Para quem chegou há pouco tempo nessa newsletter, por conta das últimas edições (sobre mania de competição e o que é uma boa vida), aviso aos astronautas: tem texto aqui toda quinta-feira.
Não tenho conseguido dormir direito, coisa rara, eu sou dessas pessoas que dorme em qualquer lugar, a qualquer hora. Mas não é a primeira vez que a vida me perturba a ponto de destruir meu único super-poder natural, de modo que investigo, investigo, investigo e ainda sim não encontro nada, apenas livros que eu não consigo terminar, embora sejam excelentes, e aparelhos de ginástica onde me torturo voluntariamente com um ódio enorme. Me escapa a capacidade de concentração, mas continuo entrando em hiperfoco com a mesma facilidade de sempre quando preciso escrever e isso me enlouquece pois as palavras escapam para dentro do texto e quando preciso falar me sinto uma babaca vazia completa. Eu trabalho desde os quinze anos, nunca antes na vida eu apenas estudei e é uma vergonha imensa estar apenas estudando, embora seja a coisa que eu mais quis por toda a vida. Embora eu tenha gastado minhas economias de anos nessa loucura infantil de que eu posso fazer isso. É claro que eu não posso. Essa culpa eu vou carregar para dentro do caixão, a voz aqui dentro dizendo que esse sofrimento todo é falta de trabalhar doze horas por dia, como se escrever meus romances fosse um hobby, como se ler e estudar e escrever não fossem trabalho, talvez se eu tivesse nascido em outro lugar isso não fosse um problema, talvez eu não estivesse consumida de culpa por estar apenas estudando, ainda que não esteja matando, roubando e mentindo, muito embora escrever romances seja essencialmente mentir para caralho, da forma mais elaborada possível. Por que me sinto culpada por escrever caralho? Puta que pariu. Se eu estivesse trabalhando como sempre, doze ou oito horas por dia, eu não teria tempo para esse drama todo.
Eu tenho um amigo antigo de vida, antigo mesmo, nos conhecemos ali pelos seis ou sete anos de idade, em algum momento ele virou um crush. Nos tornamos muito próximos na adolescência e um dia eu o beijei. Nossos corpos enroscados em cima de uma rede enquanto todo o resto da galera dormia no sofá. Ele me pediu para nunca mais fazer aquilo de novo. Fiquei magoada, mas passou. Seguimos a vida fingindo que aquilo nunca aconteceu até que, na beira dos trinta anos, ele parou o carro para me mostrar a orla nova do Guaíba, passamos horas conversando como sempre, e na hora de ir embora, entramos no carro. Antes de dar a partida, ele resolveu que aquele era o momento mais apropriado para revelar que guardava uma paixonite entre a gente desde aquele passado borrado e distante. Desde muito antes daquele dia do beijo na rede. Se fosse uma comédia romântica, a luz ficaria mais baixa, as estrelas brilhariam mais intensas contra o céu escuro, e a gente daria um beijo longo e apaixonado no carro, de frente para o lago que foi coadjuvante de tantas histórias na nossa vida. Mas não consegui processar o sentimento. Eu travei. E ele deu a partida, seguiu dirigindo, falando sem parar, explicando um milhão de coisas envolvendo um amigo nosso em comum, não queria ser um fura-olho - e eu espantada sem saber o que pensar daquilo, sem ter ideia de que havia uma terceira pessoa envolvida na história, sendo surpreendida por tudo que não percebi ao longo de quinze anos. E sentindo um desgosto profundo. Travada. É muito difícil lidar com quem nos conhece há tanto tempo. Não há conforto na transparência, nem aconchego em uma paixão que chega tão tarde, tão ácida. Quase azeda.
No dia seguinte, peguei um táxi com uma das minhas melhores amigas da vida. No meio da corrida, dentro de um túnel escuro em um viaduto, ela declarou que estava chateada comigo porque eu havia ido embora há muitos anos e toda vez que retornava à cidade eu só sabia exibir minha felicidade enquanto a vida dela estava sempre em turbulência. Tive raiva pela falta de privacidade, o motorista olhando direto para minha cara pelo espelho, esperando a reação. Eu também esperaria, se fosse ele. Até hoje eu não sei o que ela queria de mim, me calei numa concha. E fiquei em silêncio até chegarmos ao bar, onde torci para as outras pessoas chegarem logo. Não lembro de ter me sentido desconfortável na presença dela antes. Fingi que nada aconteceu e ela foi embora quando o namorado apareceu. Eu travei outra vez e sigo travada até hoje. Na verdade ela me disse uma coisa muito mais horrorosa do que eu escrevi aqui, mas não tenho coragem de expor. Parece que escrever torna a coisa toda hiper-realista. Não consigo odiá-la, tampouco tenho vontade de confrontá-la. Mas as palavras ainda me chicoteiam e eu não sei o que fazer. Dói, é como se ela fosse um domador e eu um cavalo. Estou presa num picadeiro apanhando e não consigo olhar para lugar nenhum, apenas para frente.
