A linha tênue que separa o amor-próprio do narcisismo nas redes sociais parece uma corda bamba. Uma corda onde a maioria das mulheres se vê equilibrando um corpo que nunca parece adequado à exposição. Nessa travessia, parece que saímos do nosso desejo em direção ao desejo do outro. Mas de onde vem nossa ânsia por biscoitos? Por que a validação alheia parece nos assombrar até quando não estamos nos expondo?
Postar ou não postar? Eis a questão.
Antes de publicar uma selfie, chega à cabeça um questionamento familiar: para quê? Para quem? Se a resposta for para mim mesma, não faz sentido postar a imagem. Posso guardar e olhar para ela na hora que bem entender. Não precisa postar. Quando me vejo nas fotos, entendo quem eu sou, fisicamente, e posso gostar mais de certos aspectos do que outros. E mesmo as características que detesto ainda formam o conjunto do meu “eu” capturado em pixels. Essa sou eu e não tem muito o que fazer a respeito; melhor aprender a conviver com essa minha cara em foto.
Mas publicar a foto é colocar minha imagem no cotidiano de outras pessoas, implicando em uma dinâmica de atenção. Ainda que eu não tenha controle do que vai chamar a atenção dos outros ou de quem vai gostar de mim ou não, eu posso, sim, fazer um esforço para tentar satisfazer as expectativas alheias sobre a minha imagem através dos recursos comuns para isso: pose favorável, filtros, edições e até composições engraçadinhas com recursos espalhafatosos (orelhas de gato, língua de cachorro etc). Como aquele filtro que não esconde que é um filtro.
Amor-próprio
Diz-se que amor-próprio é gostar de si de uma forma generalizada, apesar dos pequenos detalhes que se desgosta. Desde que apareceram estrias na minha barriga, por exemplo, não consigo gostar de mim inteiramente. Por muitos anos parecia que eu era uma das poucas pessoas sem-estrias por onde andava, pois ouvi muitas variações de “nossa, você não tem estrias! que incrível” e na minha cabeça construiu-se a ideia de que não ter estrias era um valor, uma qualidade que me pertencia. Poderia até ser gorda, mas pelo menos não tinha estrias. Olha só. Minha mãe, sempre crítica a respeito do meu peso durante minha adolescência, elogiava minha pele imaculada. Depois de anos engordando e emagrecendo sucessivamente, envelhecendo e vivendo minha vida, as estrias surgiram. Não há necessidade de encontrar explicações para o seu surgimento, mas a primeira reação da gente é encontrar motivos. Explicações. Buscar controle onde não há controle.
O corpo é rebelde. E o amor-próprio também. Parece errado não ter amor-próprio suficiente, parece errado não mostrar para os outros que amo meu corpo acima de tudo, apesar de não ser padrão, apesar de não ser magra. Parece errado não esfregar minhas pelancas na cara das pessoas como quem diz “olha aqui para mim e meu amor-próprio”. É como se faltasse algo nesse silêncio.
Vivemos em uma cidade de bytes. O nosso eu-digital é formado pelas personas que sustentamos nos becos e vielas desta metrópole. É claro que é normal sentir-se uma “pessoa errada”, como se fosse um caso de “falta de amor-próprio” quando não seguimos a tendência, pois assistimos dia após dia a outras pessoas-digitais publicando retratos de uma autoestima elevada, formando padrões novos de manifestação da existência. A sensação é que, para ser uma cidadã desta vila, é necessário adotar o comportamento das outras pessoas que moram nela.
Somos seres sociais. E tendemos a querer imitar uns aos outros.
Também tenho a impressão que estamos todas nessa bad trip juntas, porém, cada uma sozinha no seu canto. No final do dia, eu duvido que qualquer pessoa além de mim mesma esteja questionando se preciso me expor para ratificar que tenho mesmo uma boa autoestima.
Narcisismo
“I need my golden crown of sorrow, my bloody sword to swing
My empty halls to echo with grand self-mythology”1
Trecho da música King, da banda Florence and the Machine.
