Tem uma atração nesses parques de diversão gringos chamada casa dos espelhos. No Brasil eu nunca vi, mas pode ser que exista em algum lugar. Nos filmes de terror norte-americanos, pessoas se perdem nessa casa de espelhos, sem encontrar a saída em meio a tantos reflexos e infinitos. Vilões encontram jeitos de usar essa confusão para ceifar suas vidas e fantasmas aproveitam para pregar sustos piores do que ver o próprio reflexo no espelho em diferentes ângulos. Há algo de comum entre essas casas de espelho e a internet.
Não sei quando aconteceu, mas em algum momento a rede mundial de computadores deixou de ser um espaço de descoberta e virou autoexploração uma cruza da casa dos horrores com a casa dos espelhos. Me sinto estrangulada. Você também?
Indo contra a corrente, eu acredito que olhando de perto todo mundo é normal. Todo mundo precisa comer (e ser comido, diga-se de passagem), dormir e ir no banheiro. Estou me repetindo, já lancei essa máxima aqui antes, mas retorno a ela porque há uma verdade meio absurda (e fascinante) em olhar para uma multidão de pessoas e pensar que todas elas tem essas mesmas necessidades básicas. É a única coisa que todos nós compartilhamos. Isso tem me atormentado porque enfrento uma dificuldade tremenda em sentir as coisas ultimamente. Não sei quando olhar para vida das pessoas se tornou insuportável, mas aqui estamos.
Então vamos ver esse monstrinho de perto.
a superexposição dos outros 🪞
Eu acho que já falamos muito aqui sobre a nossa própria exposição nas redes. Mas e a exposição excessiva dos outros?
Há meses tem sido insuportável abrir um aplicativo social qualquer e dar de cara com cenas da intimidade alheia. Dá um negócio, não sei explicar. Anos atrás, rolava um outro tipo de incômodo, próximo a esse, quando aparecia uma pessoa desconhecida seminua na timeline. Parte de mim ficava encucada com o desconforto, pois parecia uma espécie de conservadorismo despontando do incosciente. Por que a bunda da fulaninha que eu sigo por causa das dicas de costura me incomoda tanto? Uma bunda é só uma bunda, todo mundo tem.
Foi assistindo a Social Studies que tive uma pista mais clara sobre o que poderia ser o desconforto. No documentário de cinco episódios, a diretora Laureen Greenfield acompanha, por um ano, a vida de adolescentes (primeira geração a crescer totalmente online) em torno de uma escola pública famosa em Los Angeles. É desesperador e interessantíssimo. Logo no início, ela pergunta aos jovens quando foi a primeira vez em que foram expostos a nudez de pessoas desconhecidas. Uma garota conta que foi aos sete anos: a foto dos seios (com mamilos cobertos) de uma mulher adulta no instagram, que ela seguia por causa das receitas de doces e tortas coloridas.
Assim como essa garota, eu também fico desconfortável com nudez sensualizada em contas que não tem essa temática no meu feed. Esse pensamento é problemático. Ele é está em conflito direto com o fato de que pessoas não são vitrines de curadoria especializada. Tampouco são seres unidimensionais. Pessoas são muitas coisas — e as redes sociais esmagam essa pluralidade.
Para o algoritmo impulsionar um post de maneira mais eficiente, é melhor seguir uma linha editorial bem definida, postar sempre os mesmos temas, usar as mesmas hashtags e seguir um certo padrão visual. Assim, o público fica satisfeito. Quando a expectativa do conteúdo é quebrada, rola um estranhamento. O meu desconforto com as bundas espontâneas no feed tem a ver com isso. Mas ao mesmo tempo em que eu, uma pessoa adulta, estou exposta a todo tipo de conteúdo, uma criança de sete anos também está. E longe de me inclinar para um pensamento conservador — logo eu, que fui criança na época da banheira do Gugu —, eu reflito sobre a exposição desse outro que publica coisas para mim (para mim? Será?). Não tendo assim tanto controle ao que estou exposta, acho que sinto a internet se parecendo um pouco com o descontrole da vida.
Na paralela do desconforto, vem também a overdose de intimidade. Quanto mais parecido com uma amiga contando uma fofoca, melhor. A câmera revela o banheiro, o quarto, a sala, os parentes, a cor da parede… Eu nem sei se eu queria saber tudo isso sobre uma pessoa que eu nem conheço e com quem eu não poderia me importar menos. Mas aí é está a questão: esses detalhes dão a ilusão de que eu me importo. E acho que essa ilusão é o engano cognitivo que me cansa: relacionar-se é desgastante, não é à toa que existe um número limitado de pessoas com quem conseguimos manter uma relação de intimidade. Agora essa sensação de proximidade intensa está sendo explorada para conseguir atenção, likes, seguidores. Não surpreende que as pessoas estejam estafadas de sentir coisas.
A superexploração dos outros está nos sufocando também. E assim permanecemos cada vez mais isolados, pois não temos mais energia para lidar com a intimidade do nosso próprio círculo social. Nossa mente e nosso coração estão abarrotados de gente estranha.
diversões e subversões 🪞
Além do cansaço cognitivo, vivemos na sensação de que tudo é meio igual, meio pasteurizado. O pior de tudo é que parece um labirinto do qual não conseguimos sair. Quantas vezes alguém já disse que adoraria sair do_______(insira aqui uma rede social qualquer) e não consegue? Mas para quem viveu a internet intensamente antes dos anos 2010, nem sempre as coisas foram assim. O nosso universo cibernético era maior, ainda que nossa conexão de internet fosse bem mais limitada.
A verdade é que internet não é um labirinto. A internet é um parque de diversões, mas a maioria das pessoas está confinada dentro da casa dos espelhos (Instagram e TikTok) e da casa dos horrores (X e Threads). É difícil encontrar a saída, mas é possível.
Por isso, a partir dessa edição e junto com o “Satélite de recomendações”, eu adicono aqui na newsletter a seção “Sinal de vida”. Nela eu vou trazer de um a três projetos, experimentos ou atrações digitais para você conhecer no computador ou no celular, sem estar dentro de uma rede social.
Bora?
🛸 Sinal de vida
Imagem do dia da NASA. Todos os dias a NASA publica uma imagem diferente do espaço nesse link.
Tênebra. A biblioteca digital da Tênebra tem o maior acervo de obras obscuras brasileiras na internet, com acesso totalmente gratuito. Um dos realizadores do projeto tem uma newsletter pessoal sobre sua interessante vida nessa Terra Treva.
Are you ok? Um site simples, em inglês básico, que faz um check-up rápido no seu estado no momento. É uma boa para mandar para os amigos de vez em quando.
🛰️ Satélite de recomendações
Por hoje é só.
Beijos, abraços e toda forma de afeto.
Vanessa Guedes.
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Às vezes tenho vontade de dizer: "amigos, me desculpem, mas não suporto mais saber da vida de vocês!". hahah
Seu texto, como sempre, me provocando pensamentos.
Não sei se tem muito a ver mas dia desses uma pessoa que sigo pq fala de livros tava mostrando a reforma da casa e dizendo que ia mostrar tudo, o quebra quebra o caos pra gente acompanhar, eu que nunca me envolvo tive que comentar de modo fofo algo do tipo pelo amor de Deus não hahahhs. Isso pra mim é filme de horror, eu não quero ver, enfim.