Suas definições de pessoa adulta foram atualizadas
Respondendo leitores #4 e acabando com a ideia romantizada de liberdade, trabalho e vocação
Hoje eu respondo a mais uma pergunta de leitores. Essa foi complicated, como diria Avril Lavigne.
Para participar dessa coluna, basta me mandar uma questão:
Hoje eu li seu texto sobre Claude Monet e chorei, c’est pas problème, c’est normal? Eu já estava um pouco sensível com a chuva que me acordou, com a incerteza do futuro, com o medo de estar me tornando adulta ou ser adulta?
Olá, querida leitora :) Dividi sua mensagem em partes e vou respondendo ela parcelada, tal qual um obsoleto carnê das Casas Bahia. Vamos lá.
É normal sentir medo de se tornar adulta? Com certeza.
Mas nós andamos perdidas nas definições sobre o que é ser uma pessoa adulta, de fato. Eu suspeito que sejam as fases anteriores da vida que definem isso, muito mais do que a fase adulta em si. Quando nos perguntamos “sou adulta?” é implícito que o oposto disso é ser criança ou adolescente. Infância e adolescência são fases de crescimento, ou seja, suspeito que quando nos fazemos a pergunta, no fundo estamos nos questionando “eu já cresci o suficiente?” como se ser adulto fosse sinônimo de parar de crescer. Como se ser adulto fosse sinônimo de estar pronto.
É óbvio que isso é um mito, mas a imagem da pessoa adulta nas mídias e na sociedade é de estabilidade, solidez e controle, conceitos ligados a uma ideia de obra pronta, como se a pessoa tivesse chegado a uma espécie de ápice da vida, algo meio imutável, sei lá. Desnecessário dizer que é uma falácia.
Há também o fato de que infância e adolescência estão ligadas às ideias de experimentar, arriscar sem consequências etc. Ser adulto é arcar com as consequências, por isso não me surpreende que as pessoas estejam temendo esse momento. A criança também é a representação da promessa e do potencial. Distanciar-se da “persona criança” para se tornar adulto é como dar cabo a um desses potenciais ao mesmo tempo que você acaba com o resto. Fazer escolhas implica em abandonar outras opções, pois não se pode realizar todos os potenciais. A brincadeira acabou, agora as coisas são de verdade.
Talvez o medo de ser tornar adulta seja medo de construir um lar de tijolo e cimento quando a gente gostaria de estar apenas construindo castelos de areia na praia — muito mais romântico e livre de consequências. A areia da praia e o tempo são abundantes. O castelo não precisa de uma fundação apropriada, pois quando ele cair, é fácil erguer outro castelo de mentira, com outro design, outro projeto arquitetônico. Construir e destruir uma casa de tijolos é muito mais complicado.
Mas não é impossível.
porque novamente não sei o que fazer na vida. Quer dizer, eu acho que eu sei, eu amo dar aulas de línguas, aprender línguas, amo a ciência e educação, a neurociência, mas parece que amo muito muitas coisas e no final não sei como elas podem ser "úteis" para a sociedade.
Você sabe o que “fazer da vida”, você só não descobriu como pagar as contas de casa sozinha. Eu me dou o direito de escolher as palavras “pagar as contas de casa sozinha” ao invés de “pagar as contas de casa com o que você ama fazer” porque uma coisa não precisa estar diretamente relacionada a outra. Simples assim. A gente vive num contexto de sociedade pós-moderna em que o sonho de todos é ser bem pago por aquilo que mais se ama fazer, sua vocação. Esse pensamento leva a dois raciocínios.
O primeiro é que se você ama algo o suficiente, você vai ser o melhor naquilo e isso vai naturalmente te fazer ganhar dinheiro através desse talento/técnica/conhecimento. Isso não é verdade. Conseguir ganhar a vida com qualquer atividade é uma mistura de cinco coisinhas: oportunidade, conhecimento, contatos, persistência e sagacidade. Tem gente que vai precisar ralar muito para fazer os cinco, tem gente que já nasce com pelo menos dois deles garantidos (oportunidade e contatos, pois são ambos questão de classe social) e tem gente que desenrola melhor um ou outro e acaba frustrada porque não consegue desenvolver todos. Essa última é a maioria das pessoas. Eu me identifico com esse grupo, inclusive.
O segundo raciocínio é de que você nasceu para fazer uma determinada coisa na vida e se você não fizer aquilo, você é um fracasso. Não é bem assim. (Vamos voltar a isso logo.)
Eu vejo muitos amigos mega inteligentes, com formações acadêmicas incríveis, que nunca conseguiram trabalhar na vida e na idade adulta estão se sentindo simplesmente uns merdas. Desculpa meu francês, mas eu acho que o termo define muito bem o sentimento de inutilidade que a pessoa adulta sente quando percebe que suas escolhas de vida não garantiram a autonomia que ela esperava ter com certa idade. É uma merda mesmo. Mas olha, a única coisa que não tem solução pra nossa vida é a morte, enquanto estivermos vivas dá para fazer algo a respeito. O problema é: vamos fazer o quê exatamente?
