns muitos, claro. O meu professor de escrita criativa na Folksuniversitet, aqui em Estocolmo, escreveu um livro sobre como dar aulas de escrita criativa para adolescentes. No prefácio desse livro ele diz que a escrita criativa é a melhor forma de gratificação que podemos alcançar com a nossa língua. Em defesa da escrita criativa, meu professor lembra que as sociedades existem porque nós conseguimos cooperar e nos comunicar para viver em grupo, e com isso, viver mais anos. Eu acompanho o raciocínio e penso na escrita como a forma mais simples e mais sofisticada de colocar o nosso mundo interno em contato com o externo. A escrita criativa seria um meio de explicar ideias e emoções de uma forma mais engenhosa, para que outros me acompanhem em minhas conclusões e perguntas.
Na maioria dos cursos de escrita criativa o objetivo é ser original. Talvez essa seja a crise. Aliás, a crise está em quase todas as áreas de conhecimento: a maioria de nós precisa ser inovador ou original de alguma maneira. Criatividade é a palavra de ordem para se destacar no meio de tudo, mas.. o que essa tal de originalidade criativa quer dizer?
No meio da literatura é uma incógnita. Literatura é arte, portanto, subjetiva. O que me intriga é essa busca específica pela criatividade.
Se a gente pensar só um pouquinho mais além, praticamente tudo o que a gente quer dizer já foi dito antes por alguém. Mas é fácil fazer um contraponto e responder isso com “mas ninguém leu isso nas suas palavras ou na sua perspectiva”. Exatamente. Mas isso também significa colocar o indivíduo numa situação de comparação, de tentar avaliar a própria experiência ou discurso em comparação com outras pessoas, outros textos. A pessoa vai tentar qualificar a própria escrita para buscar o que existe ali de único. E é claro que alguém que começou a escrever ontem vai encontrar muito mais lugares-comuns na sua escrita do que jóias raras. Quando a gente apela para o discurso do “precisa ser único e original”, estamos botando as pessoas numa posição de procurar um pedestal para onde subir.
Depois de todos esses anos lendo e participando de grupos de escrita criativa, eu digo com tranquilidade que: a busca pelo pedestal não é o melhor caminho.
Calma. Vamos colocar de outra forma isso:
A escrita criativa é um paradoxo, porque toda forma de escrita pode ser criativa; mas o que as pessoas procuram com o tema “escrita criativa” são só jeitos novos de escrever textos que parecem mais originais.
Mas o que é ser original?
Escrita não-criativa
No livro Uncreative Writing (“Escrita não criativa”, ainda sem tradução para o português), o poeta Kenneth Goldsmith lembra de como o surgimento da fotografia provocou uma comoção geral no mundo da pintura (muita gente achou que a pintura iria acabar ali, sem mais serventia alguma). No século 19, enquanto a fotografia ganhava o mundo pelo excesso de nitidez, a galera da arte clássica estava criando o impressionismo e toda sua (aparente) falta de nitidez. Num futuro nem tão distante, a colagem de fotografias virou um tipo de arte. E, de várias formas, artes plásticas e fotografia seguem vivas e alimentando-se uma da outra até hoje. Goldsmith, então, se pergunta qual seria o correspondente dessa ruptura para o mundo da literatura.
Ele diz que, na escrita, algo similar ao atrito “fotografia x pintura” poderia ter acontecido com a invenção da internet, nas infinitas possibilidades do texto digital. Mas não é exatamente o que aconteceu, pois insistimos em legitimar velhas formas de publicação como literatura verdadeira. Como se o o ambiente digital não produzisse literatura. Ou, pelo menos, não uma que valha a pena ser levada a sério, por conta da facilidade que é escrever e publicar na internet — em oposição ao processo de publicar um livro físico, por exemplo.
Mas na prática, tanto o digital quanto o físico não são garantias de nada. A gente sabe. Porém, a efemeridade do digital traz um ambiente propício para práticas pouco criativas. E isso é bom.
Nos inúmeros cursos de escrita criativa, há uma busca incessante pela ideia de ser absolutamente original e único, um desejo baseado na escassez, como se ser criativo fosse um talento. O conceito de escrita não-criativa vem deste desconforto e do fato de que o mundo é exuberante em palavras, principalmente na internet.
