Como sobreviver à Broligarquia
Tech bros, autoritarismo e o que fazer a respeito para nos defender desses pulhas
No dia 4 de fevereiro um cidadão sueco de 35 anos matou 10 estudantes em uma escola de ensino de língua sueca para adultos estrangeiros na cidade de Örebro, a 200km da capital Estocolmo, onde eu moro1. Embora eu não tenha comentado muito sobre o caso, ele me afetou. Como imigrante, eu fui aluna nessas escolas em várias ocasiões nesses nove anos morando fora. Vendo as entrevistas de quem sobreviveu, enxerguei o meu rosto, o rosto dos meus colegas, dos meus professores. Poderia ter sido eu etc. Mas não é preciso se identificar com as vítimas de uma tragédia para empatizar com elas. Você não precisa ter sido uma criança para se solidarizar com as vítimas de Realengo, de Columbine, assim como você não precisa ter mãe, irmã, esposa para se solidarizar com vítimas de violência contra mulher e assim por diante.
Precisamos de mais empatia e menos razões para ter empatia.
Estamos todos no mesmo barco, no mesmo planeta.
Além disso, neste ano todos nós completamos o primeiro quarto do século 21. É 2025. São 25 anos no mais novíssimo século no mais novíssimo milênio. Teve Lula presidente, Occupy Wall Street, Obama presidente, Jornadas de Junho, Primavera Árabe, Dilma presidente, Brexit, guerra na Ucrânia, impeachment, Trump, Bolsonaro, genocídio da Palestina… Lula de novo. Trump de novo. Que século para se viver. Foi nesse primeiro quarto de século também que inventamos as redes sociais. Os blogs. As newsletters. O smartphone. A popularização do acesso a internet. A criação dos fóruns de ódio. Inventamos novos vícios. E alguém criou o levante dos homens incel com sua mesquinhez e ordinárias capacidades. O que fazer quando os incels são donos da Meta, do X, do Instagram etc etc etc? O que fazer quando vivemos na Idiotalândia, a terra dos imbecis? Estamos cercados deles.
Mando esse texto hoje da minha cama. Com muito muco no pulmão, muita dor de cabeça e um cérebro gripado. Talvez por isso este não seja qualquer texto.
Envio para vocês uma tradução quentinha de um guia escrito, originalmente em inglês, pela jornalista britânica Carole Cadwalladr: How to Survive the Broligarchy (original).
Eu escrevi para ela hoje de manhã cedinho assim que li o artigo e ela gentilmente me cedeu autorização para traduzir e publicar o texto abaixo para vocês.
Os links em palavras-chave foram adicionados por mim.
Thank you for this one, dear .
[Texto de Carole Cadwalladr]
Logo depois da reeleição do Trump em novembro de 2024, eu escrevi uma coluna com o título "Como sobreviver à Broligarquia" (reproduzida abaixo) e, nos três meses seguintes, praticamente tudo o que previmos já aconteceu. Isso é tecnoautoritarismo. É tirania + ferramentas de vigilância. É a fusão das empresas do Vale do Silício com o poder do Estado. É a "broligarquia", um conceito que cunhei em julho do ano passado, embora já o use há um bom tempo. Desde 2016, estou seguindo um fio condutor que vai do Brexit ao Trump por meio de uma empresa de dados obscura chamada Cambridge Analytica, para expor a grande ameaça que a tecnologia representa para a democracia. Ao fazer isso, eu me tornei alvo: um processo judicial bem equipado e uma campanha opressora de abuso on-line me silenciaram e paralisaram por um longo tempo. Isso - e ainda pior - é o que muitos outros enfrentam agora. Estou aqui para lhe dizer que, se isso acontecer com você, você pode e vai sobreviver.
Esta semana representa um marco na história. Tudo mudou. Os Estados Unidos e a Rússia agora são aliados. A Ucrânia foi jogada aos cães. A segurança da Europa está em jogo. Por um lado, não há nada que nenhum de nós possa fazer. Por outro lado, temos que fazer alguma coisa. Então, eis o que estou fazendo. Estou iniciando uma conversa. Gravei a primeira - um piloto simples - em um podcast que chamei de Como sobreviver à Broligarquia e também mudei o nome do boletim informativo. Essa primeira conversa é sobre como precisamos de uma nova mídia construída do zero para lidar com o perigoso mundo novo em que estamos. Isso só pode acontecer em conjunto com você, leitor. Os dias de ordem e controle de cima para baixo acabaram. Por favor, vamos tentar fazer isso juntos.
