Bullet Journal & a era do scroll infinito
Organização sem fru-fru & listas infinitas na era da internet
O ato contínuo de olhar para a tela do celular só surgiu porque inventaram o conceito de scroll infinito.
Junto com a tática de alimentar sua lista de conteúdo com sugestões, sua atenção é capturada com uma eficiência monstruosa. Antes, essas sugestões apareciam nos apps e sites quando o conteúdo que você assinava (ou seguia) terminava. Hoje em dia, as sugestões são inseridas no meio da lista que você montou e mais: em alguns apps (como o Tik Tok e o Pinterest) essas listas podem ser inteiramente criadas para você. Sem que você nem mesmo precise ir atrás do conteúdo.
E funcionam, porque a engrenagem por trás da tela sabe ler os caminhos da sua atenção e entender com muita precisão quem você é, o que gosta e o que procura.
A engrenagem não só mapeia seu perfil de usuário: ela agora molda quem você é.
Nos tornamos, juntos, uma criação coletiva das telas.
Scroll infinito e listas intermináveis
Quando eu falo de scroll infinito como conceito, eu não estou inventando moda. Há 15 anos atrás, um cara criou esse modo de desenhar interfaces. Ele é Aza Raskin, um matemático e designer da Califórnia, que hoje em dia se arrepende de sua invenção. De início, o conceito de scroll infinito se limitava a uma paginação sem páginas: ao invés de clicar “próxima” ou “anterior”, o usuário apenas rolava a mesma tela mais e mais para baixo enquanto a página era carregada automaticamente. Uma busca abissal por conteúdo, feita de maneira automática, que funciona até hoje.
Podemos dizer também que é uma regressão do livro ao rolo de pergaminho, mas esse rolo que temos hoje guarda muito mais conteúdo do que os da antiguidade. O conceito se expande para outros meios: quando terminamos de ouvir um álbum de música ou playlist no Spotify, o aplicativo automaticamente começa a tocar outras músicas de artistas relacionados, sem que a gente se dê conta de que o álbum que começamos a ouvir acabou. O mesmo acontece no Youtube, um vídeo começa cerca de dez segundos após o outro, a menos que a gente tome a iniciativa de pausar. É como se o consumo do conteúdo fosse compulsório, passivo e infinito. Mas uma coisa é certa: o conteúdo que vemos é, sim, finito. Não há controvérsias sobre isso. O problema é que sozinhos nunca conseguiremos chegar a seu final; precisamos de meios maiores para entender a dimensão do labirinto em que nos encontramos.
Não é bem uma novidade. Na história da arte, podemos facilmente apontar a ideia de infinito em um conjunto de coisas finitas em muitas obras. É um tipo de impressão que nossa mente capta há muito tempo. Até mesmo em fotografia podemos facilmente identificar o efeito.
Como uma foto aérea de cidade. O número sem-fim de prédios e pessoas não parece um infinito? Ainda assim, sabemos que há um número finito de prédios e pessoas nessa cidade. Mas a impressão que essa coleção de itens (lista) traz é de uma grandeza sem limites.
Quando a web traz o infinito para a tela dos nossos celulares, é esse conceito quase labiríntico que se traduz para nossas interações. A cidade infinita que contemplamos é nosso “espaço virtual”.
A ideia subversiva que essa maneira de consumir deposita no nosso inconsciente é de que existe um infinito a ser abocanhado pelos nossos olhos. Não é surpresa vermos a famosa FOMO (do inglês, fear of missing out, o medo de estar perdendo o que acontece nas telas quando não estamos de olho nelas) surgir como um tipo de ansiedade muito comum hoje. A sociedade do consumo, construída com muito ardor e carinho desde a época da revolução industrial, se adapta naturalmente à ideia de que podemos e merecemos sim ter tudo. Arrisco dizer que o conceito de possuir coisas, tão intimamente ligado a essa construção da sociedade consumista que vivemos, se estende para o que sentimos nos pertencer ao olhar para essas infinitas listas de conteúdo.
“A lista é quase um pis-aller1 e através dela transparece sempre o esquema de uma ordem possível, o desejo de dar forma. Com o mundo moderno, ao contrário, a lista é concebida pelo gosto de deformar.”
-Umberto Eco, sobre o excesso, em A Vertigem das Listas.
A novidade da década de 2020 é que essas listas são construídas para a gente, como um serviço. E assim, as empresas além de possuir nossos dados e nossa atenção, possuem o poder de definir quem nós somos.
Uma forma de resistência a essa imposição, para mim, tem se revelado através do mais inesperado modo de interagir com listas. A lista de afazeres pessoais e o prazer em ser uma pessoa funcionalmente desorganizada. Autoconhecimento pode ser um caminho sem volta.
