Aprender a ser livre na era da autovigilância
Ou: por que eu parei de falar sobre métodos de organização pessoal por aqui
Em novembro passado, finalmente me rendi àquelas pulseiras com conexão Bluetooth que registram quantos passos a gente dá durante o dia. Comprei uma Mi Band baratinha da Xiaomi. Meu objetivo era o mais odioso possível: bater 12 mil passos por dia, para conseguir o bendito déficit calórico necessário para perder os quilos que ganhei durante a pandemia, sem precisar apelar para dietas radicais — que provavelmente me fariam perder peso rápido, mas me fariam uma pessoa completamente miserável por uns dois ou três meses.
Acredite: o mundo não precisa do meu eu-miserável por mais do que as 48 horas obrigatórias de tpm em que é impossível evitá-lo todo mês.
Hoje, mais de 6 meses depois, tem dias em que faço questão de sair de casa sem a pulseira maldita. Sinto como se o número de passos na telinha fosse um chefe controlador, medindo meus passos enquanto faço exercício, vou no mercado, me divirto com meus amigos ou vou ao bar. Até dentro de casa meus passos já foram medidos — aprendi que em um dia inteiro dentro do apartamento, eu posso fazer até uns 1500 passos sem pensar muito, só fazendo coisas básicas do dia, indo na cozinha passar café e voltando pro escritório.
Durante esse tempo todo eu aprendi a odiar a pulseira contadora de passos.
E como consequência direta, aprendi a odiar também minha obsessão com listas — assunto que originou e deu nome a essa newsletter. Sim, Segredos em Órbita nasce do meu problema em admitir que sou (era?) obcecada com o conceito de listas. E esse assunto tem tudo a ver com um dos grandes zeitgeists do nosso tempo: a autovigilância.
A busca pelo controle. Ou: autocontrole.
A origem
O povo indígena mbyá tem uma relação interessante com as palavras. Em um dos seus cantos sagrados, Ayvu Rapta (A fonte da fala), Ñamandu cria a palavra (a fala) antes mesmo de criar os seres que irão incorporar o seu uso. Diz-se que na cerimônia de batismo dos mbyá, quando a pessoa escolhe um nome, o corpo dela senta na palavra
. Para os mbyá, as palavras existem antes que a gente atribua a elas seu significado. Elas são espíritos esperando para se manifestarem quando necessário.Esse conceito parece distante demais do modo como nós, brasileiros socializados em português, no ambiente urbano, aprendemos como as palavras se formam. Primeiro você tem um objeto concreto, por exempĺo, e então você dá nome a ele. Existir para então ter um nome. Eu precisei nascer para que então meu pai escolhesse meu nome numa lista de nomes de bebê pregada na parede do cartório onde fui registrada. Mas veja bem: meu nome já existia antes de eu sequer ter nascido.
Isso me lembra o tempo em que eu era adolescente e a gente só poderia ser um ou dois de uma lista muito parecida com essa aqui: pagodeiro, funkeiro, metaleiro, emo, maconheiro, baladeiro, nerd, cheiroso, fedorento, atlético, punk rocker, skatista, extrovertido, introvertido, rico, pobre, muito pobre, bom em matemática, bom em português ou bom em educação física. Por um bom tempo eu escolhi o combo metaleira-introvertida, mas foi uma escolha bem ruim. Eu não pegava ninguém e só podia conversar sobre bandas de metal (jamais poderia mencionar que eu também adorava ouvir Legião Urbana, Furacão 2000 e Axé Bahia). Sem contar que eu era boa em matemática, português AND educação física; mas nem sempre era boa em todos eles juntos. Sem querer, cometia crimes contra a sociedade o tempo todo. Viver parecia complicadíssimo.
O caso é que, querendo ou não, nascemos no meio de outros seres humanos que já estão escrevendo boa parte da nossa história antes da gente sequer existir. É esperado que cada um de nós encaixe-se nas palavras que vagam por aí à nossa disposição. Como uma apropriação semântica meio natural, meio orgânica.
Mas o que diabos isso tem a ver com vigilância?
Internet
Com a internet no nosso bolso 24h por dia, os lifestyles que aparecem na timeline são muito parecidos com essas tribos dos anos 90 e 2000. A gente diz que superou essa fase, mas na real, me parece que o Instagram e outras redes, que definem como a gente convive nessa aldeia global hiperconectada, vieram para afunilar ainda mais grupos e subgrupos, formando as famosas bolhas. Se antes a gente criava um perfil ali para buscar conexão com nossos amigos, hoje a gente está aqui também para ler conteúdo hiper-especializado, muitas vezes enxergando as outras pessoas não como pessoas, com suas particularidades e infinitas possibilidades de vivência, mas como centralizações de um único tema. É aquele velho mote: as marcas parecem pessoas e as pessoas parecem marcas.
Parece que essa hiper-especialização de conteúdos está ali para formar quem a gente quer ser. Buscamos padrões, dicas e definições para tentarmos ser a pessoa que idealizamos. Como se ser fosse uma busca eterna, e não apenas o ato de existir por si só.
