Mania de competição
As redes sociais, o Substack e o vício em se comparar com coleguinhas
TEMPO DE LEITURA: 9 minutos.
Eu tenho medo de escrever? Não, não tenho. Tenho receio de publicar? Às vezes. Quanto mais publico, menos medo eu sinto. Mas carrego um certo horror dos números. De um dia esquecer quem eu sou e usar outra pessoa, completamente diferente de mim, como um espelho. Uma referência. Tenho medo de um dia usar os números de seguidores, leitores, likes e amores de outra pessoa como âncora para minha vida. Pois a única pessoa que pode viver a minha vida sou eu.
Mania de competição
Tenho a sensação constante de que quase tudo a respeito das redes sociais tem um certo gosto de competição. Diferente de uma copa do mundo ou qualquer tipo de campeonato atlético, essa competição é muito mais sutil e engenhosa, pois coloca eu e você em uma arena sem aviso, sem treino e sem torcida. Competindo silenciosamente através da comparação com os outros. Quando nos damos conta, já estamos verificando nossos números (de seguidores e curtidas) em contraste com os números de coleguinha ao lado. Não é o caso de sermos um bando de pessoas invejosas, daquele jeito meio vilã da Disney dos anos 90. Mas é o caso de sermos grandes vítimas de um ecossistema super eficiente que nos coloca em estado de competição permanente, contra a nossa vontade.
Não vou ser ingênua dizendo que isso serve apenas às grandes empresas. Em troca da nossa atenção nós também ganhamos em conhecimento e entretenimento. Mas a que custo?
Um novo tipo de valorização da vida
Quando eu falo que nós somos colocados em uma arena sem perceber, eu quero dizer que estar em qualquer rede social, mesmo que seja apenas como usuário, nos coloca em estado de exposição numérica. Não importa quem você seja, há uma lista de números acompanhando sua imagem nas redes, quer você queira, quer não.
Esses números impõem um senso de valor à nossa vida. É como se nós pudéssemos calcular a importância da nossa existência, como um jogador de futebol é valorizado pelo quanto custa ao ser comprado por um time novo. Pode parecer uma “forçação de barra” dizer isso, mas convivendo com o pessoal da faculdade, cuja maioria é pelo menos dez anos mais nova que eu, percebo que para eles não há separação entre vida digital e vida real. Elas são a mesma coisa e acontecem simultaneamente.
A rede social dos textos
“A era de jornalismo de Substack
O movimento é puxado por plataformas que vêm repaginando o tradicionalíssimo formato das newsletters - aqueles pacotes de texto que chegam a nossos e-mails desde os primórdios da internet. A mais conhecida delas é o Substack, com mais de um milhão de assinantes em todo o mundo. No Brasil, a rede virou manchete no final de 2020, quando o premiado jornalista norte americano Glenn Greenwald, responsável por furos como o de Edward Snowden e o da Vaza Jato, anunciou sua ruptura com o site The Intercept e mergulhou de cabeça em uma newsletter própria.“
Fonte: matéria do Uol Economia em fevereiro de 2022.
As marcas ainda não chegaram em massa aqui no Substack, mas vão chegar. O capitalismo é altamente adaptável e a Publicidade — assim, com P maiúsculo porque é uma crítica à ela como área de conhecimento mesmo — é especialista em se apropriar de tudo que tenha o mínimo de expressão artística e possa virar um meio de aproximar uma marca de pessoas. Há anos nós, que gostamos de textos, estamos sentindo falta de um lugar centralizador para encontrar e divulgar textos longos. O Medium era uma boa promessa, mas não pegou tanto (dá para discutir, mas não vou entrar no mérito agora). Os blogs, sozinhos, não tem muito alcance sem que a autora seja uma espécie de influencer em redes sociais — e ainda sim, isso não é garantia de que seus textos serão lidos, porque as pessoas odeiam sair das plataformas onde já estão circulando. Ultimamente, parece que abrir um link no navegador virou trabalho demais. Mas isso não é culpa das pessoas, isso é uma consequência da forma com que a internet funciona agora.
