Recadinho rápido: Você gosta de ler newsletters? No próximo final de semana, dias 5 e 6 de julho, vai rolar um evento online para quem gosta de ler newsletters ❤️ No domingo eu vou dar uma oficina sobre Ferramentas e Métricas. Vou tentar explicar como elas funcionam e como você pode lidar com elas sem enlouquecer.
A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis.
- Albert Camus em O mito de Sísifo.
O destino mais irônico da mitologia grega pertence a Sísifo. Depois de morrer ele foi condenado, pela eternidade, a rolar uma pedra até o topo de uma montanha, uma pedra que ao chegar próxima do cume sempre rola de volta lá para baixo. E lá vai Sísifo, de novo e de novo, para sempre. Cruel. É uma tarefa sem sentido, sem conclusão e sem importância. O mito de Sísifo dá corpo à ideia de humanidade, a falta de sentido em existir. O que dá valor ao que fazemos em vida é exatamente a certeza de que ela vai acabar. Por isso as religiões tem apelo, elas nos dizem que haverá algo depois do fim. Isso traz conforto. E por isso o destino de Sísifo é o mais revoltante — talvez mais triste do que Antígona, enterrada viva na caverna — porque depois de morto continua vivendo como vivem a maioria dos humanos: em uma missão sem sentido, repetitiva e alienante. Então, arrisco uma radicalidade: pior do que uma vida sem sentido é uma morte sem sentido.
Enquanto rolo minha pedra sisífica no escritório, as notícias de guerras (nem tão) distantes descem como enxurradas. E eu lá, empurrando a pedra. Gente morrendo lá para além do pé da montanha, mas eu focada. Minha pedra, my business. Vida que segue.
A definição técnica de uma guerra hoje é um conflito armado que provoca mortes de pelo menos 1.000 pessoas por ano1. Do ano passado para cá, temos 62 conflitos armados pelo mundo, dos quais 11 entram na definição técnica de guerra. Nunca estivemos nessa situação desde 1946. Não é exatamente um delírio pensar que estamos presenciando a terceira guerra mundial. E muita gente está morrendo agora, enquanto eu escrevo esse texto (e enquanto você o lê).
Todo mundo vai morrer um dia, não é algo que pensamos com frequência, mas é verdade. A morte em si não me assusta, é condição inerente ao nascimento. Mas o jeito como se morre e o motivo pelo qual se morre, sim, me revoltam. A guerra é revoltante por inúmeros motivos, o maior deles talvez seja o disparate de decidir como e quando vidas são interrompidas. Tiram a chance das pessoas de gozar do que lhes é de direito: a vida.
Na inabilidade de fazer qualquer coisa a respeito da guerra, sinto pena. Não só pelo desamparo das pessoas que morrem nela, mas também pena de mim e dos outros que estão longe e não sabem o que fazer para intervir. Passividade forçada por circunstâncias também é uma forma de agressão. Muito discreta, muito silenciosa, mas extremamente efetiva em nos mostrar o nosso lugar. Inúteis.
Sísifo foi condenado a rolar a pedra porque conseguiu, enquanto vivo, enganar Tanos, fazendo com que não houvesse morte na Terra por anos. Depois de muitas tretas, os deuses o deixaram viver até envelhecer. Depois da morte, lhe presentearam com a sentença de rolar a pedra pela eternidade. Ok, Sísifo foi punido, mas também viveu uma vida leal ao seus credos. Foi, fez e venceu. Não arregou para deus nenhum e, no fim, aceitou a sentença sem pena de si mesmo.
Albert Camus, no famoso ensaio O mito de Sísifo, nos convida a observar o momento em que Sísifo está no topo e observa a pedra rolar. Tão pequena quando está longe, parece apenas uma ideia. Ele desce atrás dela, livre ao vento, ainda longe da sua concretude. Nesse momento, a pedra é uma ideia e esse retorno à ela é o verdadeiro absurdo. Mas é nesse momento da descida que ele encontra a felicidade. Como nós voltamos para casa depois do trabalho; para acordar amanhã e retornar a ele. A punição de Sísifo é um absurdo. Mas a nossa vida também é.
A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo. Se esse mito é trágico, é que seu herói é consciente. Onde estaria, de fato, a sua pena, se a cada passo o sustentasse a esperança de ser bem-sucedido? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente.
- Albert Camus em O mito de Sísifo.
Se tornar consciente das dores do mundo. E se o pensamento é o que nos amarga em relação à guerra, nossa impotência é fruto da consciência. Cada Sísifo com sua pedra pensa. Se é ser humano, pensa. Pensa e existe, existe porque pensa. O verdadeiro livre arbítrio é a imaginação, a especulação. Voltamos para a pedra, mas voltamos pensantes, imaginantes. Sísifo descendo a ladeira às gargalhadas, pensando no absurdo da guerra. O riso do louco é uma espécie de liberdade.
Quando abrimos o feed de notícias e ficamos tristes, somos completamente conscientes da nossa situação absurda. Ninguém vai passar por isso tudo sem enlouquecer um pouquinho. É preciso imaginar Sísifo feliz.
É preciso.
Espero conversar com vocês pelo Zoom no próximo final de semana!
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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segundo relatório UCDP da Universidade de Uppsala. Acesso: https://www.uu.se/en/news/2025/2025-06-11-ucdp-sharp-increase-in-conflicts-and-wars?utm_source=chatgpt.com
Estamos doentes, a maioria de nós rolando a pedra, mas sem a consciência que Sísifo tinha. Excelente reflexão, Vanessa. Adorei! :)
Role a pedra mas não deixe de escrever.