Uma carreira nunca vai amar você de volta 💔
Protestantes, católicos, trabalho e um pouco de dissociação
Tempo de leitura: 4 minutos
nunca ocorreu a ele inventar, ele mesmo, para ele mesmo, uma vida fictícia por cima daquela que ele tinha.
- Elvira Vigna em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas
A vida é intolerável. Tudo o que nos acontece entre o momento do nascimento e a morte vem da tentativa de dar sentido a essa intolerância, fazê-la menos brutal e mais justificável. Mas na verdade, lá no fundo mesmo, não há justificativa. Estamos à deriva. Ter uma carreira é uma das tentativas coletivas de ir contra essa sensação desoladora de dar sentido à existência. Trocamos a religião pelo trabalho, substituímos a busca pelo paraíso após a morte pelo encontro com o paraíso aqui, agora. Por isso que abrir o Linkedin é como observar uma horda de ratos de laboratório presos em uma gaiola. Em mim, a imagem provoca uma tristeza profunda; se abrirmos a gaiola, para onde levaremos esses ratos? Para casa? Como? E se os deixaremos soltos pelo laboratório? O que acontecerá com eles? Talvez você seja o rato fora da gaiola observando os outros lá dentro. Estar fora não faz de você menos rato, nem menos faminto (talvez mais faminto do que os ratos na gaiola). Você ainda está no laboratório.
E a vida continua intolerável.
Importamos, dos países do hemisfério norte, a busca pela salvação através do trabalho. Não é uma lógica natural a nós brasileiros, que não somos protestantes. Por mais que você não dê bola para religião, foram em seus fundamentos que os valores de nossa cultura se firmaram. No catolicismo, a salvação vem da compaixão, do perdão, do amor. Coisas que sugerem um reconhecimento social do nosso desempenho. Na lógica protestante, a salvação de Deus chega pelas conquistas que conseguimos com o suor do nosso trabalho. Coisas bem mais concretas como imóveis, roupas, dinheiro. A busca por salvação agora contém ambos. Pequena miséria existencial para nós que já nascemos infelizes. Nós, ratos.
Por isso o Instagram brasileiro é uma mistura de páginas amarelas e lista telefônica com portfólio. Ao mesmo tempo que queremos o amor — queremos um job.
..lutar para não sonhar os sonhos da repartição.
Surina Mariana em 108.
Na onda de importação dos valores protestantes, também veio a ideia de trabalhar com o que se ama. Por muito tempo eu pensei que não acreditar nisso me livraria do tipo de ilusão que acaba com a autoestima das pessoas. Mas hoje eu percebo que estar em sociedade é ser sujeita às suas lógicas. E é muito muito difícil conviver em ambientes de trabalho onde acredita-se nessa falácia coletivamente. Fazer parte de um grupo de pessoas que acreditam em algo em comum, mas você não, obriga a uma espécie de desconexão. Uma dissociação em nome da sobrevivência. E quando elas percebem que você não compartilha do mesmo sonho, a indiferença é vista como esnobismo. Arriscado. Ser diferente (ou indiferente) é um erro intolerável.
Como assim você não quer trabalhar com o que ama?
No fim do dia, queremos ser amados. Não apenas pelas nossas mães, mas apesar das nossas mães. Quando pequenos, somos um sonho, uma promessa. Desenvolver uma carreira talvez seja a atitude mais óbvia para ir de encontro ao sonho ou nos desvencilhar completamente dele. Não tem como deixar de tratar isso como uma busca por pertencimento. E para pertencer, temos que nos identificar. Uma carreira parece uma longa busca por identificação. Por isso dissociamos de quem nós somos (e de quem poderíamos ter sido também), vamos priorizando a busca por aprovação, muitas vezes destruindo todo o restinho de subjetividade que restava. Buscamos meios de nos permitir dizer finalmente: eu pertenço. Eu sou. Você ama sua carreira.
Isso é amor ou amor à ideia de ser amado? Aqui encontro a mistura protestante-católica. Em um mundo sem deus e deuses, você quer se salvar do quê?
Sua carreira nunca vai amar você de volta.
A vida é intolerável.
Vem aí: 5 e 6 de julho
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Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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"No fim do dia, queremos ser amados. Não apenas pelas nossas mães, mas apesar das nossas mães."
Como disse a Anna Raissa: "O latino é traumatizado pelo pai ausente e pela mãe presente."
Caramba! Queria escrever bem assim!!!