Em 2023, eu fiz de tudo para não pensar em emagrecer. Pela primeira vez desde que eu me lembro de existir. Eis aqui uma coleção de reflexões sobre o que aconteceu. Pincei várias notas do meu diário pessoal, quebrando minha regra sobre nunca copiar trechos do diário aqui.
Lá estava eu, tremendo de frio dentro da minha batina, que naquele momento me pareceu de um tamanho muito maior que o meu, uma catedral onde eu morava nu e de olhos abertos.
- trecho de Nortuno do Chile, de Roberto Bolaño.
1) Em diferentes momentos da vida adulta, me convidaram para posar como modelo plus size. Foram pessoas conhecidas. Eu costumo declinar desses pedidos (aceitei apenas em duas ocasiões e me arrependi) e as pessoas costumam se surpreender com a negativa. Mencionam coisas sobre eu passar a imagem de mulher segura com o corpo, apesar de não ser padrão. Apesar de não ser padrão. Existe uma grande diferença entre circular por aí com o corpo que tenho, já que não há outra escolha, e posar para outras pessoas assumindo uma espécie de categoria com a qual eu não me identifico. Eu não me reconheço exatamente como uma mulher plus size, por mais impressionante que isso possa parecer.
2) É horrível ser lembrada por algo que eu não me dispus a representar. Existem pessoas que assumem publicamente o plus size como uma identidade, mas esse não é o meu caso. Eu sei que minha calça 46 pode parecer uma declaração de amor-próprio sem que eu fale nada, mas ela não é. Eu não vou usar uma blusa curta para provar para o mundo que eu amo minha barriga fora do padrão. Eu não vou postar uma foto das dobras do meu corpo para provar que estou em uma jornada de amor-próprio. Eu não quero provar nada para ninguém. Mas a minha existência, sozinha, parece ser uma declaração de… resistência.
3) Ser mulher geralmente envolve ter uma vida dupla. Você vive sua vida normalmente, como todo mundo, mas em paralelo vive outra, na sua mente, onde revisita algo que se desenrolou ontem e imagina “como isso teria acontecido se eu fosse magra”. Poucas minas da minha idade se sentem magras o suficiente. No mês passado eu fui a uma loja de departamentos, determinada a encontrar uma calça jeans de cintura alta a um preço acessível — desde que passei a viver de bolsa estudantil, não tive mais dinheiro para comprar em lojas decentes, eco sustentáveis etc e os brechós raramente tem calças de corte justo em tamanhos grandes — e encontrei lindos jeans XL onde minha bunda ficou maravilhosa, mas cujo último botão não fechou de jeito nenhum. Tampouco eu conseguiria andar vestindo calças tão apertadas. Foi quando, olhando para o espelho, eu pensei “se eu fosse três quilos menor, isso já estaria resolvido”. Veja bem, eu sequer tive a ousadia de desejar 10 ou 20 quilos a menos. Apenas três. E é relativamente fácil expurgar essa modesta quantidade de gordura e água do corpo.
4) A proposta de evitar emagrecer me fez nadar contra uma corrente violenta. Depois de uma sessão de terapia que nada tinha a ver com o assunto, uma sessão em que relembrei passagens da infância sobre as coisas que eu gostava de fazer, eu almocei sozinha em casa e ali, sentadinha na cadeira com meu prato de arroz e feijão, eu lembrei. Meus pais à mesa explicando que eles me amavam muito apesar de eu ser uma criança gorda. Apesar. E a explicação subsequente, de que eles se preocupavam com o fato de que um dia eu me tornaria adolescente e sofreria muito por não ter namorados como as minhas amigas (magras) teriam.
5) Foi aos 6 anos de idade que me levaram pela primeira vez ao nutricionista e o Toddy que eu tomava pela manhã foi substituído por uma mistura de leite gelado com cacau em pó puro. Sem açucar. Eu lembro do gosto dessa mistura até hoje.
6) Aos 17 anos eu desmaiei de fome pela primeira vez. E acordei me achando a maior heroína do mundo. Foi a primeira e única vez na vida que entrei em uma calça 38.
