Do que os gringos gostam na literatura brasileira
Um pouco de Barreto, um pouco de Coelho
No último texto, eu escrevi Contra o foco. Hoje, o textinho de quinta-feira vem pautado pelos apoiadores da newsletter, que votaram em um tema que eles queriam ler em novembro. O tema escolhido foi “Literatura brasileira fora do Brasil“, sobre minha experiência como estudante em uma disciplina de literatura brasileira em uma universidade da Suécia.
Há mais ou menos dois invernos, fiz trinta anos, tornei-me sueca e logo depois voltei a ser estudante de graduação. Nessa ordem mesmo. Para mim, ter dupla cidadania é tão mágico e curioso quanto transformar água em vinho. Não importa a intensidade da cor do álcool, a água sempre fará parte de sua composição. Assim como vir da área de exatas faz parte da minha estrutura, estudar literatura apenas muda um pouco a fórmula final de minha pessoa, mas não exclui absolutamente nada que eu tenha sido antes.
Quando conversei com a chefe do departamento de inglês da Universidade de Estocolmo sobre minha ideia de escrever um ensaio investigando uma possível inspiração de Machado de Assis no trabalho de Julian Barnes, um autor britânico contemporâneo, fui confrontada com um desafio. A professora apontou a necessidade de que eu tivesse umas disciplinas de literatura brasileira no currículo, e não apenas inglesa. Não adiantavam as aulas do ensino médio. Precisavam ser aulas de nível universitário.
Foi assim que, no semestre seguinte, me vi em uma turma de estudantes europeus, com uma professora europeia, estudando o Brasil e a literatura brasileira como se eu nunca tivesse nascido lá. Há um tom sarcástico no fato de que, em uma das minhas primeiras experiências como cidadã sueca, eu tenha sido obrigada a olhar de um jeito tão brusco para a brasilidade. A estranheza em avistar minha terra por uma ótica arbitrária poderia ter sido desastrosa se eu não tivesse chegado àquele momento peculiar da vida só depois dos trinta. Veja, a juventude nos faz apressados demais, ansiosos demais, certos demais. E essa experiência exigiu toda a calma e paciência que eu poderia ter comigo mesma e com os outros. Não dá para lidar com outra cultura na base da pressa. Não dá para lidar com os outros olhando para a minha própria cultura na base da ansiedade.
A maioria das pessoas ali nunca havia sequer pisado no Brasil. Metade estudava para se tornar professor de português e a outra metade matriculou-se porque leu algum livro do Paulo Coelho, ou porque apaixonou-se por uma pessoa brasileira. Olhando para trás agora, neste momento, começo a entender que talvez tenha sido ali, aprendendo a respeitar a importância de Coelho para a divulgação da literatura brasileira no mundo, que a ideia de fazer o Caminho de Santiago começou a tomar conta do meu inconsciente. Talvez eu tenha sido tomada de uma vontade de entender, ou mesmo de repetir, para enxergar o que tem naquela experiência que foi o gatilho para Paulo Coelho escrever livros que tomaram conta dos desejos de tantas pessoas, de tantas partes do mundo, por tantas décadas. E porque diabos as pessoas se apressam tanto em odiá-lo. Mas nós não lemos Paulo Coelho na aula de literatura brasileira. Nem precisaria. Todos os gringos tinham chegado ali com essa espontânea lição de casa feita.
Em outras ocasiões, em terras estrangeiras, quando gringos citaram Paulo Coelho, eu vi outros brasileiros automaticamente rejeitarem o autor, apressando-se em dizer que não gostavam dele. Eu sempre senti um desconforto enorme nesses momentos, mas nunca pensei muito no motivo. Naquela aula, eu tive a chance de comentar sobre a recepção de Paulo Coelho nos meus termos, com as minhas próprias palavras. E falei apenas porque a professora perguntou-me diretamente sobre o que eu achava do assunto – diferente do resto da turma, ela já havia estado no Brasil e em Portugal inúmeras vezes, já tinha sua cota de conhecimento sobre a opinião dos brasileiros, principalmente os acadêmicos, sobre ele.
