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Na corda bamba dos dias, cidades são engolidas por um rio que enche-se de repente, nos resignamos a comentar o absurdo, depois calados lamentamos e partimos para o próximo post, o próximo meme, a notícia surge de novo, prédios antigos queimam como se a fúria muda das pessoas tocasse fogo nas coisas, incendiária. Não sinto tristeza, mas uma imensa frustração. Aqui na Suécia, me aproximo das pedras e das árvores, juntas encaramos a água gelada de um lago profundo e turvo, enquanto lá nas margens do Rio Taquari, lá do outro lado do mundo, a água vem violentando, mudando a paisagem, alterando toda forma de vida ao redor. Mergulho um pé na água e depois outro, experimento a temperatura. Consigo ver peixes se aproximando com curiosidade. Meus pés fantasmagoricamente brancos, como, na minha imaginação, seriam os pés da Ofélia indo rio abaixo pelos olhos daquele pintor britânico com nome pouco artístico. John Everet Millais. Os peixes parecem fascinados pelos meus pés. Deixo chegarem perto para ver se vão tentar me tirar um pedaço. Não fazem. Só se aproximam, como que hipnotizados. Eu escorrego o resto do corpo para dentro d’água e mergulho no escuro, para dentro do buraco onde não é possível ver mais nada. Nem peixe, nem pedras. Nem gente.
Há dias escuto os áudios de um amigo brasileiro que mora na França, anotando pensamentos que me surgem enquanto escuto sua voz naquele sotaque paulistano das margens, esse amigo que vem da região dos lagos, interlagos. Quando aperto o play para gravar minha voz em uma resposta, sou interrompida pelos gatos, pelo telefone, pela vida. Mas não há agonia, não há pressa. Me resigno a deixar para mais tarde, para amanhã, está tudo bem. Nos últimos meses já fui selvagemente diagnosticada com todas as neurodivergências da internet e me afasto da lógica da resposta rápida, da identificação fácil. Me falta uma capacidade cognitiva maior para acompanhar a tripa de vídeos em sequência nas redes sociais, é tudo tão rápido e tão denso, a cada 2 minutos uma nova realidade, uma nova verdade. Os olhos e o coração se sobrecarregam. Quando me sinto perturbada demais, mergulho no lago.
Há uma guerra acontecendo aqui do lado. Na maior parte do tempo eu me esqueço, mas as notícias chegam, o preço das coisas aumenta e de vez em quando um caça passa voando sobre mim, em direção ao leste. O planeta não se expandiu e nem se encolheu, mas o mundo ficou simultaneamente maior e menor. Tragédias no Brasil, na Líbia, nos Estados Unidos e no Vietnam. Essa guerra na Ucrânia. No noticiário sueco local, a onda de violência, a extrema direita queimando textos sagrados em frente a mesquitas, o corpo de um garoto encontrado em um lugar onde gosto de fazer trilha. Poderia ter sido eu. A encontrar o corpo, a ser o corpo. Para morrer, basta estar vivo. Poderia ser eu lá na enchente do Taquari. Poderia ser eu em vários lugares e paisagens, mas eu estou aqui. Recebendo essas notícias.
Comprei o material necessário para pintar os cabelos de novo, organizei um acampamento com os amigos, assei um bolo e pela primeira vez acertei uma daquelas coberturas chiques de bolo de festa, tudo vegano. É difícil fazer as coisas ficarem realmente cremosas com leite vegetal, mas me acertei com uma mistura de gordura de coco e leite de aveia. Enquanto bato a massa cheia de açucar na vasilha, a amiga ucraniana manda notícias de Kyev.
Aprendi a meditar mesmo durante a pandemia. Mas estava tentando aqui e ali desde 2014. Tive vários mentores e testei muitas técnicas de lá para cá. No início era difícil pensar em meditar por meia hora todos os dias por um ano inteiro, mas hoje não me apavoro com a ideia de meditar uma hora por dia por décadas. Parece tangível. Já meditei parada, andando, boiando, nadando, sentada, em pé, deitada, em pose de yoga, com som, sem som, com foco, sem foco. No início há uma dificuldade em se definir o que é meditar, mas a prática da meditação afasta a necessidade de uma definição concreta. A meditação é um instrumento da vida e da morte. Quando eu estava fazendo o Caminho de Santiago, eu via muitos lagartos coloridos pelo chão, pelo trajeto do caminho todo. Nunca conseguia fotografa-los, eram rápidos demais. Eu queria mostrar para as pessoas aqueles lagartos, mas teria que me contentar com uma imagem da internet. Em um dos últimos dias, enquanto eu testava uma técnica de meditação de visualização, escolhi a imagem do fogo para focar a mente. Ao longo de horas fui andando sozinha pela floresta escura de árvores, na mente uma fogueira acesa, quando meu foco se dispersou e eu vi. Um lagarto andava comigo pelo caminho. Quando eu diminuia o passo, ele parava e me esperava. Não sei há quanto tempo ele sincronizava comigo. Sentei no chão, em frente a pedra onde o bicho estava parado, no lugar onde o sol tinha espaço para brilhar. E ao invés de focar a mente em uma fogueira ardendo lá dentro dos neurônios, foquei no lagarto.