Publicado originalmente no The Guardian, em 17 de novembro de 2017:
Como sobreviver à Broligarquia
Quando uma pessoa disser a você quem ela é, acredite nela. Na semana passada, Donald Trump nomeou um diretor de inteligência que faz propaganda russa, um agitador nacionalista cristão, como secretário de defesa. E um secretário de saúde que não acredita em vacinas. Se Trump estivesse tentando destruir a democracia americana, o Estado americano e os valores americanos, é isso que ele faria.
Os jornalistas são os primeiros, mas cada um de nós será o próximo. Trump anunciou processos de vários bilhões de dólares contra "o campo inimigo": jornais e editoras. O diretor do FBI que ele sugeriu foi gravado declarando que quer processar certos jornalistas. Jornalistas, editores, escritores e acadêmicos estão sempre na primeira onda. Médicos, professores e contadores serão os próximos. O autoritarismo é tão previsível quanto um trem suíço. Já é mais tarde do que você imagina.
Dar nome às coisas é entendê-las. Isso é McMuskismo: é o McCarthyismo com esteroides, perseguição política + Trump + Musk + ferramentas de vigilância do Vale do Silício. É o início de uma nova era de uma caça às bruxas política, em que a queima na fogueira encontra a coleta de dados e as multidões on-line.
Se está parecendo muito assustador, é porque esse é o plano. O governo de Trump será incompetente e imprudente, mas os indivíduos serão alvos, as instituições se acovardarão e as organizações desmoronarão. Rapidamente. O susto vai ser real.
Você tem mais poder do que pensa. Teoricamente nós deveríamos nos sentir impotentes. Essa é a estratégia. Mas não estamos. Se você é uma instituição ou organização dos EUA, forme um comitê de emergência. Traga especialistas. Escute as pessoas que viveram sob o autoritarismo. Peça conselhos.
Não seja um lambe-botas. Não se curve ao poder, pois eles vão vir atrás de você. Não facilite as coisas. Nem todo mundo pode se levantar e lutar. Mas ninguém precisa se ajoelhar até que haja uma obrigação real. AGUARDE A OBRIGAÇÃO.
Saiba quem você é. Esta lista é uma homenagem ao historiador de Yale, Timothy Snyder. Seu livro Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente, publicado em 2017, é o guia essencial para a era do autoritarismo. Seu primeiro comando, "Não obedeça antecipadamente", é o que tem soado, como um zumbido, em meus ouvidos desde que o Washington Post se recusou a apoiar Kamala Harris. Em um golpe de sorte bizarro e providencial, ele me ligou enquanto eu escrevia este texto e eu lhe pedi um conselho. Ele disse: "saiba o que você defende e o que você acha que é bom."
Proteja sua vida privada. A broligarquia não quer que você tenha uma. Leia A era do capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff: eles precisam saber exatamente quem você é para vender mais coisas para você. Já passamos dessa fase. O próximo passo é o Autoritarismo de Vigilância. Assista A vida dos outros, o belo filme sobre vigilância na Berlim Oriental dos anos 80. Aja como se você estivesse vivendo agora na Alemanha Oriental e o Meta/Facebook/Instagram/WhatsApp fossem a Stasi. Porque elas são.
Vomite a pílula que você engoliu. Não tem problema. Todos nós engolimos. Mas agora é hora de enfiar os dedos na garganta e tirar esse veneno doentio dos irmãos da tecnologia do seu sistema. Os telefones eram - e ainda são - um portal mágico para uma psicodélica casa de diversões cheia de possibilidades. Eles também estão rastreando e vigiando você até mesmo enquanto você dorme, ao mesmo tempo em que um senhor do Vale do Silício planeja maneiras de destruir o governo federal americano.