Consegui bolsas para seguir os sonhos de estudar e pesquisar tópicos em educação, mas parece que aqui de onde eu sou é nicho demais, não é prioritário. Às vezes estar num pais da América latina é frustrante, porque ninguém parece se interessar pelo que eu tenho para oferecer, ou pelas ideias que eu tenho pois não tenho conexões políticas ou contatos influentes. Ai quero ir pra outro pais, mas não quero deixar o meu lugar e queria conseguir fazer mudanças aqui. Ter vivido muitos anos estudando com bolsas em outros países foi uma experiência incrível mas me sinto um pouco desconectada daqui, da minha casa. Morando com os pais agora que voltei (faz um ano já meu deus), parece que não consegui construir nada nesses 28 anos. Eu sinto como você que todo mundo grita um emprego incrível e quer reter meu olhar como você falou, me mostrar que é possível fazer coisas maravilhosas e eu não consigo. E estou tentando Doutorados, empregos fora (no Paraguai, o meu país, não tem quase doutorados e não na área de neurociência cognitiva) e a rejeição é também difícil de digerir e a frustração cresce me levando a desistir. Penso que não sou o suficiente como eu pensei que poderia ser.
Estou me fazendo a vítima ou realmente as condições em que vivo, cresci, de onde eu venho têm muito impacto? Eu pesquisei muito sobre como os fatores socieconômicos e ambiente onde crescemos afetam a aprendizagem e rendimento e sucesso acadêmico. Sinto um pouco disso, voltando para meu país me sinto um pouco limitada.
Sabe, o sentimento de “não ser suficiente” pode ser libertador, mas não do jeito romantizado que a gente enxerga a liberdade. O que você faria se não tivesse os diplomas, os anos estudando fora etc?
Cometendo o pecado de escrever o que eu raramente verbalizo, mas eu acho que às vezes tudo o que resta em um momento de desespero é procurar um emprego qualquer mesmo. É horrível ser mal pago, mas mal pago é melhor do que não pago. Um salário mínimo é melhor do que nenhum salário. Eu sei que isso parece um disparate, um discurso neoliberal — porque é um discurso neoliberal mesmo. Como que eu, uma pessoa que se diz anticapitalista, que flerta com o comunismo, gosta de ser de esquerda etc fala uma coisa dessas? Porque eu posso dizer com tranquilidade que a minha posição política pessoal não muda, do dia pra noite, o jeito que o mundo está funcionando aqui e agora.
Acho que esse, inclusive, é um grande problema da “esquerda cirandeira”. Há um descolamento imenso da realidade. Uma pessoa pode ser formada em história, ter doutorado, falar 5 línguas, se ela não consegue um emprego feito sob medida para sua formação e se ela não tem suporte financeiro da família, ela vai ter que procurar trabalho em outra área. Sem formação e conhecimento específico em outra área, ela vai ter que pegar o trabalho que der. Estoquista? Atendente de loja? Caixa? Recepcionista? Auxiliar de almoxarifado? Operador de máquinas? Aprendiz de pedreiro? Sei lá. Toda vez que eu sugiro esse tipo de trabalho para alguém próximo, alguém com no mínimo uma formação universitária mas que está matando cachorro a grito, eu tenho a impressão que estou ofendendo. Mas isso é o normal para as pessoas que eu convivi na infância e adolescência. Só que não é normal para a maioria das pessoas com quem eu convivo na vida adulta, porque essas pessoas vem de um contexto social totalmente diferente. Elas só conhecem pessoas com esse tipo de emprego através de relações hierárquicas. Elas não tem amigos pedreiros, caixas de supermercado etc, então elas não tem contexto social para sequer considerar a possibilidade de ir atrás desses trabalhos.
Eu sei que estamos no meio de uma crise sobre os trabalhos informais, não leve meu discurso como leviano nesse sentido. A precarização do trabalho pega muito mais as classes mais baixas, ainda que todo mundo esteja afundando no mesmo barco (quem está nos porões se fode afoga primeiro, não é? Lições aprendidas com o Titanic rs). Podemos e devemos seguir denunciando e problematizando a precarização. A uberização das relações de trabalho. E, ainda sim, de vez em quando precisaremos nos submeter a elas. É horrível, eu sei. Mas é a realidade.
Trabalhar para ganhar sua dignidade e sustento faz parte, inclusive, da prática marxista.
