A narrativa pessoal é uma droga forte para quem escreve e para quem lê. Mas não é sobre a vida de qualquer pessoa que queremos saber. Será? A ganhadora do último Nobel de literatura, Annie Ernaux, escreve sobre a própria vida, eu escrevo sobre minha vida aqui, a colega ao lado tem um blog sobre coisas banais e as redes sociais estão cheias de gente comentando coisas do dia a dia. Suspeito de que isso nos traz uma pista do que vão falar sobre nós quando analisarem o zeitgeist do início do século 21.
Estudando sobre autoteoria e o que eu chamo de literatura brasileira de internet, eu acabei acompanhando cerca de 200 newsletters em português nos últimos 2 anos (a maioria se encaixa na classificação como crônica, ensaio e autobiografia, os grandes subgêneros da famosa não-ficção). Me interessa saber porque tanta gente está escrevendo sobre si mesma publicamente e o que existe de interessante na vida comum de pessoas comuns.
Via de regra, pela vida inteira eu escrevi ficção, mesmo que tenha mantido blogs pessoais entre 2007 e 2015. Nunca considerei esses blogs como parte da minha produção literária. Mas essa newsletter, da qual falo do meu mundo privado, me parece mais literária do que minhas peças de ficção agora. Qual a diferença entre o presente e o passado? Nesse questionamento pessoal, parto em busca de outros que repetem o mesmo pecado: de falar sobre minha vida. Quando eu mesma sou uma grande ninguém.
Por que é tão interessante falar sobre si?
Aqui perto de casa — eu moro no subúrbio da parte sul de Estocolmo, na Suécia — existe uma runsten, uma pedra com runas que foram escritas em algum momento entre o ano 800 e 1000. Sempre que passo em frente a essa pedra me surpreendo com o fato de que um ser humano, assim como eu, escreveu aquilo há mais de um milênio e eu sou capaz de ver suas palavras aqui, agora.
O que essa pessoa escolheu contar sobre si ou o mundo em que viveu? Que informação essa pedra contém? Bem, ali está escrito, em runsvenska (sueco runico): Þori ok Svæinn letu ræisa stæin at Viniut, broður senn, sun Hælgu. Em bom português: Tore e Sven levantaram esta pedra para Vinut, seu irmão, filho de Helga. Não sei quem são essas pessoas, mas elas passaram por aqui. Talvez isso foi tudo o que deu para escrever com material que dispunham, a língua que falavam e o mais importante: o papel que a escrita tinha naquela época. É curioso como a assinatura de quem escreve vem na própria mensagem. Vanessa escreve essa newsletter para muitas pessoas, algumas conhecidas, outras completas desconhecidas, todas filhas de alguém.
Uma coisa é escrever um diário pessoal para si mesma, para lembrar das coisas no futuro ou só para desabafar sobre o que se passa na vida. Outra coisa é transbordar os pensamentos, emoções e elaborações para um lugar exposto, como um documento pessoal deixado a céu aberto para qualquer um passar e ler. Há uma certa romantização em fazer o nosso “eu” virar um eco interessante, como se essa exposição trouxesse um sentido de protagonismo para nossa vida tão comum. E há também o desejo de contar a nossa parte da história. Isso sim tem tudo a ver com autoteoria e as coisas que eu observei lendo centenas de newsletters de não-ficção com o cunho de narrativa pessoal.
O termo autoteoria, pela definição da pesquisadora Laurie Fournier, descreve o texto que mistura autobiografia com filosofia. É uma definição muito aberta, eu sei. Mas ela escreve, no ensaio Autoteoria como prática feminista, sobre a importância da diversidade de vozes que precisam buscar na observação da própria vida um sentindo maior para a existência. Se o protagonismo da filosofia é eurocentrado e masculino, como usaremos essa régua para criar uma filosofia que queira quebrar com esse pensamento conservador e colonial? É necessário usar nossas experiências pessoais para encontrar sentido, fazer conexões e construir um novo jeito de olhar o mundo.
Escrever sobre si mesma é um exercício poderoso de fincar o pé no chão do mundo e dizer, não apenas para si, mas para todos que puderem ler: eu existo.
Escrevo, logo, existo. Está documentado, está aqui na frente dos olhos de todos.
É a nossa pedra rúnica.
Contar a própria história
O escritor espanhol Paul B. Preciado costuma pontuar em seus ensaios que somos todos sujeitos de um discurso que não foi construído por nós. Uma sociedade que é baseada em valores cristãos e coloniais, onde o alicerce que segura essa estrutura é uma massa de corpos de gente que foi silenciada através da história.
Com isso em mente, convido você a ler o parágrafo que abre o ensaio O riso da medusa, da filósofa francesa-argelina Hélềne Cixous, escrito nos anos 70. Leia o trecho tentando substituir a palavra mulher ou feminina por palavras que descrevam qualquer outra minoria oprimida.
“Eu falarei da escrita feminina: do que ela fará. É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto — como no mundo e na história —, por seu próprio movimento.”
- trecho de O riso da medusa
Essa previsão de Cixous é tudo que estamos fazendo hoje. Quando ela evoca a escrita feminina e o que ela fará, ela não só aponta um tipo de escrita. Ela chama as mulheres à escrita.
É uma convocação, camarada. Vamos lá.
A experiência de escrever na internet tem me trazido todo tipo de pergunta sobre escrita, de todo tipo de gente, mas a mais recorrente vem exatamente das mulheres. A insegurança. O questionamento sobre se há algo de relevante para falar.
Se a pedra rúnica atravessou um milênio para me informar a coisa mais irrelevante do mundo — que Tove, Sven, Vinut e Helga viveram aqui no meu bairro quando essa cidade nem existia — e ainda sim todos os dias eu passo pelas runas e sua existência me causa admiração, por que a vida de qualquer outra pessoa não seria interessante também?
Que levantemos nossas pedras pelas nossas irmãs, mães, colegas, amigas, camaradas, mas acima de tudo, que levantemos pedras para nós mesmas.
Satélite de recomendações
o livro Monumento para mulher desconhecida, da Renata Correa.
o TedTalk A arte de pedir, da Amanda Palmer (com legendas em português)
o projeto de ficção Frestas, da Iana Txt.
No mais, obrigada a todo mundo que manifestou interesse na oficina de escrita que estou pensando em fazer. Quem ainda não botou o email lá, é só acessar esse formulário aqui:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Oi Vanessa , adorei a edição de hoje. E levaria o assunto um pouco adiante ainda: a escrita da mulher nos ajuda a sabermos quem somos fora do paradigma masculino, assim como nos permite investigar como nós contamos histórias, fora daquele arco heróico que descreve basicamente o homem caçador.
Nas minhas experiências na ficção, especialmente nos roteiros, cansei de ouvir o que não posso fazer, pois não se enquadra naquele modelo. Quando nós, mulheres, contamos um caso entre nós, como o fazemos?
Raramente encontro respostas que me digam algo que faça sentido internamente. Já li livros sobre o arco da heroína mas não me vejo representada ali. Então penso que a auto-escrita pode me ajudar a re-acessar aquela contadora de histórias original. Aquela que não escreveu as runas nas pedras, mas que passou adiante suas experiências de alguma maneira.
Algumas pessoas pediram para ver a foto da pedra, então postei aqui no Notes:
https://substack.com/profile/4960294-vanessa-guedes/note/c-15304411