Veja lógica no Ayvu Rapta. A gente senta na palavra que existe antes de estarmos, de fato, sendo-a. Queremos sentar em várias palavras. E para nos tornarmos essas palavras, praticamos vigilância.
Autovigilância
Bullet journal, planners, agenda do celular, Google Calendário, Mi Band, contadores de calorias, planilha de gastos, livros para ler, filmes para assistir, séries para terminar… A lista de listas é enorme. O que será esse super-autocontrole coletivo se não uma autovigilância ferrenha?
Manter o “track” sobre tudo o que fazemos e consumimos é um jeito de nos enganar sobre o controle em um mundo onde não temos controle de nada. A democracia não resolveu magicamente os problemas do nosso mundo da noite para o dia, mas o modo em que vivemos nossas rotinas nos faz esperar por soluções rápidas para tudo. Respostas prontas que cabem em um quadrado de texto bem distribuído em uma imagem do Insta, um vídeo de 1 minuto no TikTok ou um texto de 480 caracteres no Twitter.
Em agosto de 2021, quando lancei essa newsletter, um dos assuntos que eu mais queria abordar era métodos de organização pessoal. Um assunto que me interessa muito, há mais de uma década. Mas depois de uns dois ou três textos abordando meu método favorito, o Bullet Journal, não encontrei mais tesão em compartilhar qualquer coisa sobre isso. Escrevi vários rascunhos, mas enquanto os escrevia, fui percebendo que surgiam mais questionamentos do que respostas para quem está querendo aprender a organizar a vida. Senti que as dicas básicas que eu passei naqueles primeiros textos eram tudo o que eu podia ensinar para alguém de modo prático. Depois dali, me sobraram apenas perguntas:
Qual é o tesão nessa autovigilância? O que estamos buscando com essa autovigilância?
Parece que há uma linha tênue entre ser um adulto minimamente funcional e simplesmente se tornar um vilão de si mesmo.
E tudo começou com a maldita Mi Band da Xiaomi no meu pulso.
Aprender a ser livre
Cada pessoa tem uma definição diferente de liberdade, o que complica as coisas quando estamos dialogando sobre o tema. No fim, ninguém é livre de fato, como uma partícula de poeira vagando no vazio cheio do espaço sideral. Ainda mais nós, humanos, presos à atmosfera terrestre (não temos outras opções sobre isso até agora, temos?). Presos aos nossos corpos e à sociedade onde vivemos, a liberdade parece se resumir a ter uma certa autonomia nas nossas escolhas.
Será que o jeito que praticamos autovigilância nos permite ser livres? E será que praticar autovigilância é um jeito de ser livre ou de exercer nossa liberdade?
Divago..
É domingo, afinal de contas.
O texto acima foi revisado pela minha querida amiga Leticia Dáquer, tradutora, blogueira e podcaster no incrível Pistolando Podcast. Chamem a Let para revisar e traduzir os textos de vocês!
Let, obrigada ♥️
Satélite de recomendações
Livro
Aprender a rezar na era da técnica, do português Gonçalo Tavares, foi a inspiração para o título do texto de hoje.
“Obcecado pela figura paterna, o médico Lenz Buchmann toma providências para se tornar o substituto do patriarca. Depois de adquirir grande reconhecimento como médico, percebe que precisa aumentar o alcance de sua competência. No velório do seu irmão mais velho, ele toma consciência de que sua técnica deve ser usada para curar não apenas indivíduos, mas também a cidade. Ele ingressa no Partido e se torna homem de confiança do candidato à presidência.” Parte da sinopse da editora do livro no Brasil.
A prosa do Tavares é das coisas mais lindas de se ler.
Newsletter
A .flows magazine, da Luciana Andrade, apareceu para mim há poucos dias, mas já estou maratonando. Confere lá.
“palavras assumem importância e nunca se escreveu tanto, mas parece que nunca se leu tão pouco. a gente está num buraco, numa confusão, é pau, é pedra, tudo é uma loucura e um absurdo novo, diário.” .palavras
Vem aí
No último mês chegaram mais de 50 pessoas por aqui. Estou feliz de ver que os últimos textos atraíram tanta gente nova, gente que vem de bolhas mais distantes da internet. Se não fosse por esta newsletter, eu jamais teria a chance de me comunicar com vocês - e por isso estou preparando um especial “Blog ou newsletter?” para semana que vem, porque eu sei que boa parte de quem me lê também escreve.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Fonte: CEREMONIA RITUAL DE BAUTISMO (MITÁ ERY) EN LA ÉTNIA MBYÁ-GUARANÍ DE AMÉRICA DEL SUR. Zulma M. Pittau Sevilla.
Universidad de Extremadura (España)
Que texto foda! Identificação total…sentindo o espírito do tempo! 👏👏
Tenho uma Mi Band para monitorar meu sono. Até que me dou bem com ela, mas o bullet é algo que já não uso há algum tempo.