“Para Marx, o trabalho é uma dimensão ineliminável da vida humana, isto é, uma dimensão ontológica fundamental, pois, por meio dele, o homem cria, livre e conscientemente, a realidade, bem como o permite dar um salto da mera existência orgânica à sociabilidade. (LUCKÁCS, 1981, p.12). É também pelo trabalho que a subjetividade se constitui e desenvolve-se constantemente, num processo de autocriação de si. Deve-se compreender que o homem possui a capacidade potencial de realizar-se como ser livre e universal, ao efetivar-se, no curso histórico, e, ao mesmo tempo, dar novos rumos à sua existência. Isso quer dizer que o homem está em um constante processo de auto-construção, tanto em sua dimensão subjetiva quanto intersubjetiva, possibilitada por sua atividade essencial, o trabalho.”
- trecho de um trabalho de mestrado da UNESP, do prof. Renato Almeida de Oliveira.
Às vezes eu tenho a sensação que muitas pessoas infelizes encontrariam mais ferramentas para lidar com a vida e a infelicidade se experimentassem um trabalho totalmente diferente do que elas idealizam ou esperam. Sabe? Eu não quero, com isso, implicar nenhuma ideia de que você não está fazendo o suficiente ou que você não esteja procurando empregos em outros campos (há a eterna crise de desemprego para adicionar na conta, óbvio). Estou só expandindo o que você compartilhou para o que eu ando pensando sobre o assunto como um geral nos últimos anos, principalmente sobre a questão de ser adulta, ter certas formações e não conseguir nada com isso.
Mas eu quero retomar a questão de não romantizar a liberdade como estamos acostumados. Caindo totalmente na tentação de contar causos da vida, confesso que houve uma época em que eu morava sozinha num bairro na divisão da zona leste e sul de São Paulo, em que eu dormia num colchão de ar e passei muitas semanas comendo apenas arroz cozido com alho, porque eu não tinha dinheiro para mais nada. Uma das minhas memórias mais vívidas da época foi um dia em que eu saí vasculhando todos os cantinhos daquela casinha de dois cômodos (dividindo o pátio com outras tantas pessoas aleatórias) para encontrar qualquer moeda perdida que poderia ter no chão, nos casacos, nos bolsos das calças e afins. O que mais me cortava o coração era não ter dinheiro para ração dos meus dois gatos, mas consegui alimenta-los com ração de cachorro (doação da petshop do bairro). Dos meus amigos da época, os mais endinheirados nunca me ofereceram ajuda (eu também não pedi e está tudo bem, talvez eles nem soubessem), mas as pessoas mais economicamente parecidas comigo na época foram as primeiras a oferecer auxílio. Uma amiga me emprestou o cartão de transporte público para eu poder correr atrás de emprego, outra amiga (de outro estado) me mandou um envelope com um cheque para pagar 2 meses de aluguel (eu paguei de volta depois, mas me sinto em dívida de vida com ela para sempre, não uma dívida pesada e vergonhosa, mas uma dívida de lealdade mesmo, que é uma sensação muito boa às vezes) e teve gente que correu para me indicar para trabalhos informais, que foi exatamente o que me ajudou nos meses difíceis. Teve um dia que eu fui em todos os supermercados da região para pesquisar os preços de material de limpeza, porque ia começar a fazer faxina — só não precisou porque acabei conseguindo um emprego naquela mesma semana. Contando isso, não quero vir aqui dar um atestado de sofrimento, mas quero naturalizar um pouco a sensação de fracasso.
Eu nunca me senti tão fracassada como naqueles meses de 2012, mas ao mesmo tempo eu sentia uma dignidade enorme em estar lidando com um problema daquela magnitude. Eu poderia dizer que lidei com tudo sozinha, e no nível emocional foi, mas eu tive um apoio aqui e ali de pessoas que não tinham vínculo de parentesco comigo. E isso foi libertador. Foi crucial encontrar meios de sair da merda sem o suporte dos meus pais, que só souberam pelo o que eu passei muitos anos depois. Simplesmente porque eu sabia que eles não tinham condições de me ajudar, então poupei-os do sofrimento e também de ter aquela conversa com eles sobre voltar para casa, algo que eu não queria de jeito nenhum, mas seria a decisão mais óbvia frente a situação. Segurar as pontas sem voltar para casa dos meus pais foi importante para construir uma espécie de orgulho crucial, a certeza de que eu consigo tomar conta de mim mesma. Com isso, eu não quero glamourizar o sofrimento, porque a verdade é que eu acho que ninguém deveria ter que passar por isso. Mas de demonstrar que cada pessoa tem um tipo de jornada pessoal para encontrar um certo equilíbrio e se sentir capaz de fazer as coisas. Precisamos, antes de ser útil ao mundo, ser útil para nós mesmas.
Tipo aquela história da máscara de oxigênio no avião e a instrução de que devemos colocar a máscara em nós mesmos antes de ajudar as pessoas na volta.
