Todo mundo no Brasil tem um “amigo rico”, não importa a classe social. Na minha juventude, o amigo rico era um dos metaleiros com quem eu andava. Foi por causa dele que eu descobri que existia um festival de música super cobiçado na Alemanha, o Wacken Open Air (ou apenas: Wacken), que por muitos anos foi considerado o maior festival de metal no mundo. O amigo rico ia para lá todo ano. E o resto da galera só sonhava com um dia ter dinheiro para ir também.
Eu nem me dava ao trabalho. A simples ideia de pisar fora do Brasil me parecia tão inalcançável e fora da realidade quanto passear em Marte — ou em Nárnia. Fora o amigo rico, eu não conhecia ninguém que já tivesse viajado para terras estrangeiras (salvo o pessoal que ia para o Paraguai comprar muamba). Os meus sonhos de adolescente eram ridículos e pé-no-chão, envolviam ter um emprego que pagasse o suficiente para eu bancar um aluguel sozinha e olhe lá. Qualquer coisa além disso nem entrava no meu horizonte de desejos.
Foi por isso que, mais de uma década depois, eu fui pega de surpresa com um convite para ir ao Wacken de 2018. De primeira, eu ri. Depois descobri que não era apenas possível ir ao festival, como era relativamente fácil e acessível, dado à condição de que eu já trabalhava e morava no norte da Europa há alguns anos. É difícil expressar a sensação esquisita de perceber que de repente eu tinha, sim, acesso a mesma coisa que aquele amigo rico. Relutei por um momento, depois cedi. Ainda bem. Foi o festival mais legal que eu já fui na vida.
Em agosto de 2023, no alto do verão europeu, eu fui de novo. Bem, eu tentei. Encontrei com a turma grande de amigos em um aeroporto mal-iluminado no norte da Alemanha, em um dia de chuva, cheio de voos atrasados e cancelados. Apesar dos maus agouros por todos os lados, estávamos convencidos que todo o esforço para chegar lá valeria a pena, afinal, sobrevivemos a uma pandemia, agora queremos viver. O Wacken é o melhor festival de metal do mundo!
As tempestades de agosto na Alemanha não permitiram que chegássemos lá. O Wacken não chegou a ser cancelado, mas permaneceu com os 20% de público que já havia chegado lá até certo momento. Para nós e os outros participantes, que se moviam do mundo inteiro para a grande festa de cinco dias, a organização anunciou: não temos condições de receber mais gente, voltem para casa. O motivo era muito claro: as tempestades. Seria perigoso demais meter as milhares de pessoas no lamaçal que virou o terreno do festival. Carros atolados, impossibilidade de que as pessoas pudessem sair de lá com rapidez em caso de emergência e outros problemas levaram a essa decisão. Foi prudente da parte deles, claro.
Da minha parte, fiquei lá perdida nos arredores de Frankfurt com 11 amigos, barracas de acampamento, um carro e uma van alugados para o resto da semana. Nada nos restou fazer além de abrir um mapa e descobrir onde estava a região do camping mais próximo e com a menor probabilidade de tempestades. Encontramos. Dirigimos 4 horas em direção ao centro da Alemanha e nos estabelecemos em uma área de motorhomes no meio do nada, com lagos belíssimos, pelo resto dos dias. Ainda sim, choveu um pouco. O suficiente para gente ter que levantar acampamento no barro, no último dia.
Enquanto tudo isso acontecia, não postei nada em rede social nenhuma. Nem mesmo uma reclamação. Comentei sobre os acontecimentos com os amigos mais próximos e a família, foi suficiente. De resto, me fechei na minha concha com a frustração. E olhei atentamente para ela.
Como uma coisa que sempre foi fora da minha realidade, de repente parecia tão minha a ponto de eu me sentir traída quando não pude desfruta-la?
Festivais de música guardam uma correspondência simbólica de contato com o divino. Está tudo lá na formatação básica de qualquer show: o púlpito (palco), os sacerdotes (bandas) e os fiéis (público). O momento da performance não é só uma apresentação, mas uma troca. Entre artistas e público, entre as pessoas que formam o público. É como fazer parte de algo maior do que a nossa vida cotidiana. É emocionante estar no meio de uma multidão de pessoas que foram tocadas pela mesma obra de arte que você. Como Walter Benjamin menciona no seu ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, os objetos de arte foram primeiro objetos da magia e da religião. No ensaio ele está falando mais das artes visuais, mas o raciocínio também vale para música, em certa medida. Por muito tempo na história da humanidade, para ter acesso a música, precisávamos obrigatoriamente da presença dos músicos; não havia outra maneira de desfrutar de composições. Com a modernidade e a replicação mecânica das obras — as vitrolas, o rádio, os toca-fitas, os CDs, o Spotify — a sacralidade da obra se desfaz. Mas hoje, na presença do artista, a performance refaz a aura de sagrado. Nem que seja por apenas uma hora.
Participar de um festival de música, desses que levam dias e exigem nossa total atenção, envolve uma preparação, às vezes tão longa que toma meses, planejamento financeiro, acordos com pessoas próximas para fazer arranjos, férias; não é algo simples. Mas é um privilégio, sim, poder fazer essa preparação. Elas lembram peregrinações religiosas também.
Eu nem escuto mais tanto metal como escutava quando era mais nova. Mas ir a festivais de metal é uma maneira de me reencontrar com uma identidade que um dia fez parte de mim. Eu envelheço e os artistas também — algumas performances mudam, se adaptam à disponibilidade de um corpo envelhecido, outras permanecem a mesma. Eu, como público, me tornei mais exigente com alguns aspectos da performance e menos com o outros. E hoje eu entendo a emoção dos artistas gringos quando tocam no Brasil — é realmente uma vibração única. O público latino-americano é ímpar.