Conforme as aulas foram avançando, perguntar coisas para mim virou um hábito de todos. Isso é verdade? Foi assim com você também? Como ensinam isso na escola lá? Para minha sorte, eu tinha feito um curso online sobre literatura brasileira (com brasileiros!) há pouquíssimo tempo e todos os assuntos literários estavam muito quentes na cabeça. Como nós também lemos textos sobre história e cultura do Brasil (o livro base foi Understanding Contemporary Brazil, de Garmany, J. & A. W. Pereira), também rolaram outras perguntas, menos técnicas e mais políticas. Houve imigração alemã no Brasil mesmo? Como assim? É verdade que Getúlio Vargas acobertou nazistas? Como é morar num país onde o voto é obrigatório? Por que o Brasil perdeu a Copa de 2014? Por que Dilma Roussef sofreu impeachment? Como as manifestações de 2013 fortaleceram o fascismo? Algumas perguntas eu sabia responder na ponta da língua, outras já eram mais complicadas, mas não deixei de respondê-las. Eu sabia que estava tendo uma oportunidade única: oferecer uma primeira visão do Brasil para pessoas que nunca estiveram lá, mas estavam completamente interessadas em ouvir tudo.
Teve esse dia maravilhoso em que precisei contar o que foi a Coluna Prestes, o golpe de 1930, coisas que eu tinha apenas estudado, escutado as aulas, mas das quais nunca tinha falado em voz alta antes – nem em português, quem dirá em inglês. Falar do Brasil em outra língua colocou tudo numa perspectiva nova de narrativa. Como se construir a imagem do país com outro léxico de palavras me distanciasse dele o suficiente para poder enxergá-lo com mais nitidez, mais interesse e talvez até mais amor. Um tipo diferente de amor. Mas ainda sim, amor.
Muitas aulas foram uma repetição do passado, mas uma repetição diferente. Não era como ver um filme antigo de novo. Era mais como uma montagem teatral de uma peça que assisti na infância. Com novos atores e textos revisados. A professora, os colegas, os livros… eram outros, mas o país do qual falávamos era o mesmo. Aprender sobre o Achamento do Brasil, ao invés do descobrimento, foi uma maneira curiosa de ressignificar esse momento do aprendizado passado, fazendo as pazes não apenas com o mundo, que apesar de tudo muda sim, mas com meu próprio eu-aluna, eu estudante de escola pública.
E de quem eles gostaram mais?
Durante o curso, lemos Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Michel Laub e Tatiana Salem. Eu criei uma fantasia maluca de que Machado de Assis seria o preferido de todos. Talvez Clarice. Porque eles foram meu amor e meu ódio, respectivamente, na escola (hoje ambos são apenas amor). Mas o autor favorito dos gringos foi, sem dúvida, Lima Barreto.
Lá pelo final do curso, alguns colegas perguntaram se no Brasil só tem história triste. A professora então deixou eu fazer uma lista de indicações de autores. Novos e velhos. E, entre Jorge Amado, Moacyr Scliar, Cecília Meireles, Ariano Suassuna e muitos outros grandes, com muita emoção eu também pude indicar escritores contemporâneos de ficção científica e fantasia que eu gosto. Gente com quem eu falo no twitter, no telegram, que fazem parte do meu dia a dia (eu sei que alguns de vocês estão lendo isso hehe). Deu para contar sobre os cordéis, coisa que não fazia parte do curso. E pude também falar da Eita!Magazine, a revista bilíngue (português e inglês) que fundei com outros cinco amigos e se mantém de campanhas de financiamento coletivo. 💫
O que você quer saber sobre essa experiência?
Os textos de quinta deveriam ser mais curtos e eu estou me alongando muito hoje. Então quero abrir para vocês me perguntarem coisas sobre o aprendizado de literatura brasileira fora do Brasil. Ou como é estudar uma graduação aqui na Suécia, se vocês tiverem curiosidade.
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P.s: o tema desse texto foi escolhido por votação pelos apoiadores da newsletter. Se você quer fazer parte do time que sugere pautas e vota em assuntos para o próximo mês, considere apoiar o meu trabalho. É só clicar aqui.
Flip!
A festa literária de Paraty está rolando e eu só queria dizer que queria MUITO estar lá. Vou acompanhando os amigos pelas redes sociais feliz demais por ver a literatura sendo celebrada mais um ano por tanta gente que amo e respeito. Para quem estiver lá; curta muito! Por você e por mim.🌟
Satélite de recomendações
Textos maneiros que andei lendo aqui pelo substack:
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Muito legal conhecer essa experiência! Lima Barreto! Amooo demais!
Vanessa, só fiquei pensando no mico que eu ia pagar se ficassem me perguntando de História do Brasil. Vc estava falando do curso do Alex no texto, né? Queria muito refazer o curso lendo todos os livros. Eu tive uma versão bastante limitada da sua experiência aí: um curso livre sobre Clarice Lispector oferecido pelo Brooklyn Institute of Social Research. Eu pensei que ia ter mais brasileiros, mas só tinha eu e os gringos. E um pessoal empolgadíssimo por Lispector, nível culto à personalidade. Fiquei espantada!