O Substack se diferencia das outras plataformas de newsletter e de blogs exatamente porque faz o papel de ambos. Leitores recebem o texto por email, mas também temos os textos organizados bonitinhos no formato blog (outras plataformas estão indo nessa linha, como o Beehiiv).
Eu gosto de escrever aqui porque não importa o que aconteça, meu texto vai chegar na sua caixa de entrada de emails. E quem me lê pode escolher ler os textos na hora que quiser, na ordem que quiser. Se eu dependesse de algoritmo para “entregar conteúdo” também dependeria da disposição das pessoas em ler o texto na hora que ele aparecesse na timeline. Se deixar passar, passou. A interface das redes sociais não é boa para gente recuperar conteúdos ou mesmo lembrar de coisas legais que lemos há um, dois, três meses atrás.
Mas o Substack também não é um santo. Ele desenvolve-se como o ciclo de vida da maioria das plataformas sociais:
Primeiro, o sistema funciona muito bem para os usuários. Ele resolve um problema ou proporciona um ambiente interessante para as pessoas se expressarem e trocarem ideias. A circulação do conteúdo entre pessoas cria um senso de confiança no formato. Nossa mente passa a perceber aquele formato como algo bom. Depois, a plataforma começa a privilegiar conteúdo patrocinado ou perfis de empresas, marcas e influencers, deixando o conteúdo de usuários em segundo plano e se aproveitando da confiança gerada no primeiro ciclo.
O Substack ainda não está na fase de privilegiar conteúdo patrocinado. Mas ele já tem um aplicativo próprio, um chat, uma ferramenta de compartilhamento de notas curtas (o Notes) e um sistema de gratificação baseado em curtidas. Nessa linha, ele já colocou as pessoas que escrevem na arena da competição.
De 0 a 500 assinantes
(E de 500 para 1000, de 1000 para o infinito…)
Estamos meio viciados em comparação. Muita gente me escreve para perguntar sobre como crescer a base de assinantes por aqui. Sinto uma certa agonia nessa pergunta, ela me dá a certeza de que estamos entrando de novo na lógica dos números. Mas não dá para culpar as pessoas por quererem ser lidas. No caso do Substack, eu mesma vim para cá (em agosto de 2021) exatamente porque queria expandir meu público leitor sem precisar adotar uma postura de influencer em alguma rede social. Também porque as newsletters não tinham contagem de likes na época. E o número de assinantes sempre foi informação privada.
As alternativas para quem quer fugir da internet e ao mesmo tempo ser lida são raríssimas. A menos que você já seja uma pessoa conhecida muito antes das redes sociais — eu exponho brevemente essa questão no texto “sair do instagram é um luxo”.
Com décadas de internet, hoje em dia dá para esperar que qualquer plataforma vai entrar, em algum momento, na lógica da quantificação. Não porque as pessoas por trás delas são, individualmente, malvadas. Mas porque qualquer plataforma digital custa caro para ser mantida. Para manter projetos no ar, é necessário dinheiro. Para ter dinheiro é preciso investimento e para ter investimento é preciso mostrar… números.
Não existe democracia na internet
A maioria das pessoas com números altíssimos de assinantes aqui no Substack (principalmente com poucos meses de publicação) já tinha um certo alcance nas redes sociais antes, seja por um projeto criativo anterior, seja porque trabalhou em algum grande veículo de comunicação no passado etc. Também tem o caso das pessoas que já são autores ou jornalistas consagrados há um bom tempo na praça. Influencers de redes sociais que criam uma newsletter aqui para estabelecer um novo tipo de contato com seu público. Recentemente topei com a newsletter da Laurinha Lero, uma personagem de podcast de comédia. Ela chegou aqui em maio deste ano e já tem 10 mil assinantes.
Se eu fosse me comparar com o sucesso dela, eu entraria em depressão. Eu, que estou aqui há dois anos, publicando no mínimo um texto por semana, com conteúdo pesquisado, pensado, trabalhado, revisado. Mas eu não tenho nada a ver com a Laurinha Lero — uma personagem fictícia, de um podcast de comédia que é sucesso em todos os lugares possíveis. Meu texto também não tem nada a ver com o dela. Não faria sentido nenhum fazer uma comparação entre as nossas newsletters.