Ouça as mulheres de cor. Tudo de ruim que aconteceu na internet aconteceu primeiro com elas. Na história da tecnologia, as coisas viram problemas reais só quando elas passam a afetar homens brancos. Veja como a tecnologia já está sendo usada para traçar perfis e atingir imigrantes. Saiba que você é o próximo.
Pense em seus dados pessoais como nudes. Um jornalista de tecnologia veterano me disse isso em 2017 e nunca mais me abandonou. Minha experiência de "descoberta" - entregar 40.000 e-mails, mensagens e documentos para a equipe jurídica do financiador do Brexit que eu havia investigado - me deixou paralisada e apavorada. Pense no que uma equipe jurídica hostil faria com seu histórico de mensagens. Isso pode e vai acontecer.
Não engula o discurso deles. Um julgamento da Securities and Exchange concluiu que o Facebook havia mentido para dois jornalistas - um deles era eu - e o Facebook concordou em pagar uma multa de US$ 100 milhões. Se você for jornalista, recuse briefings extra-oficiais. Não converse ao telefone; envie um e-mail. Recuse entrevistas de jornalismo de acesso. Os furos e exclusividades de Goebbels 2.0 serão para sempre uma mancha na sua carreira.
Encontre uma maneira de se conectar com aqueles de quem você discorda. "Os erros óbvios daqueles que se encontram na oposição são romper relações com aqueles que discordam deles", diz Vera Krichevskaya, cofundadora da TV Rain, a última estação de TV independente da Rússia. "Você não pode permitir que a raiva diminua seu círculo de relacionamentos."
Pague em dinheiro. Pergunte a você mesmo o que um traficante internacional de drogas faria e faça como ele. Ele não estaria indo para um beco sem saída de Uber ou colocando 20 kg de crack em um cartão de crédito. Na broligarquia, cada ponto de dados é uma arma. Baixe o Signal, o aplicativo de mensagens criptografadas. Ative a opção de mensagens que desaparecem com o tempo.
Lembre-se das coisas. A escritora Rebecca Solnit, uma voz importante nos EUA, diz em um e-mail: "Se eles tentarem normalizar, vamos tentar desnormalizar. Vamos nos apegar a fatos, verdades, valores, normas, acordos que estarão sob ameaça. Não vamos nos esquecer do que aconteceu e por quê".
Encontre aliados em lugares improváveis. Uma das minhas fontes de apoio mais surpreendentes durante meu(s) julgamento(s) foi o Brexiter de extrema direita David Davis. Encontre fios de conexão e trabalhe a partir daí.
Existe, sim, uma coisa chamada verdade. Existem fatos e podemos conhecê-los. De Tamsin Shaw, professora de filosofia da Universidade de Nova York: "'O cético pode resistir ao tirano?' é uma das perguntas mais antigas da filosofia política. Não podemos nem mesmo reconhecer completamente o que é tirania se deixarmos que os poderes dominantes se safem mentindo para todos nós."
Planeje. O Vale do Silício não pensa em ciclos eleitorais de quatro anos. Elon Musk não está se preocupando com as eleições de meio de mandato. Ele está pensando em levar um foguete da SpaceX a Marte para violar e pilhar seus minerais raros antes que qualquer outra pessoa possa chegar lá. Precisaremos de um planejamento de 30 anos para sair dessa.
Você pode rir disso tudo sim. O humor é uma arma. Qualquer homem que sinta a necessidade de construir um foguete não está muito confiante em sua masculinidade. Trabalhe com isso.
Eles não são deuses. Os bilionários da tecnologia são apenas nerds que se dão ao direito demais e com sorte de terem nascido exatamento no momento histórico certo. Trate-os adequadamente.
[final do texto de Carole Cadwalladr]
Expediente
Aos poucos estou implementando o design novo aqui da Segredos em Órbita. Me conta o que você achou?
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Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Reportagem em português sobre o caso: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/02/04/tiros-dentro-de-escola-na-suecia.ghtml
Eu ia dizer "que epocazinha filha da puta esta em que vivemos", mas será que alguma época não foi filha da puta ou apenas não estávamos prestando atenção?
Enfim, com o cu na mão, salvei todas as referências e links para me "besuntar" em ansiedade e "chafurdar" no pessimismo.
Ótimo texto, a propósito, Vanessa.
Signal. Anotado aqui.