Me impressiona o mal que se pode fazer ao não fazer nada. A força da língua, a morte.
Eu penso nisso tudo quando não durmo. Nas palavras dos outros e seus efeitos. Penso na responsabilidade enquanto pessoa que escreve e tudo que posso fazer para ferir alguém, as coisas omitidas, as coisas miúdas que deslizam de uma frase a outra. Me dói a imagem do amigo tentando me mostrar um tipo de amor silencioso - os anos passando até que as palavras se formassem na boca, jorrando revelações aos meus ouvidos. Eu queria ter escutado antes, queria ter escutado as coisas que ele não disse esse tempo todo, mas o antes foi alterado. A memória esconde mensagens que não entendi nas pausas, nos olhares, nas gentilezas e nas maldades dessa amizade temperada por distâncias maiores do que quilômetros físicos. A minha insensibilidade gigante.
Escrevi um romance em primeira pessoa, uma protagonista diametralmente diferente de mim, mas nascida na mesma cidade. No desenrolar dos acontecimentos, ela dirige um carro. Nas minhas histórias pessoais, da minha vida de verdade, eu nunca estou dirigindo. Não tenho carteira de motorista e o universo dos volantes não faz parte de mim. No romance, nessa vida de mentira, falo por essa mulher que dirige um carro pela minha cidade e examina os cantos mais escuros das coisas que ela não consegue dizer para as pessoas que ama. Nisso sim somos parecidas.
Meu pai é taxista, meu pai é metade de mim, a metade de mim que dirige. E se eu trabalho desde os quinze, ele trabalha desde sempre, desde que o mundo é mundo e ele completou onze anos. Escrever é trabalho, embora os trabalhos intelectuais não me pareçam trabalhos de verdade. Minhas amigas comentam o valor que pagam para fazer as unhas no salão de beleza, eu penso na minha mãe, que é manicure, nessa metade de mim que cuida das unhas das pessoas, eu calculo quantas unhas eu teria que lixar e pintar e cuticular para fazer uma viagem internacional. Preciso me lembrar que escrever é trabalho, embora os trabalhos intelectuais não me pareçam trabalhos de verdade. Olho para as minhas mãos batendo nas teclas desse teclado mecânico tão bonito, tão eficiente, tec tec tec, e metade de mim dirige um táxi, metade de mim lixa uma unha.
Desculpe os garranchos.
Eu sou contra a ideia de que escrever é terapia, embora possa ser terapeutico. Escrever é um monte de coisas.
Mas se eu voltar a dormir, esse aqui realmente foi terapêutico.
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor, tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés
O mundo é um moinho - Cartola
Pós-texto
No fim, eu dormi. Dormi tão bem que já esqueci de tudo que me aborrecia. Esqueci na superfície, onde todos compartilhamos da chance de fingir que temos controle sobre alguma coisa.
Satélite de recomendações
Eu tenho muita ressaca moral de contar coisas excessivamente pessoais. Mas também sinto um alívio profundo, muito parecido com a satisfação depois de escrever no meu diário pessoal. Atualmente eu nutro uma admiração enorme pela “geração taylor swift” (cujo apelo eu não entendo, mas cujas fãs me despertam muito mais interesse), as garotas que não tem medo desse tipo de coisa, esse melindre ridículo sobre manter a personagem, uma tentativa de exercer uma espécie de fascínio como se fossemos mulheres misteriosas.
Essas duas recomendações de hoje são mais ou menos sobre isso.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Ps: semana que vem teremos grandes novidades aqui. Aguardem!!!
(não dá para bancar a misteriosa escrevendo com tanta exclamação, mas eu tento)
Fascinante! Fascinada! Que lindo!!! Seu texto me exclama a manhã.
amei amei e amei. me identifiquei tanto. adorei ler isso hoje, falou demais comigo. vc arrasa!
não sei se vc vai ver isso aqui, mas queria deixar uma pergunta:
vc fala da questão do compartilhamento de coisas tão pessoais nos seus textos. como é isso pra vc? como bate? como vc se sente antes e depois de publicar? rolou um momento de decisão da temática desses textos ou só foi acontecendo? se puder falar mais sobre...
torcendo aqui. beijos!