O lugar onde eu terminei acampando ficava perto de Leipzig, a cidade onde nasceu o compositor Sebastian Bach e onde estudaram Nietzsche e Goethe. Quando Nietzsche nos alertou que os valores cristãos colapsaram o proprio cristianismo (como um pilar de valores da sociedade) — “Deus está morto” —, ele também jogou a dica de que, dali para frente, as pessoas seriam confrontadas com uma certa falta de valores e uma infinidade de possibilidades. Não é difícil pensar no clichê do vazio existencial, um deserto interior muitas vezes preenchido pelas miragens que encontramos nos nossos celulares. Quando vou a um festival de música, encontro uma espécie de permissão para ver o prazer como um propósito. É o contrário do vazio existencial. Se estou lá, de carne e osso, curtindo uma performance ao vivo, a sensação é de preenchimento. A vida, antes desprovida de sentido, ganha certa cor, certo entusiasmo. Estar vivo assim é bom.
Mas festivais de música também são lugares de alienação. É fácil desconectar-se do mundo ali — quando estou nesses lugares, muitas vezes penso no meu eu-adolescente, sobre a impossibilidade de acessar aquele lugar no passado. De certa maneira, é uma parte de mim que nunca me abandona. É estranho transitar entre pessoas que nunca tiveram nenhuma dificuldade de acesso às coisas que foram intensamente desejadas pelos meus amigos antigos, por tantos anos, sem que quase nenhum deles tenha “chegado lá”. De vez em quando me sinto uma usurpadora de classe: vivendo uma realidade que não mereço. No Instagram do festival, eu chorei e ri ao mesmo tempo ao ler o comentário de um cara da Colômbia, que economizou dinheiro por anos para ir ao Wacken e quando chegou na Alemanha em 2023, não pode realizar seu sonho. Chorei de nervosa pela frustração do homem e ri de nervosa pela loucura que é investir tanto dinheiro e sentimento numa coisa dessas. Essa última é complexa, mas tenho a impressão de que, para quem nasceu na classe trabalhadora, gastar dinheiro com coisas prazerosas parece algo que não nos pertence. É difícil aceitar, ali no fundinho do coração, que o prazer é tão verdadeiro quanto o sofrimento.
Quem diria que a crise climática chegaria ali, na Alemanha? A chuvas torrenciais e os verões intensos que acontecem hoje na Europa parecem uma ironia triste. O sul global sofre os golpes da exploração descontrolada da Europa sobre o resto do mundo há séculos. Seja pela mão do homem, seja pela mão da natureza. O mundo está descontrolado.
(Sempre esteve?)
Nessa semana pré-festas, eu preparo o apartamento com decorações natalinas, amando e odiando simultaneamente os adornos de plástico, tão baratos e tão lindos e tão poluentes. Me sinto estranha ao passar o Natal no frio. Para mim, o Natal foi em agosto, no Wacken, quando era verão e sol rachava os pensamentos. Quando a chuva alemã estragou uma coisa que eu passei a pandemia inteira esperando para viver.
“Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. [...] É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz.”
Tudo o que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman1
Expediente: mudanças
O rascunho do texto de hoje foi escrito em setembro, ao som das composições de Bach para orgão, logo depois da leitura de um ensaio de Walter Benjamin. O texto foi editado ao som de Osvaldir & Carlos Magrão, dois meses mais tarde, no mesmo dia em que escrevi o rascunho de outro ensaio, trabalhei em um freela, cuidei dos gatos de uma amiga e desentupi a pia do banheiro. Eu acho importante compartilhar esses detalhes de vez em quando. Meu processo de escrita é lento, embora eu consiga escrever rápido se precisar. Eu também gosto de ler com calma e, como uma leitora ávida de newsletters, me sinto igualmente feliz e triste sobre a quantidade de novas publicações que surgiram em 2023. Eu não estou dando conta de ler nem as minhas favoritas. Não é que a qualidade tenha caído, longe disso, é só que está chegando email demais na caixa de entrada.
Por essa razão, no próximo ano, eu pretendo mudar a frequência da Segredos em Órbita para quinzenal. As edições para apoiadores continuam saindo mensalmente, sem qualquer alteração. Não é problema de agenda ou falta do que falar (vocês sabem, assunto aqui é o que não falta), mas eu não quero atolar a caixa de entrada de vocês assim como a minha está atolada.
Eu vou experimentar isso por 3 meses e depois vou reavaliar se continuo.
Satélite de recomendações
Em 2024, quero participar ativamente do Projeto Filamentos, que une literatura, ecologia e discussões sobre emergência climática. Espero ver vocês lá também.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Bateu forte aqui a linha na qual você fala que para quem é da classe trabalhadora é difícil gastar dinheiro em prazer diante da familiaridade do sofrimento. Obrigada pela Segredos, obrigada pelos seus textos lindos e generosos, obrigada por ser você & escrever. Que a nova temporada da Segredos seja maravilhosa! Um beijo
esse texto traz tantas camadas à tona, tantas! me senti lendo uma Ernaux dos nossos tempos e com doses brasileiras. O que é ótimo. Parabéns, como sempre. Ps: sinto o mesmo sobre as leituras das news, não estou dando conta e em débito com as favoritas, inclusive esta. Um 2024 com leveza, presença e amor pra vc!