Organização para desorganizados
Bullet Journal sem fru-fru
O diabo mora nos detalhes
Há quase duas semanas, mandei por aqui um exercício chamado Papelzinho do Diabo. Se você não leu, veja aqui.
O papelzinho serviu para a gente escrever o que precisávamos fazer e o que queríamos fazer ao longo de alguns dias. E agora vou te contar qual é o próximo passo depois desse exercício simples.
Agora nós olhamos com atenção para tudo o que escrevemos em cada Papelzinho do Diabo, analisando seu conteúdo como um todo, a partir dos itens desta outra lista (😂 desculpe):
1) Repetição. O que aparece mais de uma vez ao longo dos dias?
2) Priorização. Quais itens você fez primeiro e quais fez por último? Quais você simplesmente não fez?
3) Padrão. Você reconhece padrões entre os itens das duas listas? Quais?
Pegue suas listas do diabo e as analise a partir das 3 coisas acima. Anote tudo o que você observou.
Nota: não é um momento para se justificar ou julgar seu comportamento, produtividade ou performance. É só para OBSERVAR, ou seja, anotar fatos e conexões. Sem julgamentos.
Mas e o Bullet Journal? Nada impede que você já esteja usando o método (inclusive, se você estiver muito afim de queimar na largada ou estiver precisando muito começar, indico esse vídeo aqui). Mas o ideal, por enquanto, seria continuar com o papelzinho do diabo e transformá-lo conforme sua necessidade.
Minha proposta com a série Bullet Journal Sem Fru-Fru é olhar para como a gente funciona antes de tentar um método de organização, falhar (de novo) e desistir (de novo).
Vamos ficar com essas perguntas e essa auto-análise por hoje.
Daqui duas semanas tem mais.
Jabás e indicações
Apareci em um trabalho de conclusão do curso de Letras, da Universidade Federal de Campina Grande, como a primeira mulher do mundo (risos) a escrever uma obra que se encaixa no gênero tupinipunk. O trabalho se chama “Mulheres na terceira onda: autoria feminina nos contos de ficção científica das Revistas Trasgo e Mafagafo” e pode ser encontrado aqui.
“Um ponto que merece ser levantado é que apesar do tupinipunk ser um gênero de contestação sociopolítica, não foram encontrados registros de publicações femininas deste subgênero nem Terceira Onda ou na sua antecessora, o que torna possível definir ‘Suor e Silício na Terra da Garoa’ como o primeiro tupinipunk genuíno de autoria feminina. Obviamente que muitas mulheres escreveram histórias cyberpunk com personagens brasileiros, mas somente o conto supracitado atende os critérios do subgênero citado.“
Pois é. Eu não conhecia o gênero muito bem, só de ouvir falar, mas a Ingrid Vanessa Santos fez uma análise bem bacana sobre a minha história e algumas outras. Vale a pena conferir e prestigiar o trabalho da Ingrid e das revistas que estão mudando tanto o cenário da ficção especulativa no Brasil.
Se você curtiu o papo doido sobre listas, acho que você vai curtir o podcast Incêndio na Escrivaninha. No comando das pick-ups tem eu, Ana Rüsche e Thiago Ambrósio Lage. E o Incêndio também tem newsletter. Para assinar, é só clicar aqui.
Também quero recomendar o trabalho do autor Eugênio Bucci em seu livro A Superindústria do Imaginário, para fazer a gente pensar em alternativas para nos apropriarmos da nossa identidade e da nossa atenção novamente. Fiquem com um trechinho:
“[O] que mudou no capitalismo não tem a ver apenas com o extrativismo digital. Há algo além disso – algo mais misterioso, mais denso e mais sombrio. [...] O capitalismo dos nossos dias é um fabricante de signos e um mercador de signos – as coisas corpóreas não são mais o centro do valor.”
No mais, espero que você tenha curtido a avalanche de newsletters que chegou na caixa de entrada ontem. E para quem não entendeu porquê eu tô falando isso, dá uma olhada nessa thread de Twitter que a minha amiga Lígia Colares fez (e o pessoal se empolgou para criar várias novas newsletters para lançar na última sexta).
Na lista de newsletters da Lígia tem de tudo. É uma ótima maneira de desafiar o Algoritmo, como disse o Thiago na newsletter dele, Mércurio em Peixes.
Por hoje é só!
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
(twitter)(instagram)
ps: na próxima newsletter vai ter mais um volume do fanzine Loucura Funcional. Aguarde!
uma solução de último recurso