Alguma vez você se sentiu assim, limitada ou que não sabe o que fazer da sua vida? Às vezes penso que nem é tanto não saber e sim as poucas oportunidades que temos disponíveis. O que você recomendaria eu fazer?
Obrigada por ler ate aqui, queria ter conseguido organizar minhas ideias melhor mas só fui escrevendo tudo. Abraços!
Sim, muitas vezes eu me senti limitada e sem saber o que fazer da vida. Mas nunca durou muito, porque no ambiente onde eu cresci isso não existia. Ou se existia, ninguém falava. Então eu acho que esse modo de viver ficou incrustado em mim. A palavra de ordem sempre foi trabalhar para ter o básico, não importa muito com o quê, desde que não esteja obviamente se cometendo um crime — e não pelo fato de que cometer crimes seja errado, mas porque se você for pego certamente a punição virá, diferente de outras classes sociais. Eu não estou romantizando a pobreza, mas chamando atenção para o fato de que numa situação de crise geral, como essa que estamos vivendo agora nesse pós-pandemia e precarização do trabalho, talvez seja terapeutico aprender com as pessoas que sempre estiveram em situação-limite de sobrevivência. Eu arrisco dizer que perguntar para a tia do cafezinho ou para pessoa que limpa o chão o que elas recomendam fazer seja muito mais útil do que perguntar para uma pessoa mais próxima de você.
No mais, agradeço o envio dessa longa pergunta. Eu pensei nela por semanas, sem saber como responder e pensando em mil possibilidades de resposta. Estou omitindo o seu nome, mesmo que você tenha assinado com ele, porque penso que talvez fosse te expor demais, mas se quiser que eu identifique, eu posso editar o texto depois (só me avise, pode ser pelos comentários ou respondendo diretamente este email, eu vou receber sua mensagem diretamente na minha inbox pessoal).
Espero não ter sido rude na resposta. E se quiser conversar mais, estou aqui.❤️
Para os outros leitores: como vocês responderiam a essas questões?
📡 Satélite de recomendações
Não dá mais para confiar no Google, de Rodrigo Ghedin.
❤️🔥 Oficina
Eu montei uma oficina de escrita online.
Da ideia ao ensaio está com vagas abertas para uma turma sábado dia 25 de maio. Tudo pelo zoom e com material de apoio trazendo ideias para você usar na sua newsletter.
A oficina será gravada e disponibilizada aos participantes na semana seguinte.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Ps: Para participar dessa coluna, basta me mandar uma pergunta aqui:
Nossa, eu me identifico tanto com esse texto. Desde 2019 eu venho fazendo essas reflexões, sobre trabalho, vocação, ganhar dinheiro fazendo o que se ama. Eu me formei em Direito e a minha escolha pelo curso foi bem prática: passar em um concurso para ter um bom salário e estabilidade. E logo no início da faculdade eu consegui isso, mas num cargo de nível médio. Eu queria passar em outros concursos melhores, por anos tentei magistratura, até que cansei da vida de estudos para concursos e parei (na verdade fui forçada a parar, por um burnaut). Mas o tanto que sofri com isso, me cobrando por ter parado de perseguir algo maior, por estar apenas num cargo de nível médio (ainda que seja um ótimo cargo, bom salário, 6 horas, estabilidade, tudo que buscava quando entrei na faculdade de Direito). Foi só recentemente que consegui parar de me sentir um fracasso, entender que eu estava tentando passar em outros concursos muito mais pra performar para os outros (o que para mim ainda tem uma questão de classe muito forte, já que venho de uma família pobre e fui a primeira a ascender pelo estudo). Hoje, minha relação com trabalho tem mudado a cada dia mais. Parei de romantizar, parei de achar que sucesso é só atingir o maior cargo dentro de sua área de formação. Passei a ver meu trabalho de forma bem pragmática: é algo que faço para garantir minha subsistência, para prover minha liberdade e independência financeiras. Com isso liberei tempo e energia para me dedicar a coisas que amo, mas sem a pressão de monetizar tudo.
Essa edição contém tantos raciocínios interessantes que até fica difícil fazer um comentário à altura. No entanto, gostaria de expressar meu agradecimento, pois venho de um contexto onde é comum trabalhar em empregos menos valorizados. Eu já trabalhei como atendente de telemaketing, loja de shopping e, se necessário fosse, trabalharia novamente sem hesitação - e isso é vindo de alguém com diploma de graduação em Direito e cursando mestrado na USP. O ponto é que para quem começa na base, não se enxerga isso como o fim do mundo, mas sim como um ponto de partida digno que possibilitou muitas coisas, e voltar para ele pode fazer parte do percurso. A vida é muito complexa, mas o orgulho de classe pode atrapalhar muito.