O celular com a tela apagada é um espelho que mostra o reflexo de um rosto cru. Sem filtro. Com a tela acesa, vira o mundo mágico das possibilidades. É o oceano dos aplicativos, conexões e memórias. Nas imagens salvas ali, existem emoções esquecidas que a câmera digitalizou e manteve congeladas no tempo. Perdemos uma batalha contra os anos; não há espaço seguro contra o passado. Está tudo lá.
Então percebe-se como a tecnologia parece ser feita para o futuro, mas na verdade é uma tentativa maluca de reter o passado, fazer o tempo imortal. Não são apenas meras fotos que pairam no espelho mágico dos celulares, mas o rosto que tinha-se antes e hoje não se tem mais. Nostalgia. Ou narcisismo?
A sensação de peso faz parte do dia a dia. As horas passam depressa, a tela passa depressa, sentimos cansaço, mas também sentimos que não fizemos nada o dia inteiro. Para onde vai o tempo presente?
O celular abriga em si uma constelação de memórias pessoais. O presente as contempla como uma pessoa observa as estrelas no céu. A distância é tanta que a luz chega às pupilas com milhares de anos de atraso, fazendo com que a pessoa olhe para um retrato do passado cósmico.
Eu-digital e eu-presente
Os antigos egípcios tinham dois conceitos de tempo distintos. Um deles descrevia muito bem a noção de tempo clássico, cíclico – passado, presente e futuro –, o Neheh. Dia e noite, estações do ano, colheitas e acontecimentos da vida de uma pessoa eram permeados por ele. Neheh é o movimento da vida. A egiptóloga Giselle Marques Câmara explica em um artigo:
“Neḥeḥ, gera e/ou é o resultado do movimento dos corpos celestes […] portanto ao movimento do “vir a ser”.[…] o tempo Neḥeḥ [expressa] a ação criativa em seu estado de pleno movimento. Não é a ausência da existência, nem a existência consolidada. É a existência em trânsito.”
Câmara. A Constância Temporal da Criação por Neḥeḥ e Djet1
Viver na tríade passado, presente e futuro é a mesma coisa que existir no nosso entendimento limitado do universo. Ser perene é existir. Mesmo os rios um dia secam, movem-se. Até a vida de um curso d’água é marcada por esses três aspectos do tempo. Tudo começa, tudo termina. Essa seria a chave do nosso eu-presente, nosso corpo que anda sobre a Terra.
A outra face do tempo para os antigos egípcios é Djet, uma continuidade existencial meio parecida com o conceito de eternidade. Mas não é exatamente isso. É uma suspensão do tempo, como os egiptólogos explicam. Djet é associada a Osíris, segundo Giselle. E se coloca como um conceito mais próximo do que hoje entenderíamos mais como espaço do que tempo. Albert Einstein manda lembranças.
Penso no conjunto de arquivos de cada pessoa no celular – ou no computador, na nuvem etc – como a composição de um eu-digital. Esse eu-digital seria uma espécie de ferramenta de Djet, uma suspensão. Seria também uma espécie de rocha, um lugar sólido no espaço digital que afirma: eu existo.
Refleti muito sobre isso semana passada, quando escrevi um texto sobre uma amiga já falecida, para quem acendi uma vela dia 2 de novembro e contei sobre a eleição de Lula. Não publiquei o texto aqui como havia planejado. Não publiquei em lugar nenhum. Mas não hesitei em ver suas fotos, ouvir seus áudios e assistir seus vídeos. Contei sobre ela para outra pessoa; falei dela no presente, sem perceber. Assim como escrevi sobre ela no presente. Como se o eu-digital de minha amiga fosse muito mais do que um altar virtual, mas uma prova bruta de sua essência.
Segundo o texto da egiptóloga, os símbolos de Djet são a múmia e a rocha. Essa seria a suspensão total. A morte, imutável. E a rocha nos seus bilhões de anos de existência só pode ser a própria solidez que tanto buscamos com a ideia da eternidade. Por isso o eu-digital me parece uma representação atual, e muito mundana, de Djet. E por isso mesmo, talvez o sofrimento entre o eu-presente e o eu-digital seja mais uma questão de coexistência do que um conflito. Não há uma ruptura obrigatória entre os dois, eles podem existir juntos. Lembrando que “a construção do tempo egípcia enfatiza a “reversibilidade” – Neḥeḥ – e a“permanência” – Djet –, princípios opostos e complementares”2.
Amor próprio ou narcisismo?
Será que a formação desse acervo digital seria apenas uma tentativa infantil de imortalizar nossas memórias?
Sabendo que o planeta Terra será absorvido pelo sol em mais ou menos 7 bilhões de anos e tudo isso aqui vai para o beleléu, o amor-próprio parece uma tentativa de fazer o presente virar a própria eternidade.
Mas na dimensão da nossa vida online, parece que a lembrança constante do passado atrapalha a construção de um presente factível, sólido. Aqui não falo do scroll infinito, mas do ato de mantermos registros constantes de nossa própria vida acessíveis a dois cliques.
Como se a tentativa de construir um futuro fosse limitada pelo nosso apego ao passado.
Para onde vamos com todo esse acervo pessoal?
Vamos conversar mais no ensaio de domingo.
Baby, eu sei que é assim
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão, au!
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Descansa Gal Costa. Obrigada pela genialidade, a coragem e o talento. 🫀
Agradecimentos
O evento “O texto & o tempo” foi simplesmente maravilhoso. Nada melhor do que aquela sensação de parece que encontrei minha turma. Para quem quer ficar ligado no que vem aí, assine a newsletter do evento e prepare-se para conhecer mais e mais escritores gloriosos por lá.
Quero agradecer todo mundo que apareceu lá, seja assistindo as atividades ou participando delas ativamente. Também quero agradecer especialmente a equipe de organização: Ana, Arthur, Lígia e Thiago. Sem o apoio ponta firme de vocês, nada disso teria rolado. Obrigada!
Satélite de recomendações
Vou deixar esses 3 textos aqui que tem tudo a ver com o assunto “literatura, tempo e newsletter”, papos que trocamos no evento.
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
Câmara, G. M. A Constância Temporal da Criação por Neḥeḥ e Djet: uma Breve Reflexão Sobre a Construção Cultural do Tempo Para os Antigos Egípcios. Nearco. 2020. Na íntegra aqui.
Câmara, página 127.
Que lindo, Vanessa! Amei a reflexão sobre o tempo, é algo que me inquieta mto tbm!
Uma vez li que o Universo era apenas um holograma projetando imagens do big bang. Eternamente o mesmo, mas projetando um ficção que nos dava a impressão (esperança?) de mudança. Adorei a sua reflexão.