Da palavra ao abismo
Sobre línguas estrangeiras e linguística nos tempos de inteligência artificial
Tempo de leitura: 10 minutos
O homem sentou à nossa mesa, bem na minha frente, e se apresentou. Seu nome era Cliff. A palavra cliff, do inglês, significa penhasco, precipício, despinhadeiro… abismo. Eu sabia que era usada também como nome próprio, claro, é muito comum em países de língua anglófona. Mas no segundo em que o som da boca de Cliff navegou ao meu ouvido, eu não escutei o nome, mas um dos sentidos amplos da palavra. Olá, eu sou o Abismo. Enxerguei a queda profunda nos olhos negros do estrangeiro.
Nunca mais o vi. Mas eu fiquei presa na sensação que o nome do homem me causou por dias. Olá, eu sou o Abismo. Além da experiência quase mística, daquelas que a língua escrita me parece muito pouco para explicar, eu mesma andava em um estado de hiperfoco estudando linguística. Mais precisamente o tópico da semântica, aquele que estuda o sentido das palavras, em que aprendemos o famoso “triângulo semântico”. Sense, referent, and symbol - como aprendi com o professor americano1. Significado, referente e significante. O primeiro, significado, é exatamente aquilo que está dentro da nossa mente. Quando eu penso em um sapo, por exemplo, a imagem do animal aparece, mesmo que eu não esteja vendo-o. Eu o enxergo e às vezes o escuto e sinto seu cheiro - dentro da cabeça. A palavra escrita “sapo” é um símbolo gráfico (um significante!), um desenho, que usamos para nos referir a esse animal. Para nós, que falamos português. Para quem fala inglês, o significante é toad, e para quem fala as duas línguas, existem dois significantes para a mesma coisa. Para mim, que vivo diariamente dividida em três línguas, aquela imagem, cheiro e som tem três símbolos diferentes para representar o mesmo bicho. Tem dias que sinto como se estivesse gastando meu cérebro à toa vivendo desse jeito. Como se eu tivesse, só para mim, três escovas de dentes em uso no armário do banheiro. Para quê tudo isso? Eu me pergunto com certa frequência.
(O referente é o sapo. O bicho real oficial. E a coisa mais engraçada disso tudo é que um sapo provavelmente nem sabe que se chama sapo. Ele vive sua vida ali de boas, independente do ser humano o chamar de sapo, toad ou groda, em sueco. Um sapo será sempre um sapo, independente do seu nome.)
Esses tempos um professor, britânico dos pés à cabeça, um cara que foi jovem adulto na época do governo Thatcher, me chamou de canto para dar uma palavrinha. Ele disse que meu último ensaio, para uma disciplina de literatura, parecia o ChatGPT. Eu não fui a única aluna chamada à salinha, mas diferente de mim, meus colegas (bem mais jovens) suaram na base e ficaram mudos. Eu não. Eu não ia ficar quieta. Não entendi aquilo como uma acusação, mas uma comparação mesmo. Com muita calma, perguntei para o professor sobre o que fazia-o tecer esse comentário tão específico. Dei espaço para o homem pensar. Observei os lábios se pressionarem, escondendo a fileira de dentes protuberantes, a mão de dedos longos alisar os selvagens cabelos brancos e o pensamento tornar-se hesitante. Depois de um longo minuto, ele falou. Apontou que a introdução do meu texto estava “muito acadêmica”. Eu tomei como um elogio, depois de quase dois anos fazendo disciplinas de escrita acadêmica, explorando livros sobre como escrever textos acadêmicos e lendo muitos artigos, eu estava intencionalmente escrevendo de forma acadêmica. Então expliquei, como se fosse para uma criança de 5 anos, como as ferramentas de inteligência artificial funcionam. Como elas repetem formatos de discursos criados pela humanidade, discursos esses que são repetidos por nós humanos também. Pedi para que ele fosse mais explícito sobre o tipo de linguagem esperada dos nossos textos, já que estamos em uma universidade, é óbvio que vamos escrever em linguagem acadêmica. A menos que nos avisem para fazer o contrário. Eu imagino que se a situação tivesse acontecido há cinco ou seis anos, eu teria agido como os colegas. Teria engolido o sapo.
O labirinto da língua
Sentir a palavra cliff como abismo, quando ela foi me apresentada como nome próprio, foi a prova de que o inglês está me caindo numa chave de compreensão além da fluência intelectual. Está presente no meu core, em uma região de afetos onde antes cabia apenas o português. Mesmo sendo brasileira e morando na Suécia, o inglês é minha língua de trabalho e estudos, eu a vejo como uma ferramenta. Aprendi inglês depois de adulta, então quando situações como essa acontecem, eu me surpreendo. Assim como me surpreendo quando sou celebrada por qualquer tipo de fluidez. Mas não deveria. Inglês é uma língua gramaticalmente muito simples. Quem conhece bem qualquer língua latina está mil anos-luz na frente de qualquer anglófono em matérias de compreensão e conotação. Quando a palavra cliff constroi um abismo aos meus pés, eu olho para o fundo escuro de seu chão invisível e entendo.