7) Se antigamente eu ouvi muito a frase “você tem um rosto lindo, imagina se fosse magra”, hoje eu escuto variações do já citado “você passa a impressão de ser uma mulher segura”. As duas estão impregnadas da mesma ideia. De que tentar ser magra é o esperado de nós. Hoje em dia, quando não demonstramos estar buscando esse ideal, somos automaticamente pessoas seguras. Quase assustadoras. Ousadas. Desviar da norma virou uma narrativa de coragem e eu entendo essa necessidade, mas não quer dizer que todo mundo está vivendo nessa chave. Às vezes a gente está apenas vivendo. Não estamos protagonizando um comercial da Dove.
8) Nas resoluções de ano novo que fiz para o ano passado, eu tentei pensar na coisa mais radical que eu poderia desejar para mim mesma. E decidi que em 2023 eu não tentaria emagrecer. Pareceu uma coisa muito simples no início. Mas, ao longo do ano, essa não-tentativa me levou a reflexões profundas sobre a raiz de todas as inseguranças, não apenas com meu corpo, mas com tudo. Não foi à toa que em 2023 eu tive as primeiras crises de ansiedade e pânico da vida. Descobri que passei anos sentindo automaticamente que, quando algo não dava certo, era por eu não ser magra. Mas de onde veio isso? Como eu me acostumei a pensar assim? Não era um pensamento muito consciente, era mais uma sensação automática, e eu estava tão acostumada a ela que mal notava. Era como se no dia que eu fosse magra todos os problemas sumiriam. Mas era um movimento invisível e não uma ideia formada de palavras. Era uma corrente que operava por baixo dos panos da consciência, silenciosa e serpenteante como uma cobra. Enrolada no pescoço.
9) Em 2023 eu aprendi que tenho o hábito de usar o corpo como punição. A primeira pista disso surgiu há uns quinze anos, nas primeiras experiências no mundo fetichista. Explorar o prazer na chave da dor — a vela queimando a pele, o chicote cantando na pele trêmula — foi um divisor de águas. E gostava de punir outros corpos muito mais do que punir o meu. É como se o gozo tivesse uma outra dimensão depois do sofrimento. É uma mistura. Mas se eu forçar um pouco a memória, talvez a primeira pista tenha vindo ainda mais cedo. Jejuar para tomar a hóstia no fim da missa. Amém. Fazer dieta para entrar em um vestido semana que vem. Aprender a andar de salto para fazer bonito.
10) Eu sou um pedacinho de consciência, como um alien, pilotando um corpo que aleatoriamente foi me dado. Não sei como e nem por quem. Provavelmente por ninguém além dos meus pais. Talvez por isso me assuste tanto a ideia de gerar filhos, pois o processo de criação de um corpo é uma incógnita. Sabemos, tecnicamente, como acontece. Mas não sabemos como o alien vai parar ali dentro. Como a consciência é concebida?
11) Fechei os olhos e pensei como eu sou dentro da minha cabeça. Eu acho que sou várias pessoas, de vários gêneros e idades. Não sei se quero falar disso na terapia, porque não parece algo que eu queira resolver. Deve ser por isso que estou escrevendo um livro com tantos personagens. Deve ser por isso que eles desejam matar uns aos outros várias vezes ao dia. Deve ser por isso que são todos parte da mesma família.
12) É impossível descolar-se do corpo. Podemos usar drogas ou outros métodos de alteração de consciência, como meditação ou técnicas de respiração específicas. Dormir e sonhar. Podemos sair do corpo por um momento. Mas invariavelmente, retornamos sempre para a mesma caixa de carne.
13) O que é a iluminação dos budistas se não o retorno ao mesmo corpo, apenas com a consciência modificada?
14) Faço jornadas longas de meditação por anos. Viajo por países que meus pais não sabem nem o nome. Compro um apartamento antes dos 30. Faço musculação em casa. Completo uma peregrinação de 250 quilômetros. Volto para Porto Alegre e meu pai pergunta quando eu vou ser magra. É isso que chamam de samsara?