A definição clássica do narcisista é aquele que se apaixona por si mesmo. Na teoria, o narcisismo seria o contrário do amor-próprio. Se este faz com que goste-se de si, mesmo com as falhas, o narcisista é incapaz de enxergar as próprias imperfeições. Para a pessoa narcisista, ela é absolutamente bela e sem defeitos.
Estou lendo Dom Quixote pela primeira vez, para uma disciplina que estou cursando na universidade. Em muitas ocasiões da leitura, ele me parece ser uma personificação perfeita da noção mais atual do que é o narcisista. Alguém que adota uma fantasia própria, uma mitologia pessoal, e eleva essa mitologia ao mundo externo. Age como se todo o resto fizesse parte da sua fantasia, como se o mundo fosse o mundo de sua imaginação. O narcisista impõe sua mitologia pessoal sobre os outros. E os outros que lutem.
Todo mundo se sente meio desconfortável lidando com narcisismo alheio, por isso rola um medo justificado de parecer narcisista. Cruzar a fronteira que leva a esse excesso de si mesma é o risco de impor nosso eu-digital de modo inconveniente. Ou presunçoso. Um risco que tem mais a ver com medo de estarmos erradas, ou com o que os outros vão pensar do que um medo real de ser narcisista.
Existir é ser percebido
A frase mais famosa de René Descartes é a desgastada “penso, logo, existo”, descrevendo o fato irrefutável de que podemos duvidar da existência de qualquer coisa, menos da gente mesmo, pois temos a capacidade de pensar. Se pensamos, se somos capazes de formular ideias e raciocínios, logo, nossa existência é inquestionável. Pensar é existir. Já o irlandês George Berkeley, que nasceu cem anos depois de Descartes, é conhecido pelo “existir é ser percebido”, que tem tudo a ver com o outro. E com nosso questionamento inicial: postar ou não postar?
No seu livro Três diálogos entre Hylas e Philonous, Hylas (do grego, “hylle”; matéria) diz que “existir é uma coisa e ser percebido é outra”. Nesta obra, Berkeley vai expor o conceito da tal realidade perceptiva, onde os dois personagens do livro discutem se o calor existe se não houver ninguém lá para senti-lo. É mais ou menos o que fazemos nas redes sociais hoje em dia. Só é real para gente aquilo que podemos ver.
Passar recibo
Nas últimas 2 semanas, saí com grupos de pessoas diferentes todos os dias. Tirei muitas fotos, mas não postei nenhuma em redes sociais. Hoje, quando finalmente abri o instagram para dar uma olhada no que anda rolando na vida alheia, fiquei me perguntando porque não postei nenhuma das fotos que tirei com essa tonelada de amigos com quem amei dividir meu tempo nos últimos dias. Parece que se eu não passei o recibo nas redes, não aconteceu.
Estranho, né? É meio que a mesma lógica das pessoas que descobrem novos hobbies e imediatamente criam contas em redes sociais para compartilhar coisas sobre aquilo. Tenho a sensação de que há um sentimento de “passar recibo” online. Pics or it didn’t happen.
Bom. Penso que há dias de René Descartes e outros de George Berkeley.
Há dias de amor próprio e há dias de narcisismo.
Vamos andando nessa corda.
Ps: o agito dos últimos dias, aliado com trabalho e universidade, me deixou mentalmente acabada. Perdão pelo texto doido, a possível falta de revisão… estou com a impressão de que digito aos garranchos neste domingo chuvoso.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Eu preciso da minha coroa de sofrimento, minha espada ensanguentada a balançar
Para em meus salões vazios ecoar com uma gloriosa mitologia pessoal
Equilibrar-se nessa corda talvez seja o que nos mantenha em movimento. Em busca de sermos cada vez mais nós mesmos.
"Nossa mente e nosso coração estão abarrotados de gente estranha", essa frase me capturou! fiquei pensando no tanto de espaço interno pode ser aberto se a gente apertar o botão do "let go" desses desconhecidos em nós. Obrigada pela reflexão! adorei ler vc!