Goldsmith ensina escrita não-criativa em uma universidade americana e conta um pouco sobre como os alunos ficam assustados com alguns projetos que ele propõe. Um deles consiste em pedir que o estudante procure algum artigo científico na sua área de estudos e simplesmente apague o nome do autor, colocando o seu próprio no lugar. O trabalho final consiste em uma apresentação, onde o estudante precisa explicar e defender o dito artigo para a sala inteira. Goldsmith então observa o quanto esse processo ajuda os jovens a terem ideias próprias. Para argumentar defendendo qualquer tipo de conhecimento, é necessário recorrer ao nosso repertório pessoal de referências e leituras — é desse exercício que nascem ideias realmente originais. Quando passamos a fazer conexões.
Tem uma passagem no livro da Amanda Palmer, A arte de pedir, em que ela descreve o artista como uma pessoa que liga os pontos. Gosto dessa analogia, porque a escrita mais emocionante e elucidativa tem esse efeito: fazer uma conexão. Para mim, o artista é quem enxerga e escuta pelas frestas, quem investiga uma inquietação como um detetive canastrão investiga com afinco o assassinato da bela mocinha, quem exerga através das camadas como um super-herói enxergaria através das paredes e quem sente o cheiro daquilo que é invisível para a maioria das pessoas, como um cão farejador. A pessoa que escreve também é uma artista.
Acredito que a única maneira de aprender uma escrita que ligue os pontos é apostar no banal, na repetição, no simples. Copiar, repetir, replicar. Uma coisa meio Karatê Kid, quando o mestre Miyagi diz para o Daniel pintar a cerca por um verão inteiro e só depois ensina o menino a lutar de fato. O mundo digital nos dá a chance de pintar as cercas da escrita o quanto a gente quiser.
Por uma escrita menos criativa
Talvez nos falte treinar o banal. Ser medíocre é bom sim.
Aviso de gatilho: se você escreve newsletter e sente que está “devendo” um texto novo, o trecho a seguir pode gerar estresse.
Vejo uma galera nova começando a escrever newsletter com a proposta de postar um texto por semana, ou um texto a cada quinze dias, sei lá. Então rola um auto-martírio, porque chega o dia de postar e nada saiu. Eu suspeito que, à parte um problema de falta de tempo, a hesitação na escrita vem do medo de falhar. Do texto não ser bom o suficiente ou de simplesmente não ser lido. Não ter público. Nesse aspecto eu acho a autoflagelação intelectual fácil de resolver: você quer escrever um texto incrível por semana, ou você quer só escrever um texto por semana? Se o desejo é a primeira alternativa, eu tenho más notícias. É impossível escrever um texto excelente, questionador ou cabeçudo por semana. Sem contar que, sendo arte, nem toda escrita vai agradar todo mundo. São muitas variáveis. Mas se o desejo é a segunda alternativa, só escrever um texto, então escreva repetindo mesmo. Invente suas conexões. Alugue ideias comuns e escreva-as com as suas palavras. Uma escrita menos criativa pode ser o caminho para adquirir prática em uma coisa que você vai estar para sempre aprendendo. Pensar é prática também.
(Vocês tem que ver a minha cara agora escrevendo um texto dando dicas de escrita e pensando: mas quem sou eu na fila no pão mesmo? Bom, pelo menos o texto da semana tá entregue.)😅
Satélite de recomendações
✨ Especial inspirações e dicas tudo a ver com a edição de hoje ✨
um texto refrescante para se inspirar, do Matheus:
O autorretrato como aproximação da magia e concretização da potência.um livro bem prático para quem quer escrever melhor, da Ana e do George:
Manual de sobrevivência da escritaum texto legal sobre livros, do Cristhiano:
O Livroum desabafo de escritora, da Aline:
Sucesso feito sob medidatexto sobre gatekeeping do Thiago:
Gatekeeping, Jano e parkour literário
Um pouco de jabá: Incêndio na Escrivaninha ❤️🔥
Eu divido um podcast com a Ana Rusche e o Thiago A. Lage há uns anos. O último episódio no ar fala sobre Ansiedade, numa conversa bem peculiar com a doutora em psicanálise Thayz Athayde (sigam ela no instagram!). Falamos um pouco de escrita e as ansiedades que ela traz. Dá para ouvir em todos os tocadores de podcast.
No mais, da série de coisas bacanas que essa newsletter me trouxe está: agora eu sou uma escritora agenciada! Ou seja, estou no time de escritores de uma agência literária, a Magh.
Eu já contei disso aqui em dezembro, mas o anúncio oficial rolou ontem, no Twitter. E eu estou super feliz. Agora posso botar na bio “fale com a minha agente”. Desculpa a pendância aqui, mas é muito legal ter o trabalho reconhecido depois de anos aí escrevendo sem parar.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Fiquei sem fôlego aqui! Amei sua reflexão. ❤️
E além do excelente texto, parabéns pelo agenciamento!