15) Em 2023 a única irmã do meu pai submeteu-se a uma cirurgia bariátrica. Ela é quase vinte anos mais velha que eu. Me peguei pensando se eu conseguiria escutar a pergunta do meu pai por mais vinte anos. Não. Não conseguiria. Tem sido mais fácil impor o oceano Atlântico entre nós.
16) Preciso confessar que o título deste texto é uma grande mentira. Eu encerrei o ano com cinco quilos a menos. Mas o objetivo central era não tentar ser magra (assim, conscientemente) e isso eu consegui. Pensei muito sobre como eu perdi cinco quilos se não fiz dietas e nenhum procedimento diretamente envolvido na busca do emagrecimento. Pode ter sido qualquer coisa. Qualquer coisa. Posso ter simplesmente peridido o peso na consciência.
17) Mudar a nossa cabeça e o modo como vemos o corpo é tudo que podemos fazer para nos ajudar. Mas não é a solução para o fim do auto-ódio. Não adianta tanto assim a gente estar bem quando o resto do mundo não está. Por isso eu entendo a bariátrica. Da minha tia, da minha prima e de todas as outras mulheres da minha família que estão na fila aguardando esse e outros procedimentos estéticos.
18) No fim das contas, há de se lembrar que esse drama todo sobre o corpo não nos faz melhores do que qualquer pessoas narcisista e vaidosa. Por outro lado, isso também é uma pequena garantia de insignificância; provavelmente está todo mundo tão preocupado com o próprio corpo que mal estão notando o corpo dos outros.
19) Li artigos acadêmicos sobre “body image”, imagem corporal, e descobri que nossa autoimagem é formada tanto pelo que vemos no espelho, o que sentimos dentro do corpo e a ideia que os outros tem da gente. Basicamente, o modo como outras pessoas enxergam um indivíduo é tão válida quando o reflexo direto no espelho.
20) Tenho certeza de que meus pais amaram meu corpo antes mesmo que eu tivesse consciência, antes de eu nascer. Antes que eu soubesse que sou uma pessoa. A origem do amor paternal é sempre na ideia abstrata de alguém que nem existe ainda. Não é estranho ser amada antes mesmo de saber o que é amor? Deve ser por isso que precisamos aprender um caminho próprio para amar a nós mesmas. É muito difícil amar a coisa mais real que conhecemos. E também deve ser difícil para os pais amar sem mágoa um corpo que não se tornou aquilo que o amor deles desejou.
21) Talvez meu jeito de amar a mim mesma é encontrando o amor no olhar dos outros. Suspeito que a escrita seja um dos meus jeitos de me amar. E de te amar também.
22) A leitura parece me fazer amar apenas com a mente. Mas nunca deixo de sentir seus efeitos no corpo.
23) O corpo é o grande link entre nascer e morrer. Ligar e desligar.
24) Só um corpo vivo deseja. Em 2024, eu vou me deixar desejar à vontade, sem racionalizar tanto assim. Ano que vem a gente conversa para ver até onde isso foi. ⭐
O texto do ano passado:
Porque envelhecer é ser ocupado por um estranho: de quem são estas perninhas descarnadas, cobertas por uma pelanca frouxa e enrugada?
- trecho de A boa sorte, de Rosa Montero
✨ Expediente
O próximo texto vai ser uma edição especial respondendo questões dos leitores.
Se você quer mandar uma pergunta, seja anônima ou não, ainda dá tempo.
Obs: no final de fevereiro teremos novidades na parte de apoios (que por enquanto está adormecida).
📡 Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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A leitura é uma forma de amor compartilhado.
Obrigada por tudo, por nos amar (pois te amamos), por decidir não emagrecer, por ser tão humana e genial.
Feliz Ano Novo para essa newsletter maravilhosa ✨
Obrigada pela sinceridade nas tuas palavras, ecoou muito por aqui!
Se me permite a sugestão, procure pela conteúdo da Fabiolla_duarte, tem me ajudado muito numa jornada de entendimento entre o feminino e a alimentação, entre os modelos instituídos, traumas. Porque nós mulheres precisamos de tribos, com as quais possamos nos apoiar, partilhar , não julgar, mas apenas SER. Que venha mais um ano sem tentar emagrecer .o)