Burnout na era da positividade
Trabalho, disciplina e a vontade de mandar tudo para o raio que o parta
Esta edição tem uma versão narrada em áudio. Quem não curte áudio, é só ignorar esse botão de play e ir direto para o texto abaixo.
Semana passada falei de amor. Hoje falo de trabalho, no primeiro texto do trimestre abordando o tema.
Ao invés de falar sobre sobrecarga de trabalho lá no meio do ano, quando a gente já estiver esgotado, eu resolvi falar do tema já na segunda semana de janeiro que é para botar as cabeças para pensar antes que o extresse exploda na nossa cara.
Você vai ter outro burnout
Uma das consequências diretas do famoso burnout, do qual tanto falamos, é um dano físico e irreversível no cérebro. Descobri isso na sala de uma psiquiatra sueca, em uma clínica de saúde mental no centro de Estocolmo, poucos anos atrás. Aqui eles chamam essas clínicas simplesmente de rehab, como aquela música da Amy Winehouse. They tried to make me go to rehab and I said no no no. A clínica de reabilitação. Na época, o setor de RH da empresa me mandou para lá depois que um colega comunicou ao meu chefe que eu estava “com sintomas”. Qualquer pessoa pensaria que foi sorte: eles costumam treinar alguns funcionários para identificar esse tipo de problema (assim como há a brigada de incêndio, há uma espécie de brigada da saúde mental). Na primeira visita a psiquiatra, fiz um teste. Concluíram que meu caso não era tão grave a ponto de uma internação. Então, ao invés do tratamento intensivo e específico dedicado ao burnout, fui encaminhada para acompanhamento com uma psicóloga comportamental pelo próximo ano, afim de evitar um dano maior do que já estava feito.
“Os resultados da pesquisa indicam que o burnout induz mudanças nas vias neuroendócrinas [..] e alterações no tamanho e volume das estruturas cerebrais e na morfologia dos neurônios.”
- trecho do artigo Limbic brain structures and burnout, de 2018, da revista Advances in Medical Sciences (tradução minha).
Mesmo com a carga horária reduzida por indicação médica, eu continuei sofrendo de falta de vontade de trabalhar. Tudo me irritava. E nada motivava, nem mesmo uma promoção. Não era preguiça. O que eu tinha era uma não-vontade mesmo, um contra desejo. E tinha uma vergonha profunda de mim mesma por estar sentindo isso. Rolava uma auto-humilhação todos os dias quando me esforçava a levantar da cama, tomar banho, me vestir, maquiar e ir trabalhar. Era uma dor sem nome e sem forma. Eu produzia muito menos do que o esperado e vivia esquecendo tudo. Pensar doía. Ouvir os problemas dos meus amigos não me causava empatia, mas cansaço, parecia que os problemas dos outros eram automaticamente meus. Não havia discernimento. Parecia que a casca que me protegia do mundo externo tinha se desmanchado e eu estava andando por aí em carne viva.
“Pacientes de burnout também relataram ter sintomas típicos, como problemas de memória e concentração, insônia, dores difusas, fadiga física, irritabilidade, ansiedade e uma sensação de estarem emocionalmente drenados.”
- outro trecho do artigo Limbic brain structures and burnout (tradução minha).
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han conta, no livro Sociedade do Cansaço, que nossos pais viveram um mundo voltado para a disciplina, onde a obediência era a coisa mais importante. O fenômeno é mundial, mas acredito que o período de ditadura no Brasil intensificou esse estado de conformidade e subordinação na população (falo um pouco sobre isso no texto “A política do silêncio”). Diz o filósofo que tratava-se, essencialmente, de uma sociedade “determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito”. Mas seus efeitos negativos também produziram rebeldes. E se a ruptura com a disciplina foi a desobediência, os rebeldes dessa época foram marginais, inconformados, contra-lei. Qualquer um que tenha se recusado a seguir as normas. Como a resistência à ditadura, o movimento tropicalista e os estudantes gritando “abaixo a repressão” no Brasil dominado pelos militares.
Mas isso é passado. Agora, nós vivemos na sociedade do desempenho. Uma sociedade essencialmente positivista.
Hoje, o excesso de otimismo chega a ser violento. A pressão para sermos positivos é uma imposição, por isso nos sentimos saturados, pois essa imposição é exaustiva.
“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. […]
O plural do coletivo Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. […]
A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.”
- trecho do Sociedade do Cansaço.
Quando comecei a trabalhar, aos quinze anos, tinha uma força de vontade descomunal. Um desejo enorme de fazer algo de útil com a vida. Foi uma longa trajetória do meu emprego de caixa até a independência financeira num outro país, sem ter sequer diploma universitário. Quando cheguei nesse momento tão esperado, já me sentia tão livre, há tanto tempo, que mal lembrava como era ter que pedir permissão para fazer qualquer coisa. Quando lia aquela frase de encorajamento, tão comum nesses perfis de empoderamento feminino no instagram, “você tem que se permitir”, eu dava risada. Permitir mais o quê? Eu me permitia todos os dias. Mas por que de repente fiquei tão deprimida? Aquela força descomunal da juventude foi suficiente para me jogar até ali, mas depois já não havia força para nada. Eu estava exaurida.