Eu sei que é difícil, especialmente para quem está começando, lidar com a questão dos números. O mundo vai continuar privilegiando pessoas diferentes, por motivos diferentes. Sem contar que cada um de nós está em momentos distintos de carreira e de vida, além de termos objetivos diferentes com as newsletters. Se eu fosse escolher um conselho para dar nesse quesito seria: antes de se comparar com qualquer pessoa, procure descobrir sobre a trajetória dela. E então volte-se para traçar a sua própria. Escreva você mesma a sua história.
O importante é ser você
Mesmo que seja estranho, seja você
Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro
- letra da música Máscara, da Pitty.
Pergunta: é possível que nossa geração saia dessa lógica competitiva? Se sim, como?
Semana que vem, prometo ser leve. Vamos conversar algo mais ameno, estou precisando.
Oi, mãe, tô na gringa!
A jornalista Nathália Pandeló escreveu uma matéria em inglês para o Inbox Collective sobre a explosão de newsletters no Brasil, onde Gaía Passarelli e eu demos a graça. E ela brilhou demais na entrevista! Acho que vale MUITO a pena ler, mesmo que você coloque no Google Tradutor. Tem uma perspectiva e uma pesquisa que eu não vi ainda em nenhuma reportagem sobre o tema no Brasil. Obrigada por esse texto, Nathália!
Vem aí
A última edição de julho desta newsletter aqui vai trazer novidades! Entre elas, uma oficina de escrita e de publicação online, onde eu vou dividir com vocês tudo o que eu aprendi nesses mais de 10 anos de estudos intensos sobre literatura, internet e escrita (não)criativa.
Se você tem qualquer dúvida sobre esse “vem aí”, manda um email para mim! É só responder essa newsletter direto pela sua caixa de entrada.
Satélite de recomendações
Essa edição da Texto sobre tela: Design e política.
"Poderíamos usar o tempo e energia que gastamos nos cancelando em timelines pra debater temas urgentes. Como criar aplicativos e interfaces que não sejam baseados em manipulação e compulsão? Como combater padrões obscuros? Como ajudar o usuário a se autorregular?"
A última newsletter da Mila Mesmo, sobre a Concha Acústica de Salvador e acessibilidade: A Concha não é nossa.
”E essa é a ideia frequente que a população tem sobre acessibilidade. Chegar a essa conclusão me entristeceu durante um momento em que eu deveria estar celebrando. Se as pessoas podem acessar algo, elas deixam de se preocupar com quem não consegue fazer o mesmo.”
Um abraço especial para os meus amigos Ana Rüsche e Thiago Ambrósio Lage, que primeiro leram o rascunho dessa edição, seguraram minha mão quando eu quis jogar o texto fora e deram a sugestão da música no final. :)
Por hoje é só.
Mas semana que vem tem mais!
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Adorei a reflexão. A competição é sempre injusta porque não partimos todos do mesmo lugar, nem fazemos as coisas com o mesmo propósito. Essa uniformização das redes sociais pode acabar com nosso propósito, se a gente não for realista. Vou deixar um trechinho de uma crônica do Paulo Mendes Campos que eu amo, chamada Para Maria das Graças, que diz:
"Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não sabe quem venceu. Se tiveres que ir a algum lugar, não te preocupes com a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste."
Uma das coisas que eu mais gosto das newsletters é poder guardar pra ler depois. Eu criei esse hábito de ir guardando, tenho até um certo apego, e depois vou me atualizando conforme tenho tempo ou necessidade. Nunca tinha reparado nisso como um hábito fora daquele que as redes sociais impuseram e meio que chega a ser até um pouco revolucionária essa liberdade de poder simplesmente escolher o melhor momento para consumir alguma coisa. Ler Newsletter é meu refúgio de certa forma, mesmo que não exista plataforma perfeita fico feliz delas existirem e possibilitarem que conteúdos inspiradores e interessantes cheguem até mim. Obrigada pelo texto, não costumo comentar, mas leio assiduamente - no meu tempo haha