Eu costumo dizer para quem me pergunta sobre meditação que ela não ajuda em nada. Mas talvez isso seja uma mentira. Ou a revelação de uma fraqueza; de que é impossível descrever a meditação com a precisão que as pessoas esperam. Dá para ensinar uma técnica meditativa — e existem milhares — e contar com o bom senso e a curiosidade alheia, mas não sei se o problema todo com a meditação é simplesmente sua inutilidade.
Eu entrei de cabeça na meditação quando a terapeuta comportamental, que me acompanhava na época do burnout, sugeriu que eu respirasse profundamente ao invés de fumar cigarros. Na época, eu trabalhava em um prédio altíssimo, de frente para um rio. Eu costumava sair várias vezes do prédio e andar até a água para fumar cigarros. A sugestão dela parecia boba, mas no estado mental em que eu estava, eu queria que alguém me mandasse fazer coisas, estava farta de ter que pensar e tomar decisões o dia inteiro. Então, comecei a deixar a carteira de cigarros para trás quando descia para fumar. Assim, eu fumava o nada. O ar. Não lembro se foi fácil ou se foi difícil. Mas lembro do cheiro da água e do rosto intrigado dos outros fumantes. Dali em diante, me perguntava se o que eu fazia não era meditação, de certa forma. Foi assim que comecei a procurar meditações e testar novas técnicas.
Gosto de sentar na grama e colocar a mão no chão. Sentir que essa terra tocando meus dedos toca outros grãos de terra, rochas, lavas, numa corrente de conexão com tudo. Muitas vezes, para chegar nesse estado de comunhão com a vida, é necessário estar sob influência. Outra vezes, uma prática de respiração longa e ritmada leva para estados muito mais elevados de hiper-consciência.
Não dá para se enganar e pensar que a pessoa média, com o acesso irrestrito a tudo o que está acontecendo no mundo, não tenha essa consciência também. Estamos surtados juntos. Quando busco quietude no ar, na água, na terra e no fogo, não é uma forma de me distanciar do mundo. Mas de senti-lo com mais intensidade.
🙋Pergunta que eu respondo
Gente querida que me lê, tenho uma proposta. Nas próximas semanas quero fazer uma edição respondendo perguntas. Qualquer coisa sobre imigração, literatura, tecnologia, a vida e tudo o mais. Pode ser um pedido de conselho. Pode mandar texto e perguntar o que eu acho. O que vocês quiserem. Vou deixar um formulário aberto aqui. Eu pretendo responder uma ou mais perguntas em uma edição especial aberta para todo mundo. Mande de forma anônima ou não.
🛰️ Satélite de recomendações
. o Nathan da Punk Yoga falou sobre Broca no crânio (ou como quebrar o tempo)
. a Taize divagou sobre o universo das newsletters e o que estamos fazendo aqui
. e a Aline Valek falou umas verdades sobre imigração em Eu não sou daqui.
🗺️ Expedições Criativas
A primeira newsletter do editorial Expedições Criativas chegou na caixa de entrada dos apoiadores na última semana de agosto, quando falei sobre motivação. Na próxima edição, vou falar sobre “a busca pelas ideias”. Para acessar esse novo editorial mensal, basta tornar-se um apoiador aqui no Substack.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Vanessa, me senti meditando ao ler o seu texto. À medida que avançasse, minha mente acalmava, minha respiração mudava. Em tempos de estresse mas alturas, foi um bálsamo.
Minha psicóloga gostaria que eu meditasse. Eu tentei a sério por uma semana. Depois me apoiei na meditação contemplativa das minhas caminhadas. Mas é só ter uma quebra na rotina que me atrapalho inteira. Então entendo porque eu preciso meditar. Realinhar, reorganizar o foco. Algo assim. Adorei o texto!