Ter entusiasmo a vida toda é insustentável.
“O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade.”
- trecho do Sociedade do Cansaço.
Minha nova vontade, então, era trocar de posição com o cara que limpava os vidros do vigésimo quinto andar, pelo lado de fora do prédio, preso por equipamentos de rappel e um andaime móvel. Eu sentia uma inveja profunda do seu corpo banhado de sol e a tarefa mecânica que executava. Ironicamente, nós dois cuidávamos de janelas. A minha janela era uma tela de computador onde eu escrevia códigos e gerenciava um grupo de pessoas espalhadas por quatro países. A janela dele era um vidro sujo. Eu ansiava pela sujeira. Queria jogar uma xícara de café quente no computador e pular na gaiola de metal do limpador de vidros, quebrando a janela do prédio.
Faltou coragem.
Tive alta do tratamento contra burnout. Estava recuperada, era o que dizia o relatório. Porém, na penúltima sessão de terapia, ouvi uma coisa que foi explicitamente omitida do parecer final. Você vai ter um burnout de novo em cerca de dois anos, não importa quantos tratamentos você faça.
Escutar essa sentença da boca da profissional da saúde foi um divisor de águas. Se eu não estivesse pronta para ouvir, talvez fosse o fim. Mas foi libertador. Foi como se tivesse obtido passe livre para aceitar que a culpa realmente não era minha.
“O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo. Para ele, a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo. É agressor e vítima ao mesmo tempo.”
- trecho do Sociedade do Cansaço.
Uma das coisas que o Byung-Chul aponta é que, hoje em dia, nós podemos ser tudo, menos passivos. E é por isso que a psicóloga disse que eu teria outro burnout. A permanente exigência de atividade do mundo hoje é a causa dessa doença tão comum. Enquanto a lógica do mais mais mais, típica do capitalismo, perseverar, nós todos vamos ter vários burnouts. Andar na linha e seguir o sistema – como nossos pais nos ensinaram – só pode levar à estafa. Bem-vindo a sociedade do desempenho e toda sua positividade. “Trabalhe enquanto eles dormem.”
Quantos neurônios estamos dispostos a perder para pagar o preço?
Pensando junto
Não tenho uma solução final e rápida para esse problemão. Desculpa desapontar. Eu ainda estou olhando para essa questão com interesse. Mas tenho algumas pistas de projetos maiores para nós, como sociedade, sairmos dessa lama.
Ano passado eu publiquei dois textos que considero de cunho anticapitalista, mesmo que não toquem no termo diretamente. Eles trazem provocações relacionadas ao tema do texto de hoje. Confira:
Satélite de recomendações
O livro Mal-estar na civilização, de Freud. Indispensável para repensar nossa relação com trabalho. “Conhecemos, então, duas origens para o sentimento de culpa: o medo da autoridade e, depois, o medo ante o Super-eu.“
O filme Glass Onion. Infelizmente não explode o capitalismo, mas dá um final satisfatório aos seus símbolos.
A newsletter Cuca Fresca, da Cristal Muniz.
Próximo lançamento: só para assinantes
Na última edição de janeiro vai sair a primeira recompensa dos apoiadores da Segredos em Órbita.
Para apoiar meu trabalho, é só contribuir com 8 reais por mês aqui pelo substack, usando o botão ali embaixo - lembrando que essa newsletter só existe porque eu estou afastada do escritório (e do salário), enquanto busco uma maneira de não ter um segundo burnout. Enquanto isso, estudo na universidade local que, para minha sorte, é gratuita e conta com uma modesta bolsa para estudantes de graduação (que é paga por apenas 9 meses ao ano).
A recompensa será um ebook com 4 textos da newsletter em versão atualizada e revisada, mais 1 texto inédito. Os assuntos são: inveja, redes sociais e como a internet hoje é um trabalho extra para a maioria de nós.
Além do ebook, como apoiador você pode sempre votar no assunto de um dos textos para o mês seguinte e sugerir pautas.
Para apoiar, clique aqui:
O texto de hoje é o primeiro de uma série sobre trabalho.
Os outros temas desse trimestre são: amor, corpo e tecnologia.
É isso. Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de descanso.
Vanessa Guedes.
Nunca tive vontade de ler sociedade do cansaço até chegar no seu texto. Te juro. Acho que chegou o momento.
Van, sinta meu abraço depois desse texto tão intenso e importante em cada uma das frases - minha preferida é sobre o entusiasmo ser algo insustentável.
Assim como trabalhar sempre no mais alto desempenho. Burnout é um assunto sobre o qual podemos falar sobre horas, infelizmente. E é fundamental que seja percebido como uma doença coletiva, sistêmica.
Adoraria tb ter respostas, perspectivas positivas e soluções sobre esse tema, acho que o primeiro passo é esse reconhecimento. Mas parece que ainda estamos tão distantes, quando olhamos para LinkedIns, coaches e toda a estrutura econômica que se move baseada em tanta angústia.
Fico também num eterno conflito interno de que preciso construir uma relação melhor com o trabalho, mas o trabalho tb precisa mudar pra se adequar ao que buscamos.
Adorei de verdade essa news e torço pra gente não passar mais por isso 🌻♥️