Aprender uma língua estrangeira é cair em queda livre. Há de se preparar para o impacto do invisível nos aguardando lá embaixo. Às vezes é um chão duro e seco, onde rachamos o crânio e morremos na hora. Outra vezes, é um lago profundo cujas águas nos salvam em um abraço. Um abraço sufocante, mas ainda sim, um abraço. Com o tempo, aprendemos a cair graciosamente. Como um atleta de salto em água.
“Nós deciframos emoções e outros fenômenos invisíveis com palavras, mas palavras não são verdadeiras pela forma ou pela força do invisível, do etéreo, do enérgico. Palavras que descrevem sentimentos são simplesmente uma tentativa — uma tentativa de descrever o que não é quantificável, sensações sentidas.
Como em qualquer tradução, algumas se perdem — geralmente um monte delas. Veja você, o invisível fala através de símbolos e sensações. Somos tradutores imperfeitos dando o nosso melhor.”
(tradução minha de um trecho de Flawed translators: notes on the invisible, da poeta estadunidense Gabi Abrão)
Toda palavra é uma tentativa de descrever algo que alguém sentiu ou viveu. Nem sempre há correspondente direto para certos termos em outras línguas2. E alguns idiomas parecem ter palavras demais; descrevem coisas que nunca vi ou senti até aprender como chamá-las. Por isso palavras sem tradução direta são muito populares em posts de redes sociais. Porque nos fazem sentir um pouco menos ignorantes sobre o resto do mundo. Só que essas palavras pouco informam sobre o idioma, mas contam muito sobre a cultura. Quem sabe por isso eu me sinta sempre limitada pelos posts de redes sociais, tão econômicos em matéria de contexto. Todas as línguas são tentativas de descrever o mundo onde elas estão. Logo, a história por trás de uma palavra nunca é simples.
E por isso mesmo, ao se aventurar por um novo idioma, a sensação mais frequente é de limitação. É como se tivéssemos que atravessar um centro urbano labiríntico. A pé. Sem garrafa de água, sem celular e sem mapa. Mas de tanto ir e vir pelas ruas estreitas, vamos aprendendo novas rotas, lembrando dos atalhos, e de repente essa cidade já não é limite. É expansão. É a chave para acessar um mundo novo.
Vulnerabilidade
O português é um conjunto invisível de escudo, armadura e espada. Você não está vendo, mas está usando todo esse aparato enquanto vive em português. Arriscar qualquer outra língua é se despir desse aparato e ficar vulnerável. Dependendo da distância do idioma, é a sensação de estar nu. (Nada como estar nua na sauna com gente sueca, tentando falar sueco.)
Porém, a vulnerabilidade também é um super-poder. Não um poder externo, que a gente usa sobre as pessoas e o mundo. Mas um poder interno, que nos faz pessoas mais atentas, mais frágeis e, por isso mesmo, mais maleáveis e dispostas a nascer em um lugar novo, abrir-se para criar uma nova armadura, um novo escudo e uma nova espada. Talvez, em outro idioma, a gente prefira construir um arco e flecha. Ou um violão.
Inteligência artificial
Quando o trabalho de uma pessoa é equiparado ao de uma inteligência artificial, nós estamos comparando um sapo de armadura com um robô equipado com armas de fogo. É um Davi e Golias dos tempos modernos. Ignorando a potência da vulnerabilidade, valoriza-se a precisão, a previsibilidade e a força bruta. O ChatGPT é uma ferramenta dessas, de força bruta, que se apropria do trabalho dos seres humanos. Isso não quer dizer que ele faça qualquer coisa que nós, humanos, já não fazemos há séculos. Nós também somos brutos. E nós também bebemos da fonte de quem veio antes.
Não foi à toa que meu professor me comparou ao ChatGPT. Pois mesmo que eu não tenha usado-o, eu desfrutei da mesma mecânica da IA. Aprendi com o texto acadêmico de outras pessoas como escrever o meu próprio. Não há nada de errado ou criminoso nisso, eu não inventei esse método. Eu comecei, por exemplo, a aprender a escrever crônicas na adolescência lendo Martha Medeiros. Eu imitava a linguagem dela para escrever minhas próprias ideias. Copiar é uma prática comum quando estamos aprendendo algo novo — e hoje não há quase nada de familiar entre meus textos e os de Martha —, mas talvez o medo que as pessoas tem da IA venha dessa consciência. Da certeza de que a IA agiliza um processo que nós fazemos desde sempre.
