Um homem do seu tempo
Me sinto uma mulher do século 22 presa no corpo de uma do século 21.
Mas a sensação é uma falácia. Pertenço a meu tempo, sim, pois não há outro modo de existir se não aqui e agora. Não interessa o quanto eu deteste os homens do meu tempo, estamos todos juntos nessa estrada, lutando para ocupar espaços que deveriam ser compartilhados e não disputados.
Há muito tempo
Detesto a expressão "era um homem de seu tempo" porque o tempo atravessa todo tipo de espaço e possibilidade; esses homens apenas escolhem o que lhes é mais confortável e conveniente. Não tem nada a ver com o tempo. Tem a ver com o poder por onde eles navegam. Um poder de valor social.
Qualquer ser vivo que não seja um homem do nosso tempo tem alguma coisa para reclamar sobre os homens do nosso tempo. Preste atenção. Pare um minuto para pensar.
Agora pense no que vem logo depois do homem do seu tempo, no imaginário popular. Uma mulher. Qualquer mulher. Hoje, no nosso tempo, muitas mulheres acreditam que o mais emocionante rito de entrada na vida adulta, ou que a fonte de maior expressão de amor que elas sentirão em suas vidas, começa no processo de uma gravidez. Um parto emocionante. Talvez seja pleonasmo dizer “parto emocionante”, pois me parece que todos os partos são emocionantes, cada um à sua maneira.
Quer a gente seja progressista ou não, a simbologia da figura da mulher grávida está presente em todas as culturas. É uma expressão universal de continuidade da vida. Um ser humano literalmente recheado de vida. Se estamos todos aqui agora, no nosso tempo, é porque passamos pelo útero de mulheres. Talvez muitas delas não tenham sido mulheres, talvez fossem algo inominável nos lugares e tempos em que nasceram. Talvez fossem homens com úteros. Mas isso não importa para o simbolismo que impregna nossa cultura hoje, que é essencialmente cristão e binário.
Para um homem médio do nosso tempo, a figura de uma mulher grávida é sagrada (ou deveria ser). É como se fosse o ápice da vida da mulher jovem na maioria dos lugares. A grávida, a parturiente e a mãe constituem funções essenciais para a manutenção da nossa existência.
Talvez a gravidez e a maternidade sejam as únicas funções sociais inquestionáveis das mulheres. Qualquer outra função que uma mulher tentou desempenhar na história do mundo foi questionada. Guerreira? Questionável. Fazendeira? Questionável. Curandeira? Questionável. A maternidade e a gravidez são, no imaginário cultural, os únicos lugares de poder absoluto onde as mulheres brilham. Simbolicamente, o parto é a maior expressão desse poder inquestionável até mesmo para o homem do nosso tempo.
Nosso tempo
Um homem do nosso tempo estuprou uma mulher na sala de parto. Mais do que isso. Um homem do nosso tempo, cuja função social era zelar e proteger essa mulher, pois era um dos médicos que cuidavam do seu bem-estar e segurança, violou-a.
Pense agora na simbologia. Pense no homem do nosso tempo violando uma mulher no seu momento de maior brilho, poder e respeito.
Violar o inviolável para benefício próprio, para um capricho, um fetiche. Sabe o que significa essa imagem? Isso mesmo. Uma afirmação de poder.
Muita gente diz que o homem precisou de muita coragem para fazer o que fez. Que só uma pessoa com certeza absoluta da impunidade daria cabo desse crime. Eu acredito que é muito mais do que isso. Que há de se ter desprezo pela vida que se deturpa também. O desejo da violação, ainda mais numa situação de extrema vulnerabilidade, só pode nascer da ideia de desumanização do outro.
A violação do inviolável só é possível em uma sociedade que desumaniza os corpos das mulheres regularmente.
O homem do nosso tempo é capaz da atrocidade porque, para ele, nenhuma outra vida importa além dele próprio. A sociedade lhe confere esse crédito. Ele não precisa de coragem para nada, porque a subjugação de uma pessoa vulnerável é natural. Ele sente que é seu direito.
Não foi à toa que foram as enfermeiras que tomaram uma atitude para encurralar o médico e denunciá-lo com a prova inquestionável do crime.
Uma luta do nosso tempo
A sociedade forma homens que cometem atrocidades. A sociedade é machista.
Mas a sociedade não é formada apenas de homens.
Somos todos pessoas do nosso tempo. Se a atrocidade só foi possível por causa da nossa cultura machista, nós precisamos mudar essa cultura. Aqui e agora. E não seremos nós, as mulheres, que conseguiremos sozinhas mudar um mundo que… não é feito apenas de mulheres. Que não é feito apenas de mulheres cisgênero. Nosso mundo é constituído de homens, mulheres, mulheres trans, homens trans, pessoas não-binárias…
Eu gostaria de um mundo não-machista, uma sociedade livre de sexismo, que eu possa desfrutar enquanto estiver viva.
"O feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, a exploração sexista e a opressão.”
bell hooks - Capítulo 1, Feminismo é para todos
O feminismo é um movimento político, e sendo um movimento político, pertence a todos. Na expectativa de reconstruir o mundo sob a ótica da igualdade entre gêneros, o feminismo ameaça quem acredita que seu poder sobre os outros é um direito incontestável.
Mas feminismo não é uma luta de um gênero só.
O feminismo pertence a todas as pessoas aqui e agora.
Em 1871, a palavra feminismo foi criada para designar homens tuberculosos. Segundo a tese do francês que cunhou o termo, Faneau de la Couer, esses homens passavam a adquirir trejeitos e formas afeminados à medida que a doença avançava.
“Um ano depois da publicação da tese de Faneau de la Cour, Alexandre Dumas filho retoma, num de seus panfletos políticos, a noção médica de “feminismo” para descrever os homens que se mostram solidários com a causa das “cidadãs”, o movimento de mulheres que lutam pelo direito de voto e pela igualdade política. As primeiras feministas eram, portanto, homens: homens que o discurso médico considerava anormais por terem perdido seus “atributos viris”, mas também homens acusados de feminilizar-se devido à sua proximidade com o movimento político das cidadãs. As sufragistas ainda demoraram alguns anos para reivindicar este adjetivo patológico e transformá-lo num lugar de identificação e ação política.”
Paul B. Preciado, Um apartamento em Urano
Que os homens do nosso tempo sejam feministas.
É urgente.
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Para dar um quentinho no coração durante essa semana difícil, leiam a Carolina no Vou te falar.
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Beijos, abraços e toda forma de amor.
Vanessa Guedes.
Sent from my tamagotchi
Vanessa, seu texto me atravessou como uma flecha. Obrigada por colocar tudo isso em palavras - e obrigada também pela indicação ❤️❤️❤️
Sensacional. Eu vinha pensando nessa motivação, um prazer em subjugar muito maior do que o prazer sexual, e você explicitou e fundamentou o que eu apenas intuía. Obrigada.