Entretanto, diferente de nós, a IA não opera dentro do triângulo semântico. Sentido, símbolo e referente não são parte do seu processo. Apenas o símbolo existe na operação da máquina e aí está a diferença. A máquina pode repetir padrões e substituir palavras por sinônimos, de acordo com o gosto do freguês. Pode responder perguntas simples e complexas, muitas vezes dando respostas erradas, já que a máquina não distingue o que é verdade do que é falso. Se eu vestir meu chapéu de programadora, posso alongar a conversa e mencionar que quase qualquer programa, qualquer código, é uma operação de entrada e saída de símbolos. A IA é um programa, nunca esqueça disso. Um programa não tem sentimentos, nem sensações… e nem sotaque. Assim como a palavra escrita, que tem menos sotaque e menos hesitação do que a palavra falada.
Quando eu falo em outras línguas, meu sotaque é fortíssimo. Eu sou super consciente disso; sou capaz de ouvir as nuances, notar as falhas da minha própria pronúncia e percebo deslizes gramaticais no ato. Suspeitei que talvez o professor tenha achado que uma pessoa com o sotaque tão forte seria incapaz de escrever aquele texto, por isso a menção ao ChatGPT. Minha suspeita se confirmou nos dias seguintes. Felizmente, com o tempo, o preconceito linguístico se desfez. Fiquei feliz de não ter respondido ao episódio com rapidez e indignação, mesmo que eu tivesse todo o direito. Foi uma situação muito particular, mas não foi a primeira e tampouco será a última. Sobrevivemos em um mundo grande demais, cheio de sapos, abismos e triângulos.
De minha parte, me viro como posso - armadura, escudo e caneta. Cada um sabe dos itens que tem.
Breve recado para quem está aprendendo uma língua nova
É difícil mesmo. Mas olha, saber falar mais de uma língua, no Brasil, é questão de classe. Ter consciência disso me ajuda muito, apesar de ser um pouco complexo. Como um dia disse o Chorão, “não tão complicado demais, mas nem tão simples assim”. De um lado, há famílias mais recentes de imigrantes em que o bilinguismo vem de casa. Por outro lado, na maioria das cidades brasileiras, falar outra língua é sinal de que a pessoa teve acesso a uma educação privada de qualidade. Menciono esse segundo aspecto porque ele estabelece uma relação entre classe social e fluência. A exposição a um idioma novo depende do quanto acesso a ele nós temos. E da influência das pessoas próximas no nosso processo de aprendizado.
Eu adoraria que, no passado, alguém tivesse me dito que tudo bem errar. Que cometer gafes e ter dificuldades persistentes também são partes do processo de aprendizado. Acho que para pessoas como eu, provenientes do ensino público e que não tiveram nenhuma convivência com adultos que conhecessem outras línguas, é necessário um passo a mais. Precisamos remover a aura de inacessibilidade da língua estrangeira. Lembrar que ela é nada mais do que um instrumento, como um carro, um computador ou um martelo. A função da língua é nos servir. Aprender um idioma também é direito nosso, não é algo impossível ou inatingível; é algo que pode sim fazer parte da nossa vida.
Além disso, falar outra língua não é atestado de inteligência e há muita gente babaca no mundo que fala duas, três, quatro línguas etc. Pensar nisso me ajuda a reduzir a tensão quando eu me sinto mal. E faz crescer minha sensação de apropriação e curiosidade - muito melhores do que ficar achando que não sou capaz, ou que isso tudo pertence só àqueles que nasceram com o acesso.
Línguas não são barreiras. Elas são pontes! Devem ser atravessadas. ✴️
Mais textos daqui
Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
🔭
Há linguistas que usam outras estruturas e teorias, mas deixo essa discussão para outro texto.
Exemplos de palavras quase intraduzíveis em português: dengo, chamego, cafuné, malandragem, tesão.
Nossa, amei cada palavra desse texto, Nessa! Sempre excelente, com observações precisas, tecendo associações entre coisas não tão óbvias. A sua é sem dúvida umas das minhas newsletters preferidas!
Há textos que "lavam nossa alma" por muitas razões: por pensarmos de modo semelhante; por não termos tido tempo e oportunidade de expor ideias tal e qual; por vermos que alguém, finalmente, conseguiu amplificar o que eu sabia e sentia com palavras mais potentes do que a minha...
Língua é só meio, recurso. Adorei o "martelo". Por Thor, você matou muitos preconceitos idiotas e excludentes, daqueles que, no Brasil, veem como "distinção" e "sinal de classe" (em muitos sentidos) o aprendizado de uma língua estrangeira...
Que nos livremos do nosso complexo de vira-lata também neste sentido. Temos, aliás, muito mais "capacidade instalada" para aprender línguas outras que outros estrangeiros. É só nos libertarmos de alguns tolos condicionamentos sociais que só nos atordoam e apequenam!